O Homem: questão para si mesmo.
14. A morte e o intolerável
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
10 Novembro 2024
Conta-se que um dia um padre entrou na igreja e viu Deus a rezar. Terrivelmente perplexo,
perguntava a si mesmo a quem é que Deus poderia rezar. Aproximou-se, e constatou, com
espanto, que, Deus rezava ao homem: “Homem, se existes, mostra-te, aparece!” Mas Deus, o
criador, devia saber que o homem existe - como é que perguntava por ele?! De qualquer modo,
daí para diante, o padre anunciava por toda a parte que Deus existe: ele próprio tinha-o visto a
rezar ao homem, a perguntar por ele...
Nesta história - ingénua? -, está presente aquela urgência em que consiste a questão de Deus,
que Eduardo Lourenço traduziu assim: “Deus? O problema é saber se nós existimos para Deus.”
Afinal, porque é que perguntaríamos por Deus, se ele não estivesse presente em nós? Como é
que o procuraríamos, se, como explicitaram concretamente Santo Agostinho e Pascal, o não
tivéssemos já encontrado?
Deus está presente, pelo menos como questão aberta, essencialmente na pergunta irrecusável
pelo sentido último. A existência humana é uma caminhada de sentido em sentido: tem sentido
crescer e aumentar os conhecimentos, tem sentido casar, formar família, ter filhos, educá-los,
procurar uma realização profissional, tem sentido bater-se pela Justiça, festejar, fazer
investigação para aprofundar a compreensão do mundo e transformá-lo, sacrificar-se pela
edificação de uma sociedade mais justa e feliz... Mas se, no fim, pela morte, tudo desembocasse
no nada, então, em última análise, tudo apareceria sem sentido, precisamente porque a vida é
essa caminhada de sentido em sentido, à procura do Sentido último, e, no final, era o nada.
Precisamente esse nada é intolerável.
O carácter insuportável desse nada, do acabar no nada, do nunca mais ser para todo o sempre,
adquire intensidade dramaticamente maciça na morte do amigo. Por um lado, olha-se para
aquele resto cadavérico e tem-se consciência de que o amigo está real e totalmente morto - é
uma naturalidade evidente morrer e estar morto. Por outro, o amigo não é, não pode ser, aquele
resto. Mas então onde está, para onde foi? Como é que partiu sem deixar endereço? E fica-se
atordoado, é como se o mundo nos caísse em cima ou caíssemos nós num abismo - o
pensamento desfaz-se de parede contra parede, a fonte das palavras fica absolutamente seca, e
é um vazio sem fim...
A morte de alguém é sempre o fim de um mundo, a morte de um amigo é irreparável. Com a
morte do amigo, a nossa própria morte faz a sua entrada no mais profundo de nós mesmos.
Como escreveu Santo Agostinho: “Admirava-me de viverem os outros mortais, quando tinha
morrido aquele que eu amava, como se ele não houvesse de morrer! E, sendo eu outro ele, mais
me admirava de eu viver, estando ele morto.” E aí ergueu-se gigantesca, assombrosa e inevitável
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
10 Novembro 2024
Conta-se que um dia um padre entrou na igreja e viu Deus a rezar. Terrivelmente perplexo,
perguntava a si mesmo a quem é que Deus poderia rezar. Aproximou-se, e constatou, com
espanto, que, Deus rezava ao homem: “Homem, se existes, mostra-te, aparece!” Mas Deus, o
criador, devia saber que o homem existe - como é que perguntava por ele?! De qualquer modo,
daí para diante, o padre anunciava por toda a parte que Deus existe: ele próprio tinha-o visto a
rezar ao homem, a perguntar por ele...
Nesta história - ingénua? -, está presente aquela urgência em que consiste a questão de Deus,
que Eduardo Lourenço traduziu assim: “Deus? O problema é saber se nós existimos para Deus.”
Afinal, porque é que perguntaríamos por Deus, se ele não estivesse presente em nós? Como é
que o procuraríamos, se, como explicitaram concretamente Santo Agostinho e Pascal, o não
tivéssemos já encontrado?
Deus está presente, pelo menos como questão aberta, essencialmente na pergunta irrecusável
pelo sentido último. A existência humana é uma caminhada de sentido em sentido: tem sentido
crescer e aumentar os conhecimentos, tem sentido casar, formar família, ter filhos, educá-los,
procurar uma realização profissional, tem sentido bater-se pela Justiça, festejar, fazer
investigação para aprofundar a compreensão do mundo e transformá-lo, sacrificar-se pela
edificação de uma sociedade mais justa e feliz... Mas se, no fim, pela morte, tudo desembocasse
no nada, então, em última análise, tudo apareceria sem sentido, precisamente porque a vida é
essa caminhada de sentido em sentido, à procura do Sentido último, e, no final, era o nada.
Precisamente esse nada é intolerável.
O carácter insuportável desse nada, do acabar no nada, do nunca mais ser para todo o sempre,
adquire intensidade dramaticamente maciça na morte do amigo. Por um lado, olha-se para
aquele resto cadavérico e tem-se consciência de que o amigo está real e totalmente morto - é
uma naturalidade evidente morrer e estar morto. Por outro, o amigo não é, não pode ser, aquele
resto. Mas então onde está, para onde foi? Como é que partiu sem deixar endereço? E fica-se
atordoado, é como se o mundo nos caísse em cima ou caíssemos nós num abismo - o
pensamento desfaz-se de parede contra parede, a fonte das palavras fica absolutamente seca, e
é um vazio sem fim...
A morte de alguém é sempre o fim de um mundo, a morte de um amigo é irreparável. Com a
morte do amigo, a nossa própria morte faz a sua entrada no mais profundo de nós mesmos.
Como escreveu Santo Agostinho: “Admirava-me de viverem os outros mortais, quando tinha
morrido aquele que eu amava, como se ele não houvesse de morrer! E, sendo eu outro ele, mais
me admirava de eu viver, estando ele morto.” E aí ergueu-se gigantesca, assombrosa e inevitável
a pergunta essencial: “Factus eram ipse mihi magna quaestio - tinha-me tornado para mim
próprio uma questão enorme.”
Decisivo é não abandonar a pergunta até ao fim e ao fundo. É que, como escreveu Theodor
Adorno, fundador da Escola Crítica de Frankfurt, agnóstico: “O pensamento que não se decapita
desemboca na Transcendência.” E como escreveu Max Horkheimer, outro fundador da Escola de
Frankfurt, “é impossível salvar um sentido absoluto sem Deus” e, por isso, a religião está em
conexão com “o anelo de que esta existência terrena não seja absoluta”, de que o sofrimento e a
morte “não sejam o último.”
Escreve de acordo com a antiga orto
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