sábado, 15 de fevereiro de 2025

A Igreja católica e o protocolo de Estado Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA e PENSA

A Igreja católica

e o protocolo de Estado

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Sábado, 15 de Fevereiro de 2025

Nos Estados, há cerimónias oficiais, sendo

natural que se estabeleça um protocolo de

Estado. Em Portugal, já houve um debate à volta

disso, e a Igreja católica e as outras confissões

religiosas deixaram de ter lugar no protocolo.

É assim que deve ser. De facto, a que título é

que as autoridades religiosas haveriam de surgir

na lista de precedências no protocolo,

concretamente num Estado regido pelo princípio

2

da não confessionalidade, portanto, da separação

da(s) Igreja(s) e do Estado?

“Dai a César o que é de César e a Deus o que

é de Deus”, foi programaticamente declarado

por Jesus Cristo. Esta separação do político e do

religioso não tinha sentido na Grécia, que não

separava o cívico e o cultual, nem para o

judaísmo, que unificava nação e religião. Como

escreveu Régis Debray, em Jerusalém, Atenas e

Roma, “o ritual cívico é religioso, e o ritual

religioso é cívico”. Para as três culturas que estão

na base da nossa, alguém que estivesse fora da

religião estava fora da Cidade.

Contra o preceito de Cristo que delimitou

campos de poder, Constantino, apesar da sua

“conversão” ao cristianismo, não esqueceu a

divinização imperial e intrometeu-se nas

questões da Igreja, convocando concílios,

condicionando ou mesmo determinando as suas

decisões. O Papa Bonifácio VIII formulou a teoria

das duas espadas, segundo a qual o Papa detém

o poder espiritual e o temporal, mas, se exerce o

primeiro directamente, delega o segundo nos

príncipes, que o exercem em representação do

3

Papa. Para se defenderem dos Papas, os

monarcas reivindicaram o direito divino dos reis.

Mesmo Lutero afirmou o carácter divino de toda

a autoridade estabelecida.

A modernidade impôs a secularização,

pondo fim a equívocos próprios da Cristandade

e de césaro-papismos. Mesmo que se não esteja

completamente de acordo com autores que

sustentam que a secularização é um fenómeno

produzido pela fé cristã, é necessário afirmar

que, ainda que, de facto, tenha tido de impor-se

contra a Igreja oficial, a secularização, no sentido

da autonomia das realidades terrestres e

concretamente da separação da Igreja e do

Estado, tem raízes bíblicas.

O monoteísmo desdivinizou a política e os

detentores do poder político. O profeta Ezequiel

advertiu o rei de Tiro: “Tu és um homem e não

um deus”. Jesus deixou aquela palavra decisiva

sobre Deus e César. Por isso, os cristãos

opuseram-se frontalmente à divinização do

imperador, proclamando que “só Deus é o

Senhor” e recebendo em troca a acusação de

ateísmo.

4

Em ordem à dessacralização da política e à

consequente separação da Igreja e do Estado,

foram decisivas as guerras de religião na Europa.

De facto, só mediante essa separação, que

significava a neutralidade religiosa do Estado,

era possível a garantia da liberdade religiosa de

todos os cidadãos sem discriminação. Com a

desconfessionalização do Estado, os cidadãos

tornaram-se livres de terem esta ou aquela

religião ou nenhuma.

É, porém, importante perceber que essa

exigência não deriva apenas da necessidade do

estabelecimento da paz política e civil, mas da

natureza do cristianismo. A própria fé impõe

essa separação. De facto, sem ela, espreita

constantemente o perigo de idolatria, isto é, de

confusão ou até de identificação entre Deus e a

política.

Um Estado confessional põe em causa a

transcendência divina. Por outro lado, acaba por

impor politicamente o que só pode ser objecto de

opção livre. Ninguém nasce cristão, mas as

pessoas podem livremente escolher o

cristianismo. Só homens e mulheres

5

verdadeiramente livres podem aderir à fé

religiosa e a Deus.

Jesus recusou a tentação de ser um Messias

político, embora tenha sido condenado à morte

como blasfemo e subversivo social e político,

pois a sua mensagem, que não se confunde com

a política, tem consequências sócio-políticas. E é

aqui que reside o núcleo da questão. A Igreja não

pode fazer política partidária. Mas isso não

significa que deva ou possa remeter-se para a

tranquilidade beata das sacristias. O seu

interesse e caminho é o Homem, e isso exige uma

intervenção pública na denúncia das injustiças e

na defesa e promoção da dignidade humana

toda.

A Igreja não precisa nem quer privilégios,

pois apenas pede para si o que exige para todos:

liberdade. Antes de mais, liberdade para

defender os mais desfavorecidos, os velhos, os

reformados pobres... Aliás, de um modo ou

outro, a factura das precedências no protocolo do

Estado e dos privilégios em geral acabaria

sempre por chegar, tolhendo-lhe a

independência crítica. Isto não significa que não

6

possa e até deva haver uma colaboração sadia

entre a Igreja e o Estado para o bem comum,

concretamente no referente a questões sociais.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Onde afundam as nossas raízes? - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 Onde afundam as nossas raízes?

Ano C – Tempo Comum – 6º domingo
Lucas 6,17.20-26: "Bem-aventurados vós, pobres... Mas ai de vós, ricos!"

O Evangelho de hoje apresenta-nos as Bem-aventuranças na versão de São Lucas. O texto se estrutura em quatro bem-aventuranças e quatro advertências, marcadas por quatro "bem-aventurados" e quatro "ai de vós". Jesus declara bem-aventurados os pobres, os famintos, os aflitos e os perseguidos; e adverte os ricos, os saciados, os que riem e os que são aclamados pelo povo.

Se por um lado essas palavras de Jesus nos fascinam, por outro, nos causam certo desconforto, pois apresentam parâmetros que chocam profundamente com a mentalidade corrente. Quem pode realmente dizer-se pobre e faminto? Talvez aflito e perseguido, às vezes. São Mateus de certa maneira as "espiritualiza": "Bem-aventurados os pobres em espírito", "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça"… Já São Lucas as "materializa" sem concessões.

O nosso espírito intui a verdade e a beleza dessa nova visão de vida, encarnada na própria pessoa de Jesus, mas a mente logo começa a relativizá-la, considerando-a irrealista, enquanto o inconsciente tenta suprimi-la o mais rápido possível. De fato, é uma graça deixar-se interpelar por esta palavra. Pois é grande a tentação de dizer, como em outra passagem: "Essa palavra é dura! Quem pode escutá-la?" (João 6,60).

Nesta palavra, como em tantas outras do Evangelho, acontece o que disse o profeta Jeremias: "Minha palavra não é, talvez, como o fogo – oráculo do Senhor – e como um martelo que despedaça a rocha?" (23,29). Noutro trecho, ele afirma que a palavra, dentro das entranhas, causa uma grande dor de estômago (4,29). Qual melhor desejo, então, senão o de sair da celebração dominical com "uma grande dor de barriga"? Seria um sinal de que estamos no caminho certo. A alternativa, afinal, é ir embora tristes, como o jovem rico! Ouvir esta palavra cura-nos e salva-nos do perigo de levar uma vida sem sentido.

O contexto deste Evangelho

São Lucas diz-nos que Jesus se retirou para o monte, sozinho, e passou a noite inteira em oração. Jesus é o Mestre da oração porque ensina a partir da sua própria experiência. O evangelista destaca que Jesus sempre rezava antes das grandes decisões. O relato continua dizendo que, pela manhã, Jesus chamou a si todos os seus discípulos e escolheu doze, a quem chamou apóstolos (Lc 6,12-13).

Depois, Jesus desce com seus discípulos e para num lugar plano. Enquanto em São Mateus Jesus faz o seu discurso no monte, símbolo da proximidade com Deus, São Lucas situa-o na planície, símbolo da proximidade com as pessoas, onde pode ser facilmente alcançado por todos. De fato, "havia uma grande multidão de seus discípulos e uma imensa multidão de gente", vinda de todas as partes "para ouvi-lo e serem curados de suas doenças". Toda a multidão tentava tocá-lo, "porque dele saía uma força que curava a todos" (Lc 6,17-19).

Nesta vasta cena humana, Jesus, levantando os olhos para os discípulos, proclama as bem-aventuranças. O Senhor ergue o olhar porque fala de baixo. Deus é humilde e não se posiciona acima de nós.

Algumas observações

Bem-aventurados vós, pobres, porque vosso é o Reino de Deus.
Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados.
Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque rireis.
Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem... por causa do Filho do Homem.

Notamos que:

  • Na Sagrada Escritura, já encontramos esta forma literária de bem-aventuranças e de maldições (veja-se a primeira leitura de Jeremias e o Salmo 1). Os rabinos, no tempo de Jesus, também a utilizavam. 
  • Enquanto São Mateus apresenta as bem-aventuranças numa forma sapiencial, enunciando-as na terceira pessoa do plural: "Bem-aventurados os pobres", São Lucas adota um estilo profético, mais direto, dirigindo-se aos discípulos na segunda pessoa do plural: "Bem-aventurados vós, pobres".
  • Cada bem-aventurança é acompanhada de um "porque", mas qual é a razão fundamental dessas afirmações tão paradoxais? Jesus não consagra nem idealiza a pobreza. A pobreza, a fome, a aflição e a perseguição são realidades negativas a serem combatidas. A boa notícia é que Deus não tolera essas injustiças, tão difundidas neste nosso mundo, e assume a causa dos pobres. Jeremias, na primeira leitura, afirma que a verdadeira bem-aventurança nasce da confiança no Senhor: "Bendito o homem que confia no Senhor, e o Senhor é sua confiança". 
  • Na primeira bem-aventurança, Jesus usa o verbo no presente: "Bem-aventurados vós, pobres, porque vosso é o Reino de Deus", enquanto nas outras emprega o futuro. Como explicar isto? As bem-aventuranças possuem uma dimensão já presente, mas também uma projeção futura rumo à sua plena realização. Paradoxalmente, portanto, na própria experiência do sofrimento é possível encontrar alegria. Um exemplo eloquente é o dos apóstolos Pedro e João, que, depois de serem açoitados, "saíram do Sinédrio felizes por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus" (Atos 5,41). 

De forma simétrica, Jesus apresenta quatro advertências, os quatro "ai de vós":

Mas ai de vós, ricos, porque já recebestes a vossa consolação.
Ai de vós, que agora estais saciados, porque tereis fome.
Ai de vós, que agora rides, porque vos lamentareis e chorareis.
Ai de vós, quando todos os homens falarem bem de vós...

Notamos que:

  • Enquanto na versão de São Mateus Jesus se limita a proclamar as oito bem-aventuranças (mais uma voltada diretamente aos discípulos), na versão lucana encontramos apenas quatro, mas com a adição de quatro "ai de vós", em contraposição aos "bem-aventurados vós". 
  • O termo "ai de vós" era usado em contexto profético para anunciar desgraças. No entanto, esses "ais" de Jesus não são maldições, mas expressões de dor e compaixão. Poderiam ser traduzidos como "que pena por vós". Enquanto as bem-aventuranças são como uma felicitação aos "bem-aventurados", os "ai de vós" têm o tom de uma mensagem de pêsames. 
  • Porque é que Jesus adverte os ricos? Não se trata de uma visão classista. É verdade que a riqueza muitas vezes está associada à injustiça, que gera pobreza e sofrimento. No entanto, a parábola do rico e do pobre Lázaro não se concentra na origem da riqueza, nem afirma que o rico tenha cometido algum crime, mas mostra a sua condenação por ter ignorado o pobre à sua porta (Lucas 16,19-31). 
  • O profeta Jeremias é categórico: "Maldito o homem que confia no homem e põe na carne seu sustento, afastando seu coração do Senhor". Confiar nos bens não só fecha o coração aos irmãos, mas também conduz à idolatria. 

Para reflexão pessoal

As bem-aventuranças são o caminho proposto por Jesus para a felicidade, para ter uma existência bela, fecunda e significativa. O profeta Jeremias compara a felicidade a uma árvore sempre verde e frutífera, cujas raízes se estendem em direção ao rio. Em contraste, uma vida não enraizada em Deus é como o tamarisco do deserto que "não verá o bem chegar, habitará em lugares áridos no deserto, numa terra salgada, onde ninguém pode viver". Tudo depende, portanto, de onde afundamos nossas raízes. Onde afundam as minhas?

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Monos e humanos origem e originalidades Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 1

PÁRA E PENSA
Monos e humanos

origem e originalidades

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

O que é o Homem?

Ao longo dos séculos, foram-se sucedendo, numa
lista quase interminável, as tentativas de resposta:
animal que fala, animal político (Aristóteles); animal
racional (os estóicos e a Escolástica); realidade
sagrada (Séneca); um ser que pensa (Descartes); uma
cana pensante (Pascal); um ser que trabalha (Marx);
um animal capaz de prometer (Nietzsche); um ser que
cria (Bergson); um animal que ri, um animal que
chora, um animal que sepulta os mortos... Saído da
gigantesca aventura cósmica com uns 13.700 milhões
de anos, o Homem tem, segundo Edgar Morin, “a
singularidade de ser cerebralmente sapiens-demens
(sapiente-demente), ter, portanto, com ele “ao mesmo
tempo a racionalidade, o delírio, a hybris (a
desmesura), a destrutividade”.
2
O filósofo André Comte-Sponville apresentou a
sua “definição”, que julga suficiente: “É um ser
humano qualquer ser nascido de dois seres
humanos.” Sim, é verdade. Mas será mesmo
suficiente? O que dizer em relação aos primeiros
homens, que, na história da evolução, não nasceram
de outros humanos? De qualquer modo a pergunta
continua aí, gigantesca, a pergunta das perguntas...

Os grandes espíritos -- Diderot, por exemplo
deram-se conta de que o que somos não pode ser
encerrado numa definição. O Homem é o ser que leva
consigo a questão do ser e do seu ser e que originária
e constitutivamente pergunta: o que é o Homem? O
que, antes de mais, une a Humanidade inteira é
precisamente esta pergunta: o que é ser Homem?

Se o chimpanzé, por exemplo, também sente,
recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende e
inventa, o que é que nos distingue?

Afinal, muito de idêntico em nós e no
chimpanzé, “no mono e no Papa”, disse ironicamente
o filósofo confessadamente ateu Michel Onfray. O
professor de filosofia e o chimpanzé têm necessidades
naturais comuns: comer, beber, dormir. A etologia
mostra que há comportamentos naturais comuns aos
animais e aos humanos. Veja-se, por exemplo, as
relações de violência e de agressão e compare-se
3
inclusivamente os rituais de cortejamento sexual. Mas
é interessante constatar que na resposta às
necessidades naturais há uma diferença: os homens
inventaram a cozinha e a gastronomia e também o
erotismo.

No entanto, escreve M. Onfray, “o Homem e o
animal separam-se radicalmente quando se trata de
necessidades espirituais, as únicas que são próprias
dos homens e das quais não se encontra nenhum
vestígio mínimo que seja nos animais.” Há nos
humanos uma série de actividades especificamente
intelectuais, que os distinguem radicalmente dos
monos: nestes, não encontramos filosofia nem religião
nem técnica nem arte.

A tentativa de compreendê-lo no quadro de um
materialismo mecanicista ou do biologismo não dá
conta do Homem. De facto, o animal é conduzido
pelo instinto. Por isso, esfomeado, não se conterá
perante a comida apropriada que lhe apareça. Face à
fêmea no período do cio, não resistirá. O Homem,
pelo contrário, é capaz de transcender a dinâmica
biológica. Por motivos de ascese ou religiosos ou até
pura e simplesmente para mostrar a si próprio que se
não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se,
resistir, dizer não. Foi neste sentido que Max Scheler,
um dos fundadores da Antropologia Filosófica
4
escreveu que o Homem é “o asceta da vida”, o único
animal capaz de dizer não aos impulsos instintivos.

Cá está: esta é a base biológica da conduta moral,
uma característica essencialmente específica humana.
Uma vez que o Homem é capaz de ponderar,
renunciar, abster-se, optar, dizer sim, dizer não aos
impulsos, é livre e, por conseguinte, animal moral.

O Homem é corpo, mas um corpo que fala e que
diz “eu”. Porque fala, é capaz de debater questões, de
defender pontos de vista, distinguir o bem e o mal,
tomar posições sobre valores morais, políticos,
religiosos, estéticos, filosóficos...

Então, o enigma é este: provimos da natureza, mas
contrapomo-nos a ela, somos simultaneamente da
natureza, na natureza e fora dela. Monos e humanos
têm a mesma origem, mas os humanos têm
originalidades únicas e irredutíveis.