REZAR OU
BLASFEMAR?
Frei Bento Domingues,
O.P.
13
Julho 2025
Na Liturgia das Horas, predominam os Salmos rezados
ou cantados. É a oração que marca o ritmo do tempo. Não teve sempre a mesma
configuração. Por isso, periodicamente, fala-se de reforma litúrgica. No
entanto, continuamos a rezar os Salmos que mais parecem blasfémias do que
verdadeira oração.
Na Europa, o Movimento Litúrgico surgiu há 200 anos com um
desenvolvimento, mais ou menos constante, nomeadamente em algumas abadias
beneditinas da Alemanha, Bélgica e França. Em Portugal, o seu débil início pode
datar-se no I Congresso Litúrgico Português, realizado em Vila Real de 17 a 19
de Junho de 1926.
A Encíclica Mediator Dei de Pio XII (1947) é
considerada a Magna Carta do Movimento litúrgico. Sem dúvida, as
reformas de Pio XII contribuíram para uma nova teologia litúrgica e podemos até
acrescentar que o II Concílio do Vaticano desembocou numa teologia da liturgia,
graças às bases destas reformas lentas e amadurecidas. Toda a Igreja se abria,
naqueles anos, às riquezas do mistério pascal, centro da vida da Igreja e de
cada cristão.
O I Congresso Internacional de Pastoral litúrgica de Assis
ficou célebre pelas palavras proferidas pelo Papa Pio XII, no Discurso final (1956):
o Movimento Litúrgico apareceu como um sinal das providenciais disposições
divinas no nosso tempo, como uma passagem do Espírito Santo na sua Igreja para
aproximar ainda mais as pessoas aos mistérios da fé e às riquezas da graça, que
provêm pela participação activa dos fiéis na vida litúrgica e, ainda, pelas
palavras de J. A. Jungmann, SJ: A chave da história da liturgia é a pastoral[1].
Entre nós, o Movimento da Pastoral Litúrgica teve algumas
expressões, sobretudo, do mosteiro de Singeverga e do Seminário dos Olivais com
uma das figuras mais influentes, Monsenhor Pereira dos Reis (1879-1960). Não
posso esquecer também a influência do Curso de Teologia de Verão (ISTA), em Fátima,
e as iniciativas originais de Frei José Augusto Mourão (1947-2011). Em 1965, o
Centro de Estudos Sedes Sapientiae, do
convento dos Dominicanos (Fátima), realizou – como lhe competia – um Colóquio
de Pastoral Litúrgica, com muita participação de leigos e clero. Aliás, para a
Ordem dos Pregadores, a verdadeira pregação alimenta-se da liturgia para todos.
Como apontou o Concílio Vaticano II, a Igreja procura «que os
cristãos não entrem no mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas
participem na acção sagrada, consciente, activa e piedosamente, por meio de uma
boa compreensão dos ritos e orações»[2]. Para isso, é necessário
que os textos propostos suscitem o louvor a Deus e despertem a consciência de
que são momentos de graça e não momentos de vingança.
Por exemplo, o Salmo 149 (vv.6-9), rezado em Laudes, no
Domingo de Páscoa e durante toda a semana pascal, diz o seguinte: Na sua garganta estejam as grandezas de
Deus,/ nas suas mãos, espadas de dois gumes,/ para realizarem a vingança contra
as nações/ e darem o castigo aos povos;/ para prenderem os seus reis com
correntes/ e os seus nobres, com algemas de ferro;/ para lhes aplicarem a
sentença registada./ Ele é glória para todos os seus fiéis[3].
O Papa Francisco considerava
o terrorismo, a vingança em nome de Deus, como uma blasfémia. Não será este
salmo blasfemo? Aliás, o AT tem muitos textos deste teor.
Encontrei, num estudo de Francolino Gonçalves,
O.P. (1943-2017)[4],
explicações históricas inovadoras. O uso que farei da sua hipótese só me
responsabiliza a mim. Passo a transcrever apenas algumas passagens do seu longo
texto.
Começa pela opinião comum: «desde há cerca de três quartos
de século que o iaveísmo teve como matriz e, durante muito tempo, como único
horizonte Israel ou, melhor dito, as relações entre Iavé e Israel. Nesta
perspectiva, a eleição de Israel, a sua libertação do Egipto e a aliança que
Iavé fez com ele, são os artigos fundamentais da fé iaveísta. Por influência
das religiões estrangeiras, em particular da religião cananeia, o iaveísmo
ter-se-ia voltado também para o mundo no seu conjunto e teria visto nele a obra
de Iavé. No entanto, só teria assimilado plenamente a fé na obra criadora de
Iavé, a partir de cerca de meados do séc. VI a.C., sendo Is 40-55[5], o escrito sacerdotal e
vários salmos testemunhos e resultados deste processo de assimilação. Dito
isso, a fé na obra criadora de Iavé, que tem por quadro e horizonte o cosmos e
a humanidade, teria ficado sempre subordinada à fé na sua obra salvífica, que
tem por quadro e horizonte a história das relações entre Iavé e Israel.
«A primazia absoluta que se atribui à ideia de história da salvação
de Israel, a expensas da solicitude de Deus para com toda a criação, foi alvo
de contestações mais ou menos radicais. Os seus autores baseiam-se geralmente
numa maior atenção prestada aos escritos sapienciais mais antigos, que a
opinião corrente não tem em conta. O AT
contém assim duas representações diferentes de Iavé. Segundo uma, ele é o Deus
criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o Deus que
está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e salva.
«As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram,
essencialmente, o resultado dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de
interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT que é nova. A meu
ver, o AT documenta a existência de dois
sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o
outro na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando, poderia
chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo.
Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas
constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT».
Eu tiro a minha conclusão: o iaveísmo histórico veicula uma
teologia nacionalista, por vezes, de uma extrema violência. Coloca na boca de
Deus os interesses de um povo contra os outros povos. Este nacionalismo
religioso blasfema[6].
Sendo a pastoral a
chave da história da liturgia, ela
exige que, nas liturgias cristãs sejam utilizados apenas os textos que nos
falam do Deus Criador de toda a humanidade, do Deus cósmico, e não de um Deus
de vingança. O tempo do Jubileu, dos 10 anos da Laudato Si’ e da fase de
implementação do Sínodo, que vai até 2028, será um tempo excelente para levar a
cabo esta tarefa pastoral. De tanto se falar de reforma, uma das mais urgentes
é esquecida.
[1] Cf. D. José Manuel Cordeiro, bispo de
Bragança-Miranda, Do Movimento Litúrgico à Reforma Litúrgica, Ecclesia, 29.11.2011.
[2] Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 48
[3]
Tradução da Conferência Episcopal Portuguesa
[4] Cf. Iavé, Deus de justiça e de bênção, Deus de amor e de salvação em Cadernos ISTA, nº 22 (2009), p. 107-152,
especialmente p. 114-115.
[5] Livro do profeta Isaías
[6]
Cf. Frei Bento Domingues, O.P. Será a
Bíblia Blasfémia? in Publico, 27.12.2015