domingo, 30 de janeiro de 2022

A ALEGRIA DO AMOR É O MELHOR CAMINHO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. O sentido das palavras depende muito do seu uso. Um caso interessante é o da palavra caridade. Foi destacada, por S. Paulo, como a mais excelente das três virtudes teologais – fé, esperança e caridade – que é um bem definitivo e que, neste Domingo, faz parte da liturgia da Palavra[1]. De repente, este hino à caridade foi substituído pelo hino ao amor. O ganho parece evidente: ninguém se casa por esmola, para fazer uma caridade. Por isso, desertou dos casamentos. A palavra caridade, no uso corrente, deixou de ser o amor mais excelente, o amor da pura gratuidade para ser apenas uma esmola.

Fez bem o Papa Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est (2005), ao tentar esclarecer o vocabulário do amor: «O primeiro obstáculo que encontramos é um problema de linguagem. O termo amor tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes». O tema desta Encíclica está concentrado na questão da compreensão e da prática do amor na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja. Mas, como observa Bento XVI, não podemos prescindir pura e simplesmente do significado que esta palavra tem nas várias culturas e na linguagem actual.

Ao explicitar o vasto campo semântico da palavra amor, lembra algo muito corrente: o amor da pátria, amor à profissão, amor entre amigos, amor ao trabalho, amor entre pais e filhos, entre irmãos e familiares, amor ao próximo e amor a Deus. «Em toda esta gama de significados, porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam». Surge então a questão: todas estas formas de amor, no fim de contas, apesar de toda a diversidade das suas manifestações, unificam-se como sendo um só amor, ou, pelo contrário, utilizamos uma mesma palavra para indicar realidades totalmente diferentes?

«Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se, desde já, que o Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor – erosphilia (amor de amizade) e agape – os escritos neo-testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra agape, denota sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor. Na crítica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma absolutamente negativa. Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. Este filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?»[2].

Não vou deixar, aqui, as respostas que Bento XVI dá às suas perguntas. O texto está publicado e é de fácil consulta no Google.

2. O vocabulário não é tudo. Mais importantes são as atitudes concretas que excedem todas as palavras.

Por outro lado, o Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Amoris Laetitia (2016), preocupou-se precisamente por ajudar as famílias a descobrirem a alegria do amor. Este documento produziu não só acolhimentos fervorosos, mas também acusações de que o Papa, com a sua misericórdia e paciência, estava a descuidar as duras exigências do ideal evangélico. A esta acusação respondeu de forma muito clara:

«Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objectiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada. Os pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a assumir a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. O próprio Evangelho exige que não julguemos nem condenemos»[3].

Não podemos esquecer algo fundamental da mesma Exortação Apostólica: «Somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para connosco. Não é uma proposta romântica nem uma resposta débil ao amor de Deus, que sempre quer promover as pessoas, porque a arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. É verdade que, às vezes, agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida atormentada»[4].

3. Não estamos condenados à tristeza da nossa condição finita. O ser humano afirma-se pelo sim que dá à vida. Não existe oposição entre eros, philia e agape, mas não podemos esquecer o melhor dos caminhos para a alegria, apontado por S. Paulo: Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita. O amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais passará. (…) Agora, permanecem as três virtudes: a fé, a esperança e o amor. A maior delas, porém, é o amor.

No entanto, precisamos da esperança para nos dizer bom dia todas as manhãs.

 

 

30. Janeiro. 2022



[1] 1Cor 12, 31 – 13, 1-13

[2] Cf. Deus caritas est, nº 2 e 3; cf. também Olivier Abel. Jérôme Porée, Vocalulário de P. Ricoeur, MinervaCoimbra, 2010

[3] cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37

[4] Cf. Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), nº 308-310

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

FORA DO DIÁLOGO NÃO HÁ SALVAÇÃO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. O Papa Francisco, consciente de que muitos católicos, até os considerados praticantes, não foram iniciados na leitura e interpretação da Bíblia, instituiu o III Domingo Comum – que é hoje – dedicado a abrir o entendimento da Palavra de Deus nas suas diversas expressões humanas.

A este propósito, não se pode esquecer A Interpretação da Bíblia na Igreja, uma obra admirável da Comissão Pontifícia Bíblica, de 1993, para celebrar o Centenário da Encíclica Providentissimus Deus (Leão XIII) e do Cinquentenário da Divino afflante Spiritu (Pio XII), à luz da Dei Verbum do Concílio Vaticano II (1965).

A citada Interpretação da Bíblia na Igreja é uma obra importantíssima de libertação e estímulo, na Igreja Católica, da investigação bíblica que, desde o século XVIII, teve uma vida muito atribulada.

Não é possível, aqui, referir todo o seu conteúdo. Para realçar o seu interesse, permito-me, apenas, enumerar uma espécie de índice: I. Métodos e abordagens para a interpretação (método histórico-crítico, novos métodos de análise literária, abordagens baseadas na tradição, abordagens através das ciências humanas, abordagens contextuais, leitura fundamentalista); II. Questões de hermenêutica (hermenêuticas filosóficas, sentido da Escritura inspirada); III. Dimensões características da interpretação católica (a interpretação na tradição bíblica, a interpretação na tradição da Igreja, a tarefa do exegeta, as relações com as outras disciplinas teológicas); IV. Interpretação da Bíblia na vida da Igreja (actualização, inculturação, uso da Bíblia).

Esta obra foi publicada na Editora Rei dos Livros, que já não existe, mas acessível no Secretariado Geral do Episcopado.

Na história atribulada da exegese bíblica, não se pode ignorar a figura de Marie-Joseph Lagrange, O.P., fundador da Escola Bíblica de Jerusalém (1890) e da Revue Biblique (1891). Temos, no entanto, em português, parte das suas memórias numa obra fundamental: Recordações Pessoais. O Padre Lagrange ao serviço da Bíblia[1].

Já referi, aqui, muitas vezes, a falta de escuta do mundo de hoje e do estudo bíblico nas homilias dominicais que se perdem a repetir o texto e em exortações moralistas. Temos, no entanto, na Igreja Católica, o Papa Francisco que é um modelo de leitura e exposição contextual nas homilias cheias de imaginação e humor, donde brotam sempre surpresas, novidades que alimentam a vida. Nunca deixa adormecer os textos da liturgia.  Desejo que tenha muitos discípulos.

2. Este Domingo também vem enquadrado na Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. Para não se tornar uma rotina anual, importa que este tempo, dedicado à oração, não esqueça que todas as Igrejas, que se reúnem, devem ter consciência de que todas precisam de verdadeira reforma, de pedir perdão umas às outras pelo que falta para a unidade de todos os cristãos ao serviço de toda a humanidade. É um imperativo abrirem-se aos grandes desafios da paz, no mundo de ameaças e de guerras que não pensa nas vítimas. Como disse o Papa Francisco, é preciso vencer a indiferença e rejeitar a ideia de que os migrantes são um problema de ontem. O resultado desta perspectiva vê-se na própria desumanização dos migrantes concentrados em campos de recolha, onde acabam por ser presa fácil da criminalidade e dos traficantes dos seres humanos, ou por se lançar em desesperadas tentativas de fuga que às vezes terminam com a morte[2].

Por outro lado, se as Igrejas se derem conta, em diálogo franco, de que nunca haverá unidade sem diversidade, já podem rezar juntas, trabalhar juntas, estar ao serviço dos que mais precisam em todas as sociedades e tornarem-se todas Igrejas de saída para todas as periferias. Sem esse sentido da realidade, continuarão a esperar o fim do mundo para fazerem uma unidade mítica.

Nos últimos tempos, o Papa mostrou que o diálogo e a colaboração, entre cristãos e não cristãos, não devem conhecer limites, a Oriente, a Ocidente, no mundo todo, e já teve respostas muito fraternas.

3. O diálogo ecuménico das Igrejas cristãs já começou a reconhecer a importância do diálogo inter-religioso, para vencer a intolerância inter-religiosa, ainda activa em muitos países, onde não faltam os apelos ao genocídio das etnias indesejadas. As religiões não perdem nada no encontro umas com as outras, pelo contrário, manifestam, de forma mais nítida, a sua dimensão divina e humana. Hoje, porém, é tempo de abrir o diálogo a todas as pessoas de boa vontade. Essa é que é a vontade de Deus.

Nesse sentido, já foram assinados documentos extraordinários, como confessa o próprio Papa Francisco na Encíclica Fratelli Tutti[3]: «Nesta encíclica, quis reunir muitas dessas intervenções, situando-as num contexto mais amplo de reflexão. Além disso, se na redacção da Laudato si’ tive uma fonte de inspiração no meu irmão Bartolomeu, o Patriarca ortodoxo que propunha com grande vigor o cuidado da criação, agora senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi[4], para lembrar que “Deus criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos”».

Demos a palavra à saborosa narrativa da Encíclica: «Numa perspetiva mais ampla eu e o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb lembramos que o relacionamento entre Ocidente e Oriente é uma necessidade mútua indiscutível, que não pode ser substituída nem descuidada, para que ambos se possam enriquecer mutuamente com a civilização do outro, através da troca e do diálogo das culturas. O Ocidente poderia encontrar na civilização do Oriente remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo domínio do materialismo. E o Oriente poderia encontrar na civilização do Ocidente tantos elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural. É importante prestar atenção às diferenças religiosas, culturais e históricas que são uma componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização oriental; e é importante consolidar os direitos humanos gerais e comuns, para ajudar a garantir uma vida digna para todos os seres humanos no Oriente e no Ocidente, evitando o uso da política de duas medidas»[5].

O mundo voltou a viver sob ameaças de guerras em cadeia. O apelo ao diálogo parece uma ingenuidade. A verdade é outra: fora do diálogo não há salvação.

 

 

23. Janeiro. 2022



[1] Tenacitas, Biblioteca Dominicana, 2017

[2] Discurso do Papa Francisco aos Membros do Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé, 10 de Janeiro de 2022.

[3] 03. 10. 2020, nº 5

[4] Cf. A Fraternidade Humana em prol da Paz mundial e da convivência comum, entre o Papa Francisco e o Grão Imame Ahhamad Al-Tayyeb, a 4 de Fevereiro de 2019

[5] Fratelli Tutti, 136

domingo, 16 de janeiro de 2022

HISTÓRIA DE UM NOVO CAMINHO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Estamos em período de eleições. Os cristãos não podem pedir aos seus escritos fundadores, ao Novo Testamento, indicações para formar partidos políticos. Jesus Cristo não deixou nenhuma receita económica, política ou religiosa para governar a sociedade. Não é desprezo pela política. Esta é uma realidade humana fundamental, bem ou mal configurada segundo os povos e as culturas, que deveria ser para conseguir o bem comum, o bem de todo o povo. Mas vamos encontrar, nesses textos, algo de radicalmente novo acerca do poder económico, político e religioso.

A questão do poder pode ser observada nas relações entre Jesus e os seus discípulos. É tal a insistência de que eles não entenderam nada do sentido da vocação a que eram chamados, que só não espanta quem está habituado a ler os textos cristãos sem os questionar.

Segundo os quatro Evangelhos, Jesus frequentou o movimento dos penitentes que recorriam a João Baptista e foi baptizado por ele no rio Jordão. Isto tem toda a verosimilhança histórica. Só havia vantagens em ocultar este facto. Os discípulos de João poderiam sempre argumentar a superioridade do seu mestre: o vosso mestre é que foi baptizado pelo nosso e não o contrário. De facto, o movimento de Jesus começou pela ruptura com o movimento de João.

Jesus, tendo sido baptizado e estando em oração, o Céu rasgou-se e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. E do Céu veio uma voz: Tu és o meu Filho muito amado; em ti pus todo o meu amor[1]. Esta é a linguagem de um começo completamente novo. É a graça do Espírito Santo. Jesus abandona o mundo de João Baptista e parte para o deserto para interiorizar as consequências desse acontecimento inaugural.

No deserto não encontra a paz. É assaltado pelas tentações do messianismo económico, político e religioso. Jesus interpreta essas tentações como contrárias ao Reino de Deus. São tentações diabólicas, revestidas da linguagem do poder de dominação, mas não são ocasionais e não significa que estejam resolvidas de uma vez para sempre. S. Lucas tem o cuidado de dizer algo de extraordinário: Tendo acabado toda a tentação, o diabo deixou-o até o tempo oportuno[2].

Isto significa que toda a sua vida será uma vida tentada por um falso messianismo. Ele venceu-o, mas teve muitas dificuldades em convencer os próprios discípulos que escolheu. Contam os Actos dos Apóstolos algo de insólito. Mesmo depois da experiência de Jesus ressuscitado, os discípulos continuavam na mesma: Senhor, será agora que haveis de restaurar a realeza em Israel?[3] Jesus sente-se impotente perante tanto amor ao prazer de mandar e diz: enquanto não receberdes o Espírito que abalou a minha vida, continuareis na mesma. Referia-se ao Pentecostes.

2. Afinal, qual é o projecto de Jesus? O melhor é dar a palavra a S. Lucas. Conta que Jesus veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano da graça do Senhor.

Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-lhes: Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir. Todos davam testemunho em seu favor e admiravam-se com as palavras repletas de graça que saíam da sua boca.

Perguntemos: então, o que terá acontecido, a seguir a este espanto, para provocar um desentendimento total, entre ele e os seus conterrâneos e familiares? O texto, segundo diz a Bíblia de Jerusalém[4], reúne dois momentos diferentes, como se tivessem acontecido ao mesmo tempo. E esta reunião é importante porque diz o espanto e a decepção.

O que aconteceu foi uma autêntica revolução de que, ainda hoje, não nos damos conta. Vejamos. O texto de Isaías terminava assim: enviou-me para proclamar um ano da graça do Senhor, o dia da vingança da parte do nosso Deus.[5] Jesus atreveu-se a interromper a leitura para não ler o dia da vingança da parte do nosso Deus[6].

A Bíblia e sobretudo os Salmos respiram, por todo o lado, a vingança de Deus contra os inimigos. Ora, o que Jesus faz é assumir uma ruptura com essa teologia de Deus que mata e manda matar. Esse não é o seu Deus. O Reino de Deus que vem anunciar não tem nada a ver com um Deus violento. É mesmo a sua negação. O Deus da vingança não é cristão. O Papa Francisco não recorreu a nenhuma categoria teológica especial para recusar esse Deus. Bastou-lhe ligar, directamente, ao comportamento de Jesus que recusava um Deus vingativo.

3. Disse, no primeiro ponto, que Jesus venceu a tentação do messianismo económico, político e religioso, mas não conseguiu, apesar de todos os seus esforços, convencer os próprios discípulos que escolheu.

A problemática do poder de dominar não é um assunto menor dos quatro Evangelhos. Pelo contrário é, para todos eles, a questão fundamental que teve muitas manifestações e que, segundo S. Marcos, era mesmo essa a dificuldade em entenderem os gestos e as atitudes de Jesus. Era, por isso, o debate entre os discípulos quando o mestre não estava presente: quem seria o maior quando Jesus tomasse o poder?[7]

Jesus deu-se conta que havia conversas para as quais não era chamado e, por isso, perguntou: que andáveis vós a conversar pelo caminho? Sentiu mesmo a necessidade de uma reunião explícita para essa questão, mas nem foi preciso. Segundo S. Mateus, é a mãe dos filhos de Zebedeu que se mostra interessada num bom lugar para os filhos. Em S. Marcos, são os próprios, Tiago e João, que foram ter com Jesus: Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos. Disse-lhes: Que quereis que vos façaEles disseram: Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda. Isso provocou indignação nos outros. Todos procuravam o mesmo.

A resposta rotunda de Jesus é esta: não há lugares de poder para ninguém. Quem quiser ser o primeiro ponha-se ao serviço de todos. Inverte, assim, de forma radical, que o próprio do caminho cristão é o do serviço, o poder de servir, não o poder de dominar.

O debate actual sobre o poder na Igreja e os seus ministérios têm todos de ter a mesma base: ser cristão é prontificar-se a servir. Jesus disse-lhes: Os reis das nações imperam sobre elas e os que nelas exercem a autoridade são chamados benfeitores. Convosco, não deve ser assim; o que for maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve[8].

Voltaremos a esta questão fundamental para a vida da Igreja.

 

16. Janeiro. 2022



[1] Lc 3, 21-22

[2] Lc 4, 1-13

[3] Act 1, 6-9

[4] Cf. Lc 4, nota v que antecede o v.16. Importa ler o texto na integra (Lc 4, 16-30)

[5] Is 61, 1-2

[6] Lc 4, 16-30

[7] Mc 10, 35-45; Mt 20, 20-28; Lc 22, 24-27; Jo 13, 1-17

[8] Lc 22, 24-26

domingo, 9 de janeiro de 2022

O NATAL QUE NÃO PASSA Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Desde o século XVIII, foram muitas as pesquisas sobre o Jesus da história e o Cristo da fé. Hoje, já não estamos habitados pela fúria historicista. A grande questão actual é a da significação do itinerário de Jesus espelhado no Novo Testamento, quer seja nas epístolas, mas sobretudo nos quatro Evangelhos. Podemos sempre perguntarmo-nos: que sentido, que beleza, que responsabilidade, que alimento a sua presença viva traz à nossa vida quotidiana? Jesus é uma presença que alimenta a vida do amor, da esperança, da fé num mundo que, muitas vezes, parece absurdo. É a adesão à pessoa e à mensagem de Jesus Cristo que se torna a alma da nossa alma.

É verdade que a referência essencial do Natal é Jesus que «nasceu durante o reinado do imperador romano Augusto, certamente antes da morte de Herodes, o Grande, porque teve lugar na Primavera do ano 4 a. C. Não é possível precisar mais a data exacta do seu nascimento. Os historiadores coincidem em situá-la entre os anos 6 e 4 antes da nossa era. Provavelmente, nasceu em Nazaré, embora Mateus e Lucas falem de Belém, por razões teológicas. De qualquer maneira, Nazaré foi a sua primeira pátria. Os seus pais chamavam-se Maria e José»[1].

O Cristianismo não pode prescindir dessa referência à história. Jesus representa o que há de mais divino e humano na história evocada como história das religiões. Muitas vezes, na experiência espiritual, existe uma rivalidade entre Deus e o ser humano. Se se dá muito a Deus parece que roubamos o ser humano; se nos ocupamos muito do ser humano parece que roubamos a Deus, que perdemos o sentido da transcendência. O Natal de Cristo é insuperável. Porquê? Porque tornou inseparável a atitude para com Deus da atitude para com o ser humano em todas as suas expressões. Não existe uma atitude verdadeira com Deus sem o cuidado do ser humano. S. Mateus começou o seu Evangelho por revelar a verdadeira identidade de Jesus, mediante uma expressão do quotidiano: o nome que diz essa identidade é Emmanuel que significa Deus-connosco. É, também, a expressão definitiva do que o ser humano está chamado a ser. Seremos julgados pelas atitudes práticas da relação com os outros: todas as vezes que fizeste ou deixaste de fazer a um dos meus irmãos foi a mim que fizeste ou deixaste de fazer[2]. A autenticidade da relação com Deus identifica-se com a relação dos irmãos mais necessitados. A Primeira Carta de S. João exprime, de forma inequívoca, essa mesma realidade: «Se alguém diz: Eu amo a Deus, mas odeia o seu irmão, é mentiroso. Pois ninguém pode amar a Deus, a quem não vê, se não amar o seu irmão, a quem vê. O mandamento que Cristo nos deu é este: quem ama a Deus, que ame também o seu irmão»[3].

2. Sophia de Mello Breyner Andresen é, desde há muitos anos, uma das minhas companhias de Natal. Pertence-lhe uma multifacetada teologia narrativa muito original: Os três reis do Oriente. É um longo poema em prosa e um poema não suporta nem dá explicações. Apresento apenas uma pequena passagem, só como convite a uma nova leitura, perante a crise actual.

Um dos três reis do Oriente, depois de ter observado tudo, decepcionado com as consultas aos homens das ciências e da política, Baltazar virou-se para a religião.

(…) Na manhã seguinte, dirigiu-se ao templo de todos os deuses.

E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar: «Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força do domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses.»

Seguiu o rei para o segundo altar e leu: «Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses.»

Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu: «Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo um espírito ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram.»

E tendo passado pelos três altares, Baltazar interrogou os sacerdotes: – Dizei-me onde está o altar do deus que proteja os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore.

Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam: – Desse deus nada sabemos.

Naquela noite, o rei Baltazar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse: – Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?

A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre[4].

Parece-me vã a discussão sobre o aumento ou o decréscimo da religião, de que tanto se fala. Talvez seja preferível perguntar: que olhos me dá a fé para ver o mundo dos humilhados e dos oprimidos e que olhos me dá esse mundo para descobrir a autenticidade da fé?

3. António Marujo escreveu, para a revista E/Expresso[5], um texto sobre O Jesus impressionista contemporâneo, através do contributo de algumas figuras cristãs: «Esta viagem vai da Rússia à Palestina e dos Estados Unidos à Terra Santa. Inclui um teólogo assassinado talvez pelo KGB, um padre que acompanha homossexuais, um tradutor dos clássicos gregos e protestantes que falam de Jesus como alguém cuja personalidade marcou e continua a marcar gerações de pessoas pelo mundo fora, em todas as culturas. A investigação contemporânea do retrato de Jesus já não passa tanto pela história, pela teologia ou pela arqueologia. É uma busca impressionista, que radica na experiência espiritual».

No 7Margens (01.01.2022), retomou o texto dessas viagens, enriquecendo-o com uma selecção, entre as mais de belas pinturas da figura de Cristo.

Neste Domingo, celebra-se algo de extraordinário: a passagem de Jesus como discípulo do profeta austero, João Baptista, para autor de um caminho muito novo. Jesus não nasceu feito, foi-se fazendo como ser humano, na relação com Deus e com o mundo. Entrou no movimento dos penitentes que recorriam ao baptismo de João, mas algo curioso aconteceu que provocou uma ruptura espiritual com o seu venerado mestre: no momento em que Jesus, também baptizado, se achava em oração, o céu abriu-se e o Espírito Santo desceu sobre ele. Do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho bem-amado; eu, hoje, te gerei![6].

O Cristianismo, propriamente dito, começou com esta ruptura, como veremos em próximas crónicas.

 

 

09. Janeiro. 2022



[1] José Antonio Pagola, Jesus, uma abordagem histórica, Gráfica de Coimbra 2, 2008, p. 489

[2] Cf. Mt 1, 18-24 e 25, 31-46

[3] 1Jo 4, 20-21

[4] Contos Exemplares, Livraria Morais, 1ª Edição, 1962. A Porto Editora acaba de reeditar esta obra em Dezembro 2021, págs. 137-157

[5] Edição de 23 de Dezembro de 2021

[6] Lc 3, 21-22