1. O
Papa Francisco, consciente de que muitos católicos, até os considerados
praticantes, não foram iniciados na leitura e interpretação da Bíblia, instituiu
o III Domingo Comum – que é hoje – dedicado a abrir o entendimento da Palavra
de Deus nas suas diversas expressões humanas.
A
este propósito, não se pode esquecer A Interpretação da Bíblia na Igreja,
uma obra admirável da Comissão Pontifícia Bíblica, de 1993, para celebrar o
Centenário da Encíclica Providentissimus Deus (Leão XIII) e do Cinquentenário
da Divino afflante Spiritu (Pio XII), à luz da Dei Verbum do Concílio
Vaticano II (1965).
A citada Interpretação da
Bíblia na Igreja é uma obra importantíssima de libertação e estímulo, na
Igreja Católica, da investigação bíblica que, desde o século XVIII, teve uma
vida muito atribulada.
Não é possível, aqui,
referir todo o seu conteúdo. Para realçar o seu interesse, permito-me, apenas,
enumerar uma espécie de índice: I. Métodos e abordagens para a interpretação (método
histórico-crítico, novos métodos de análise literária, abordagens baseadas na
tradição, abordagens através das ciências humanas, abordagens contextuais,
leitura fundamentalista); II. Questões de hermenêutica (hermenêuticas
filosóficas, sentido da Escritura inspirada); III. Dimensões características da
interpretação católica (a interpretação na tradição bíblica, a interpretação na
tradição da Igreja, a tarefa do exegeta, as relações com as outras disciplinas teológicas);
IV. Interpretação da Bíblia na vida da Igreja (actualização, inculturação, uso
da Bíblia).
Esta obra foi publicada na
Editora Rei dos Livros, que já não existe, mas acessível no Secretariado
Geral do Episcopado.
Na história atribulada da
exegese bíblica, não se pode ignorar a figura de Marie-Joseph Lagrange, O.P.,
fundador da Escola Bíblica de Jerusalém (1890) e da Revue Biblique
(1891). Temos, no entanto, em português, parte das suas memórias numa obra
fundamental: Recordações Pessoais. O Padre Lagrange ao serviço da Bíblia[1].
Já referi, aqui, muitas
vezes, a falta de escuta do mundo de hoje e do estudo bíblico nas homilias
dominicais que se perdem a repetir o texto e em exortações moralistas. Temos,
no entanto, na Igreja Católica, o Papa Francisco que é um modelo de leitura e
exposição contextual nas homilias cheias de imaginação e humor, donde brotam sempre
surpresas, novidades que alimentam a vida. Nunca deixa adormecer os textos da
liturgia. Desejo que tenha muitos
discípulos.
2.
Este Domingo também vem enquadrado na Semana de Oração pela Unidade dos
Cristãos. Para não se tornar uma rotina anual, importa que este tempo, dedicado
à oração, não esqueça que todas as Igrejas, que se reúnem, devem ter
consciência de que todas precisam de verdadeira reforma, de pedir perdão umas
às outras pelo que falta para a unidade de todos os cristãos ao serviço de toda
a humanidade. É um imperativo abrirem-se aos grandes desafios da paz, no mundo
de ameaças e de guerras que não pensa nas vítimas. Como disse o Papa Francisco,
é preciso vencer a indiferença e rejeitar a ideia de que os migrantes são um
problema de ontem. O resultado desta perspectiva vê-se na própria desumanização
dos migrantes concentrados em campos de recolha, onde acabam por ser presa fácil
da criminalidade e dos traficantes dos seres humanos, ou por se lançar em
desesperadas tentativas de fuga que às vezes terminam com a morte[2].
Por outro lado, se as
Igrejas se derem conta, em diálogo franco, de que nunca haverá unidade sem
diversidade, já podem rezar juntas, trabalhar juntas, estar ao serviço dos que
mais precisam em todas as sociedades e tornarem-se todas Igrejas de saída
para todas as periferias. Sem esse sentido da realidade, continuarão a esperar
o fim do mundo para fazerem uma unidade mítica.
Nos últimos tempos, o Papa
mostrou que o diálogo e a colaboração, entre cristãos e não cristãos, não devem
conhecer limites, a Oriente, a Ocidente, no mundo todo, e já teve respostas
muito fraternas.
3. O
diálogo ecuménico das Igrejas cristãs já começou a reconhecer a importância do
diálogo inter-religioso, para vencer a intolerância inter-religiosa, ainda activa
em muitos países, onde não faltam os apelos ao genocídio das etnias indesejadas.
As religiões não perdem nada no encontro umas com as outras, pelo contrário,
manifestam, de forma mais nítida, a sua dimensão divina e humana. Hoje, porém,
é tempo de abrir o diálogo a todas as pessoas de boa vontade. Essa é que é a
vontade de Deus.
Nesse sentido, já foram
assinados documentos extraordinários, como confessa o próprio Papa Francisco na
Encíclica Fratelli Tutti[3]: «Nesta encíclica,
quis reunir muitas dessas intervenções, situando-as num contexto mais amplo de
reflexão. Além disso, se na redacção da Laudato si’ tive
uma fonte de inspiração no meu irmão Bartolomeu, o Patriarca ortodoxo que
propunha com grande vigor o cuidado da criação, agora senti-me especialmente
estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi[4],
para lembrar que “Deus criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos
deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos”».
Demos a palavra à saborosa narrativa da
Encíclica: «Numa perspetiva mais ampla eu e o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb
lembramos que o relacionamento entre Ocidente e Oriente é uma necessidade mútua
indiscutível, que não pode ser substituída nem descuidada, para que ambos se
possam enriquecer mutuamente com a civilização do outro, através da troca e do
diálogo das culturas. O Ocidente poderia encontrar na civilização do Oriente
remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo
domínio do materialismo. E o Oriente poderia encontrar na civilização do
Ocidente tantos elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da
divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural. É importante
prestar atenção às diferenças religiosas, culturais e históricas que são uma
componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização
oriental; e é importante consolidar os direitos humanos gerais e comuns, para
ajudar a garantir uma vida digna para todos os seres humanos no Oriente e no
Ocidente, evitando o uso da política de duas medidas»[5].
O mundo voltou a viver sob ameaças de guerras em
cadeia. O apelo ao diálogo parece uma ingenuidade. A verdade é outra: fora do
diálogo não há salvação.
23. Janeiro. 2022
[1]
Tenacitas, Biblioteca Dominicana, 2017
[2] Discurso
do Papa Francisco aos Membros do Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé,
10 de Janeiro de 2022.
[3] 03. 10.
2020, nº 5
[4] Cf. A
Fraternidade Humana em prol da Paz mundial e da convivência comum, entre o
Papa Francisco e o Grão Imame Ahhamad Al-Tayyeb, a 4 de Fevereiro de 2019
[5] Fratelli
Tutti, 136
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