segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

NATAL E NOVO ANO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. O Natal de Jesus de Nazaré inspirou, em todas as épocas, as mais belas obras de arte – música, literatura, pintura, arquitectura – e é possível encontrar nelas uma fonte de alegria porque, como diz Emir Kusturica, a felicidade produzida pela arte é o maior feito dos seres humanos[1]. Inspirou, sobretudo, uma nova arte de viver. Como escreveu Frederico Lourenço, na Introdução aos Quatro Evangelhos[2], «Na segunda metade do século I da era cristã, o manancial (já de si tão rico) de textos em língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de quatro textos que mudaram para sempre a História da Humanidade. Nesses textos, o leitor escolarizado da época ter-se-ia confrontado com uma temática muito diferente da que conhecia de Homero, Sófocles ou Platão. Pois nestes quatro textos não se falava das façanhas heroicas de reis e de guerreiros, nem se reportavam as conversas de aristocratas atenienses com o lazer e o dinheiro para se dedicarem à filosofia. Aqui falava-se de pescadores e de leprosos; falava-se de pessoas desprezadas pela baixa condição na sociedade, pelas suas deficiências físicas, pelos seus problemas de saúde mental; falava-se de figuras femininas que não eram as rainhas e princesas da epopeia e da tragédia gregas, mas sim mulheres normais da vida real (a queixarem-se da lida da casa ou a exercerem, talvez, a mais antiga profissão do mundo). Acima de tudo, nestes quatro textos falava-se de certo homem, filho de um carpinteiro nazareno: um homem carismático, cheio de compreensão por todo o tipo de sofrimento humano; um homem que, apesar de não ter praticado qualquer crime, acabou por morrer crucificado como se fosse um criminoso, no meio de dois ladrões. Esse homem – que muitos foram reconhecendo como “Ungido” (Khistós: Cristo) de Deus e até como Filho de Deus – era portador da mais extraordinária das mensagens, transmitida com palavras simples, por vezes sob a forma de pequenas histórias singelas, compreensíveis em qualquer aldeia.

«Por terem sido escritos num grego despretensioso, sem vestígio da sumptuosidade verbal dos grandes autores helénicos, é provável que estes quatro textos nem merecessem ao leitor culto da época o alto estatuto de literatura. No entanto, estes textos conquistaram o mundo antigo, tanto grego como romano. Lendo-os dois mil anos depois, não é difícil perceber porquê. Sobre um desses textos já se escreveu que se trata do “mais divino de todos os livros divinos”: na verdade, essa descrição assenta a qualquer um deles. São textos que – com a sua mensagem sublime veiculada por palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e releu ao longo de uma vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte».

Não se podia dizer melhor. Jesus não deixou nada escrito e os escritos acerca de Jesus não são biografias. Não são reportagens. Recolhem testemunhos de pessoas e comunidades que foram transformadas ao seu contacto. Esses escritos mostram que os discípulos tiveram muita dificuldade em entender o sentido da intervenção de Jesus. Procuravam uma figura e um caminho que nada tinham a ver com o Nazareno. O Mestre teve de lhes dizer: não há poder nenhum de dominação para ninguém. Quem procura poder seja o primeiro a servir, porque o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida por todos. A história das Igrejas cristãs repetiu, muitas vezes, o equívoco dos discípulos, mas também tem encontrado pessoas e grupos que nasceram de novo e, quando parece que está tudo perdido, retomam o caminho de Jesus com o seu Espírito.

2. Vivemos, neste momento, o mesmo desafio – nascer de novo – para semear esperança de que a transformação do mundo, na linha da mensagem de Jesus, é necessária e é possível. Podemos também repetir: a tarefa é imensa e os operários para esse mundo novo são poucos, muito poucos. O Papa Francisco tem mais admiradores do que seguidores, mas nem por isso, Francisco desarma.

Estes quatro textos, de há dois mil anos, não foram escritos para nos atar ao passado, àquele tempo.  Tomás de Aquino estava convencido e teve a ousadia de dizer: o que aconteceu há dois mil anos atinge todos os tempos e lugares. Cristo está vivo. São textos para dizerem como é que podemos mudar a nossa vida e não, apenas, a dos seus discípulos de há dois mil anos. Um credo fundamental foi encontrado por um autor pagão: em Deus vivemos, nos movemos e existimos[3].

Da Primeira Carta de S. João, chegou-nos algo de extraordinário: «O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida. (…) Isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa»[4]. É um passado que não passa. O cristianismo só tem sentido se abrir portas e janelas para o mundo da alegria.

Acusam Bergoglio de trair a autêntica tradição católica. Por isso, não o consideram verdadeiro Papa. Esta acusação parte de uma confusão entre Tradição e tradições e, muitas delas, estão em contradição com o Evangelho de Jesus Cristo. O que o Papa procura é, precisamente, recuperar a Tradição viva, submergida por tradições e costumes que a ocultam.

O Papa Francisco não manifesta muito apreço pelo reino das abstacções. Os seus textos referem-se sempre a situações concretas que procura socorrer o presente e abrir o futuro. Destaco, apenas, três documentos: o seu manifesto, Evangelii Gaudium, sobre a alegria do Evangelho, a esperança dum renascimento dos escombros da história, o início dum futuro luminoso; Laudato Si’ sobre uma ecologia integral para salvar a Casa Comum, a casa de todos; Fratelli Tutti que recupera o que há de mais genuíno e profundo: a fraternidade. A Idade Moderna consagrou a famosa trilogia – liberdade, igualdade e fraternidade –, mas é, precisamente, a fraternidade que falta fazer, não é só uma bela palavra.

3. A 8 de Dezembro de 1967, o Papa Paulo VI escreveu uma mensagem propondo a criação do Dia Mundial da Paz, a ser festejado no dia 1 de Janeiro de cada ano. Mas o Papa não queria que a comemoração se restringisse apenas aos católicos – para ele, a verdadeira celebração da paz só estaria completa se envolvesse todos os seres humanos. De facto, foi João XXIII que escreveu um verdadeiro manifesto pela Paz, dirigido a todos os seres humanos de boa vontade, a famosa Pacem in Terris (1963). O fundamento da Paz era a busca da verdade, na justiça, no amor e na liberdade, num momento em que a comunidade internacional parecia estar na direcção do terceiro conflito mundial.

Este ano, o Papa Francisco entrou e reforçou essa dinâmica com a espantosa mensagem: Diálogo entre gerações, educação e trabalho: instrumentos para construir uma paz duradoura.

É uma leitura obrigatória acerca do essencial. Com a paz tudo é possível, com as guerras, só destruição. Perante as ameaças, temos de fazer um Bom Ano!

 

 

 

26. Dezembro. 2021



[1] Cf. Ípsilon – Público 17.12.2021

[2] Frederico Lourenço, Bíblia, Volume I, Novo Testamento. Os Quatro Evangelhos, tradução do grego, Quetzal 2016

[3] Act 17, 28

[4] 1Jo 1, 1-4

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Natal 2021 “NÃO TENHAIS MEDO, SOU EU”

 

Na situação atual, em que estamos a viver, parece-me que a Palavra Deus do Evangelho de S. João (Jo 6, 16-21), venha muito a propósito. Hoje encontramo-nos, como os Apóstolos, numa barca à deriva sobre as ondas dum mar embravecido, açoitada pelos ventos contrários.

No meio da agitação das águas e mergulhados em densas trevas, os Apóstolos, apesar de já terem experimentado a divindade e o poder de Jesus, tiveram medo e começaram a gritar. Connosco muitas vezes sucede a mesma coisa: depois de tantas graças recebidas, ainda duvidamos.

Jesus, porém, conhecendo a falta de fé dos seus discípulos, não os deixa abandonados à merce dos seus temores. Em plena noite, vem ao encontro daqueles homens amedrontados, que pensavam ver um fantasma e gritou-lhes: «Sou Eu, não tenhais medo»!

No meio do turbilhão das águas, Pedro começou a afundar-se, teve medo e gritou: «Salva-me, Senhor!» Jesus estendeu a mão, segurou-o e disse: «Homem de pouca fé, porque duvidaste?» Hoje, como Pedro, quando estamos envoltos em densas trevas e a afundar na voracidade das águas tumultuosas, somos convidados a gritar como ele: «salva-me, Senhor!».

 

Quando entraram na barca, o vento amainou» (Cf Mt 14, 25-32).

É assim! Quando Jesus entra na nossa barca, toda a agitação se acalma e entra a bonança e a paz.

A falta de fé dos Apóstolos, encheu-os de medo, pensando que iriam perecer naquele mar embravecido. Hoje, é também a falta de fé de muita gente, que, na situação atual, leva a duvidar da presença de Jesus e do Seu poder libertador.

O Natal é uma carta de amor que Maria nos entrega, um convite de Nossa Senhora a acolher o Seu Filho. Ela aparece-nos grávida; convida-nos a aproximarmo-nos dela e a colocar a nossa mão sobre o seu ventre, para experimentar que Jesus já está presente ente nós. É ainda um convite a seguirmos o exemplo de Isabel sobre a qual Maria derramou o Espírito Santo que estava Nela e santificou o Baptista que estava no seu ventre. Maria diz-nos também que aproximemos o nosso ouvido para escutar os batimentos do coração do Seu Filho, que é Amor e Misericórdia sem limites e bate em uníssono com o coração Dela e com o nosso.

A Santíssima Virgem Maria, continua a pedir-nos que lavemos bem os nossos presépios e purifiquemos as nossas manjedouras (os nossos corações) a fim de lá depositar o Seu Filho. Quando Maria nos entrega o Menino, depois de limpar as manjedouras, quer que cuidemos da presença d’Ele em nós e que O levemos aos outros, para sermos continuadores da Sua Missão, pois, como todas as crianças, Jesus não gosta de ficar muito tempo parado, mas quer comunicar-se aos outros.

Para tal, precisamos de deixar crescer Cristo em nós para O levar, como Ela, a todas pessoas que ainda não O conhecem, seguindo e sendo a Estela de Belém. Neste Natal temos que aproveitar esta carta de amor que a Mãe nos dá, para O recebermos e O deixarmos crescer em nós.

Com Jesus na nossa barca, podemos avançar sem medo para o alto mar, no meio das maiores tempestades, açoitados pelos mais furiosos vendavais do ómicron e outras tribulações, na certeza que não nos afundaremos, porque Ele é Deus connosco e em nós.

Que todas e todos vós vos adorneis para a Festa com os dons do Espírito Santo, para celebrar dignamente o Natal.

Vosso irmão e amigo,

P. Alfredo Neres, mccj

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

OS INCONTÁVEIS ROSTOS DE DEUS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. As boas causas, para vencerem, precisam de bons argumentos.  O ridículo não é a melhor recomendação.  A defesa da igualdade não precisa de ofender a diversidade. Não se pode exigir que, na Europa, sejam erradicadas as palavras Natal e Maria como também ninguém pode ser obrigado a usá-las. Estou a referir-me a uma pergunta que fizeram ao Papa, durante a sua viagem de regresso a Roma, depois da peregrinação ecuménica a Chipre e à Grécia, à qual reagiu: «Ah, o senhor refere-se ao documento da União Europeia sobre o Natal. Isto é um anacronismo. Ao longo da história, muitos, tantas ditaduras procuraram fazê-lo. Pense em Napoleão. Pense na ditadura nazista, na comunista...É moda própria de uma laicidade aguada, de água destilada. Mas não resultou na história. Pensando na União Europeia, há uma coisa que considero necessária: a União Europeia deve assumir os ideais dos Pais fundadores, que eram ideais de unidade, de grandeza, e ter cuidado para não abrir espaço a colonizações ideológicas. Isto poderia chegar a dividir os países, causando o colapso da União Europeia. Esta deve respeitar cada país tal como está estruturado no seu interior: optar pela variedade dos países e não pela sua uniformização. Eu acredito que não a fará; não estava nas suas intenções. Mas tem de estar atenta, porque às vezes surgem e lançam-se projectos como este e não sabem o que fazer... Não! Cada país tem a própria peculiaridade, mas está aberto aos outros. A União Europeia tem a sua soberania, soberania dos irmãos numa unidade que respeita a singularidade de cada país. Deve ter cuidado para não ser veículo de colonizações ideológicas. Por isso, aquela intervenção sobre o Natal é um anacronismo».

A história das origens do Natal está feita e já a referi em anos passados.  Importa reflectir sobre a sua significação. O Natal proclama que sem incarnação não há Cristianismo. Sublinha que Deus não é o ser infinito cuja perfeição consistiria em se guardar puro de qualquer relação contingente. A humanidade de Deus é o traço decisivo do cristianismo e da cultura ocidental, presente nas várias mutações do humanismus perennis[1]. Em 1995, a Editorial Mário Figueirinhas, publicou com o título, A humanidade de Deus, o primeiro volume das minhas crónicas no Público.

As celebrações natalícias assumem formas diferentes, segundo os países e mesmo dentro de cada país. É a lei da incarnação. Quem julgar que o espírito do Natal cristão foi ou está a ser adulterado, por abusivos interesses comerciais, deve procurar suscitar e apoiar iniciativas dos movimentos de inclusão social e ajudar, também, a despertar para as linguagens culturais e cultuais que substituam as banalidades reinantes. Estas ofendem o Espírito de criatividade da autêntica fé cristã.

Como festa de reunião das famílias não pode esquecer os mais pobres, os sem abrigo, os doentes, as pessoas que vivem sós, os sem família. O nascimento de Jesus de Nazaré não aconteceu num palácio. A ideia de S. Francisco de Assis de perpetuar a representação das narrativas dos Evangelhos – o presépio – indica que os cristãos devem estar sempre de saída para as periferias. Foi numa periferia que Maria deu à luz, a Luz do Mundo. É da própria essência do Natal procurar caminhos de paz. As consequências de tantas guerras estão à vista com milhões de deslocados e refugiados. Neste momento, vivemos sob terríveis ameaças. Os cristãos só podem celebrar o Natal, proclamando e trabalhando por uma cultura da paz.

2. O Quarto Evangelho, dito de S. João, não se parece com as fantásticas representações populares de S. Mateus e de S. Lucas acerca do significado teológico do nascimento do Emmanuel, Deus-connosco. Elaborou, no entanto, um poema de inesgotável profundidade. Deus fez-se fragilidade humana: O Verbo fez-se carne e habitou entre nós e nós vimos a sua glória cheio de graça e de verdade. Estabelece um nítido contraste entre o regime da Lei e o do amor de pura gratuidade: A Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo. Insiste: nunca ninguém viu a Deus. O Filho unigénito, que está voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer[2].

Jesus de Nazaré é, portanto, o rosto humano de Deus[3]. Conta-se, no Quarto Evangelho que estamos a seguir, que um dia um discípulo, chamado Filipe, intrigado com tantas referências ao Pai, propôs a Jesus uma solução prática: mostra-nos o Pai e isso nos basta. O Mestre aproveitou para contrariar esse simplismo gnóstico, essa ideia de um Deus desligado da história e da experiência humana. João coloca na boca de Jesus uma declaração rotundamente anti gnóstica: Há tanto tempo que estou convosco, e não me ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes, então, 'mostra-nos o Pai'?[4]. A profundidade divina só pode acontecer e viver no que é verdadeiramente humano. Fora da história do mundo não há salvação, mas a salvação consiste, precisamente, em derrotar a desumanidade, nunca em criar mais desumanidade, como acontece muitas vezes em nome da religião e de um falso cristianismo.

3. O refrão do Salmo, cantado na Eucaristia de hoje, insiste: Mostrai-nos, Senhor, o vosso rosto e seremos salvos. Como já ficou dito, a Deus ninguém o viu, ninguém o pode reconhecer fora da história de contrastes da humanidade. Afinal, o rosto de Deus mostrou-se no curral de Belém, numa periferia. Foi revelado aos que não frequentavam o Templo nem as expressões da religião oficial.

O potencial das actuais celebrações natalícias manifesta-se quando elas desafiam, de todas as maneiras possíveis, a desumanidade que percorre todos os países e continentes. Se o não fizerem, colaboram na ocultação dos rostos Deus. É a colaboração de todos os que ajudam a não deixar ninguém abandonado e perdido na sua desgraça, que nos pode salvar. São esses os incontáveis rostos humanos da generosidade misericordiosa de Deus. Só nos salvamos, salvando.

Se, pelo contrário, as celebrações do Natal contribuíssem para nos afastar dos não-cristãos, seriam elas que estariam em contradição com o espírito do Natal. O Papa Francisco, desde o começo do seu pontificado, não só não descrimina os cristãos dos não-cristãos, como tudo faz para colocar todas as pessoas e grupos em diálogo que começa pelo acolhimento recíproco. Dentro e fora do Vaticano, em todos os seus encontros nas periferias de diferentes países, nunca faz acepção de pessoas ou de grupos. Tenta ajudar a renascer a alegria do Evangelho, adoptando o estilo de Jesus de Nazaré interpretado por Francisco de Assis. Quem luta contra as descriminações tem, no Natal cristão, um aliado universal, não um inimigo. A diferença cristã é contra a indiferença, mas a favor de todas as diferenças que revelam uma humanidade una e múltipla, de muitos rostos, fraterna. Santo Natal!

 

19. Dezembro. 2021



[1] Cf. José Augusto Mourão, Luz Desarmada, Ed. Prefácio, 2006, págs. 18 e 150

[2] Jo 1, 14. 16-18

[3] Cf. A. Cunha de Oliveira, O Rosto Humano de Deus, Instituto Açoriano de Cultura 2014

[4] Jo 14, 9

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

AJUDAR O ADVENTO DA ALEGRIA Frei Bento Domingues, O.P

 

1. Há exortações e exortações. Algumas parecem tão exageradas que exprimem mais o desejo de quem as faz do que a possibilidade de poderem ser levadas a sério pelos seus destinatários. A Missa deste Domingo começa com um imperativo impossível: alegrai-vos sempre! Parece uma exortação inútil, como se alguém estivesse triste porque queria. Aliás, o mesmo S. Paulo também faz outra exortação ainda mais inútil: alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram[1]. No entanto, a exortação que deu o nome ao 3º Domingo do Advento, ao alegrai-vos sempre, acrescenta: no Senhor, isto é, no Ressuscitado, alma do Domingo para se tornar alma de toda a semana. É este o próprio fundamento do movimento cristão, com modalidades diferentes, segundo os tempos e lugares.

Quem faz uma exortação não espera colocar as pessoas fora da história que é sempre uma mistura de bem e mal, de alegria e tristeza, de sofrimento e alívio. Com os seus escritos, S. Paulo não faz exercícios de psicologia voluntarista. Ele parte de convicções cristãs alicerçadas no Espírito que o move e recorda, aos seus destinatários, que são habitados não por um espírito de derrota, mas pelo Espírito que, em todas as situações, nos lembra não apenas que o mundo geme em dores de parto, mas que não estamos órfãos, irremediavelmente perdidos. No meio das maiores tragédias, é esse Espírito que nos lembra que Deus não é sim e não. É um sim de um amor indestrutível e, por isso, nos permite clamar Abba Pai[2].

Com isto não digo que Paulo pretende substituir as ciências humanas por exortações teológicas. Pelo contrário, estas são uma convocatória de todas as capacidades humanas e de algo que as excede.

Muitas vezes, se acusou o Cristianismo de ser uma glorificação do sofrimento, do sacrifício e de adiar a alegria e a felicidade para o céu. Seria com o sofrimento neste mundo que se ganharia o direito à felicidade eterna. Quando se faz da cruz o símbolo do Cristianismo, esquece-se, muitas vezes, o essencial. Jesus nunca quis a cruz, nunca desejou o sofrimento. Pelo contrário, passou a vida a “descrucificar” as pessoas que eram vítimas de doença, de descriminação, de desprezo, de todas as formas de sofrimento e de marginalização. S. João poderá dizer que Jesus veio para que todos tenham vida e vida em abundância[3]. Se perdeu a vida foi por nunca abdicar desta sua missão libertadora, a verdadeira vontade de Deus, vontade de um Deus mal servido por muitas expressões sacrificiais da religião do Antigo Testamento. Quando se diz que Jesus aceitou a morte para cumprir a vontade de Deus, é o supremo insulto a Jesus Cristo e ao seu Deus. Essa expressão deve ser classificada como blasfêmia. A vontade criadora e recriadora de Deus é de nunca se desistir da alegria. É por isso que a cruz só pode ser símbolo do Cristianismo mediante a Ressurreição, o triunfo sobre a cruz, sobre a morte. A primeira e última palavras pertencem à alegria.

2. Quando, na conjuntura actual, muitas vozes decretam a irremediável derrota da Igreja, importa saber de que igreja se está a falar. A mim, apetece-me dizer: alegremo-nos! E porquê? Acabou o falso triunfalismo das falsas expressões da Igreja.

Quando Bergoglio aceitou ser o Papa Francisco (de Assis), foi depois da renúncia de Bento XVI que se sentiu incapaz de enfrentar as reformas que se impunham. À medida que foi descobrindo a situação real do Vaticano, não caiu em depressão, como seria normal. Tomou consciência das urgentes tarefas cristãs que tinha de realizar. A referência fundamental não eram as suas capacidades nem os seus desejos. Não estava centrado no seu ego nem na vontade de poder. Estava centrado na Alegria do Evangelho, como mostrou no manifesto do seu pontificado: Evangelii Gaudium. Foi há oito anos e não aconteceu o que, muitas vezes, ocorre num governo que começa com muita generosidade e que, ao longo do tempo, vai esquecendo os seus compromissos. Quem ler o citado manifesto verifica uma fidelidade espantosa. Excede sempre o prometido.

Parece-me que, neste momento, está a atingir um ponto decisivo sem retorno possível ao passado, salvo ao passado das próprias fontes cristãs, nas quais, bebe um renovado impulso do Espírito. Quero dizer porquê:

A reforma da Igreja, uma Igreja outra, ao serviço de um mundo outro, não será obra de um Papa iluminado nem do sínodo de todos os bispos católicos. Tem de ser obra de toda a Igreja, conduzida pelo Espírito de Cristo, com a participação de todos os baptizados, de todos os que assumem a sua cidadania cristã. Exige a escuta da sociedade, a escuta das outras Igrejas cristãs, das outras religiões e dos sem religião, mas que desejam que a Casa Comum seja mesmo comum e que não se contentam com o mundo que temos de desigualdades abissais. Esta movimentação está em curso, mediante o Sínodo de toda a Igreja e que reclama uma participação activa, um passar a palavra, alargando a informação acerca das experiências múltiplas que estão a ser vividas, de uma forma ainda muito insipiente.

3. O Papa Francisco, ao lançar esse movimento, não foi para férias. Intensificou o que tem sido o percurso de oito anos de uma pessoa que já não é uma criança nem tem saúde de ferro.

Da sua peregrinação mais recente, a Chipre e à Grécia, já é possível documentar-se acerca de tudo o que aconteceu. Basta seguir o site do Vaticano. Não conhecemos ainda os frutos desse esforço, mas a forma como continuou a associar as relações entre ortodoxos e católicos revela, para lá das diferenças, uma grande comunhão inter-eclesial e um esforço conjunto para encarar as questões humanitárias e políticas, segundo as exigências do Evangelho. Foi um advento de alegria para o qual todos contribuíram, todos ajudaram e, sobretudo, a forma sincera como pediu perdão.

Na viagem de regresso a Roma, ao responder aos jornalistas, insistiu nos perigos dos populismos e das ameaças à democracia que se nota em muitos lugares. Quis também pedir perdão «por todas as divisões que existem entre os cristãos, mas sobretudo por aquelas que provocamos nós, católicos. Por último pediu perdão (este veio-me do coração!) pelo escândalo do drama dos migrantes, pelo escândalo de tantas vidas afogadas no mar».

Esta foi a peregrinação apostólica mais recente, mas revelou que, por ele, está pronto a ir a Moscovo ou, para se encontrar com o Patriarca Kirill, seja onde for. «Para conversar com um irmão, não há protocolos. Irmão é irmão, antes de todos os protocolos. E eu com o irmão ortodoxo – seja Kirill, Crysostomos ou Ieronymos, é sempre um irmão – somos irmãos e dizemos as coisas cara a cara. Mas como irmãos! É bom ver os irmãos discutir: é ótimo, porque pertencem à mesma Mãe, a Mãe Igreja, mas estão um pouco divididos, uns pela herança, outros pela história que os dividiu... Mas devemos andar juntos e procurar trabalhar e caminhar na unidade e pela unidade».

Não podemos baixar os braços. Igrejas que entrem num verdadeiro processo de conversão ajudam o Advento da Alegria. Preparam o Natal.

 

 

12. Dezembro. 2021



[1] Rm 12, 15

[2] Rm 8

[3] Jo 10, 10

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

A PRIMEIRA PEREGRINAÇÃO SINODAL Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Graças a alguns meios de comunicação[1], é possível acompanhar não apenas o que vai acontecendo na Igreja católica, mas no vasto e plural universo religioso, sempre com novas e antigas expressões da sensibilidade ou insensibilidade religiosa. Se, em certos países, é significativo o crescimento de pessoas que se vão afastando da religião institucional, sem abandonar as preocupações éticas e espirituais, esse não é um fenómeno global. A notícia de que, na célebre Universidade de Harvard (EUA), tenha sido eleito um judeu ateu para presidente do conjunto dos seus capelães, não foi recebida, em todo lado, como uma boa peça de humor. Vai longe o tempo em que uma das primeiras funções dessa Universidade era a formação do clero congregacionista e unitarista.

Tudo isto sem falar das revelações que percorrem alguns países acerca do horroroso fenómeno de abuso sexual de menores na própria Igreja. No momento em que escrevo, a Conferência Episcopal Portuguesa acaba de pedir ao Dr. Pedro Strecht, médico de psiquiatria da infância e adolescência, para coordenar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja, em Portugal.

Se nada do que é humano pode ser estranho a um cristão, as religiões, seja qual for a opinião acerca do seu passado e do seu presente, não podem ser encaradas como um fenómeno humano irrelevante ou marginal. Não é por acaso que, ao longo do tempo, tenham despertado o interesse e a investigação, confessional ou não, de historiadores, sociólogos, antropólogos, psicólogos, filósofos e teólogos.

Como já declarei, em crónicas recentes, neste momento, o que mais me impressiona é o que está a acontecer de extraordinário, na Igreja católica, não apenas acerca dos seus erros e pecados, no passado e no presente, mas na convocatória de todos para tornar a Igreja outra no serviço de um mundo outro. É a significação daquilo que se convencionou chamar sínodo dos bispos, quando, de facto, não pode nem quer ser uma tarefa exclusiva do clero. Os agentes e praticantes desta viragem radical devem procurar mobilizar todos os baptizados, sem exclusão de ninguém. Para ser uma Igreja actuante no mundo contemporâneo, não basta escutar atentamente as suas questões e desejos. É fundamental lançar o desafio: que contributo estais dispostos a dar para a sua purificação e participar na sua missão de levar ao mundo a alegria do Evangelho? Se o primeiro momento é precisamente o da escuta atenta e responsabilizante não se pode limitar a ouvir “as bocas” contra a Igreja ou apostar apenas nos “bons católicos”, nos conformistas.

Seria ridículo pensar que as reformas da Igreja são como as de um edifício que fechou para obras e que, só quando estas estiverem concluídas, se abrirá de novo ao culto. A Igreja não é um edifício, é um movimento de pessoas em situações muito diversas de adesão a Jesus Cristo e à novidade que Ele representa na história humana. Periodicamente, reúne-se para saber em que ponto está a ser vivida a caminhada. Uma verdadeira reforma da Igreja deve seguir o adágio antigo: ecclesia semper reformanda, a Igreja deve viver sempre em reforma. Não é por acaso que, nas celebrações da Eucaristia, do começo até ao fim, se afirme a consciência de pecadores em processo de conversão permanente. A alegria eucarística nasce do facto de ser um sacramento de viagem, de pessoas que ainda não estão acabadas, que não estão no eterno descanso.

2. Também no momento em que escrevo, ainda não tenho notícias do que aconteceu na importante peregrinação do Papa Francisco a Chipre e à Grécia, mas já dispomos de algo precioso: os seus desejos e preocupações[2]. Confessa que se preparou como peregrino a essas magníficas terras, abençoadas pela história, pela cultura e pelo Evangelho. Segue o sulco dos primeiros grandes missionários, especialmente os apóstolos Paulo e Bernabé.

Quem o acusa de estar a trair a tradição da Igreja deve ler, com atenção, a Mensagem do Papa que antecede esta sua peregrinação. É bom voltar à origem e, para a Igreja, é importante redescobrir a alegria do Evangelho. Esta deve ser a tarefa constante de todas as comunidades cristãs: encontrando-me convosco, poderei saciar-me nas fontes da fraternidade, tão preciosas no momento em que iniciamos um itinerário sinodal universal. Há uma graça sinodal, uma fraternidade apostólica que desejo fortemente e com grande respeito: é a expectativa de visitar as queridas Beatitudes Chrysostomos e Ieronymos, Chefes das Igrejas ortodoxas locais. Para marcar o carácter de uma peregrinação ecuménica, adianta: como irmão na fé, terei a graça de ser recebido por vós e de me encontrar convosco em nome do Senhor da paz. Só depois, se dirige às queridas irmãs e irmãos católicos, reunidos naquelas terras em pequenos rebanhos, que o Pai ama tão ternamente, e às quais Jesus, bom Pastor, repete: Não temais, pequeno rebanho![3]. Vou com afecto para vos levar o encorajamento de toda a Igreja católica!

Acrescenta: visitar-vos também me oferecerá a oportunidade de me saciar nas antigas nascentes da Europa:  Chipre, ramificação da Terra Santa no continente; Grécia, pátria da cultura clássica. Mas ainda hoje a Europa não pode prescindir do Mediterrâneo, mar que assistiu à propagação do Evangelho e ao desenvolvimento de grandes civilizações. O mare nostrum, que une muitas terras, convida a navegar juntos, não a dividir-nos, seguindo caminhos individuais, especialmente neste período em que a luta contra a pandemia ainda exige muito esforço e a crise climática é a nossa maior incumbência.

O mar, que abraça muitos povos, com os seus portos abertos lembra-nos que as fontes do viver juntos residem na aceitação recíproca. Sinto-me desde já recebido pelo vosso afecto e agradeço a quantos, há muito tempo, preparam a minha visita.

3. Esta mensagem do Papa não se limita a questões de ecumenismo eclesial. As Igrejas cristãs não podem estar centradas nas suas preocupações internas. Estariam a trair-se a si mesmas. O movimento ecuménico é um movimento de Igrejas em saída para todas as periferias. Bergoglio nunca esquece as migrações. Por isso, a sua mensagem não tem um final, mas um convite: penso também naqueles que, durante estes anos e ainda hoje, fogem de guerras e da pobreza, chegam ao litoral do continente e a outros lugares, e não encontram hospitalidade, mas hostilidade e também são instrumentalizados. São nossas irmãs e irmãos. Quantos perderam a vida no mar! Hoje o “nosso mar”, o Mediterrâneo, é um grande cemitério. Peregrino às fontes da humanidade, irei de novo a Lesbos, na convicção de que as nascentes do viver comum só voltarão a florescer na fraternidade e na integração: juntos! Não há outro caminho, e é com este sonho que vou até vós.

Como sempre, não procura o encontro só com católicos, mas com todos. Esta peregrinação do Papa inaugura o itinerário sinodal universal, de crentes e não crentes.

 

05. Dezembro. 2021



[1] Em Portugal, destaca-se o 7Margens, jornal digital que divulga informação sobre o fenómeno religioso, no sentido mais amplo do termo

[2] Cf. Mensagem em vídeo do Papa Francisco por ocasião da Viagem Apostólica a Chipre e à Grécia (2-6/12/2021), in www.vatican.va

[3] Lc 12, 32