domingo, 26 de novembro de 2023

Ovelhas ou cabritos? Pe. João, MC

 Feliz Festa de Cristo Rei

 

Ovelhas ou cabritos?

 

Ano A - 34º Domingo do Tempo Comum - Cristo Rei


Mateus 25,31-46: Em verdade vos digo: Quantas vezes o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes!

 

Com o domingo de Cristo Rei concluímos este ano litúrgico (ciclo A) durante o qual o Evangelho de São Mateus nos acompanhou. É uma boa ocasião para fazer um balanço deste caminho com Jesus: se fomos do número dos seus discípulos na escuta da sua palavra ou se, pelo contrário, fomos meros simpatizantes ocasionais. No final desta viagem, poderemos dizer que conhecemos melhor Jesus?

A passagem do Evangelho é a conclusão do último discurso de Jesus (Mateus 24-25) sobre o fim dos tempos e o regresso do Senhor. É o seu último ensinamento antes de encaminhar-se para a sua paixão. Jesus, que vai ser julgado pelas autoridades políticas e religiosas, proclama-se o juiz de toda a terra!Quando o Filho do homem vier na sua glória com todos os seus Anjos, sentar-Se-á no seu trono glorioso. Todas as nações se reunirão na sua presença”!

 

1. O significado profundo desta festa

A solenidade de “Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo” é uma festa relativamente recente, instituída por Pio XI em 1925 e posteriormente fixada no último domingo do ano litúrgico. Qual é o sentido desta festa? Indicar a direção do ano litúrgico e de toda a história, orientados para a recapitulação de todas as coisas em Cristo” e para a sua glorificação (ver primeira leitura e Efésios 1,10). Cristo é “o Alfa e o Ómega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim” (Apocalipse 22,13). Por isso, esta festa apresenta-nos o fim, o ponto de chegada da história e da nossa peregrinação. Vale a pena perguntarmo-nos: para onde vai a minha vida? Para a recapitulação em Cristo ou para a aniquilação?

 

2. Uma bofetada na cara de todos os reis!

O uso da terminologia Rei, Reino, Reinar, utilizada pela liturgia (ver o Evangelho e a segunda leitura) pode suscitar perplexidade, embora saibamos que se trata de uma linguagem bíblica figurada de que não podemos prescindir. Ainda por cima muitos fazem dela um uso triunfalista! O “rei” é coisa de outros tempos, com um sabor de absolutismo, de arbitrariedade e de abuso que gostaríamos de esquecer. Penso, porém, que proclamar Jesus como “Rei” é um facto revolucionário e provocador, porque Cristo é exatamente o oposto de qualquer rei. É um rei entronizado na cruz que se torna como uma bofetada na cara de qualquer “rei”, político ou religioso. Todo o poder político, religioso, social ou familiar que não esteja ao serviço está condenado à aniquilação, porque ele vem “aniquilar toda a soberania, autoridade e poder”(segunda leitura).

 

3. Um Rei, um Senhor para todos!

Todas as nações se reunirão na sua presença”. Quem são estas “nações”? A palavra em grego (ethnos) era utilizada para designar as nações pagãs, ou seja, aquelas que não pertenciam ao “povo” (laos) de Deus. As parábolas anteriores, por sua vez, referiam-se ao julgamento dos crentes. Isso não os exclui dos critérios de julgamento usados aqui por Jesus, pelo contrário, aumenta a sua responsabilidade: “O servo que, conhecendo a vontade do patrão, não dispuser ou não agir de acordo com a sua vontade, receberá muitas pancadas” (Lucas 12,47-48). 

 

4. As seis obras de misericórdia

Qual é o critério do Senhor para separar os “benditos” (à sua direita) dos “malditos” (à sua esquerda)? O exercício das seis obras de misericórdia! “Tive fome e destes-Me de comer; tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e Me recolhestes; não tinha roupa e Me vestistes; estive doente e viestes visitar-Me; estava na prisão e fostes ver-Me”. Jesus não fala em abstrato, de “justiça”, de “solidariedade” ou de “amor”, mas de gestos muito concretos de ajuda aos necessitados! 

Esta lista de obras de misericórdia é repetida quatro vezes, duas de forma positiva e duas de forma negativa. A repetição tem um objetivo mnemónico, para além de sublinhar a sua importância. 

O espanto é geral, tanto dos que estão à direita como dos que estão à esquerda: “Senhor, quando é que Te vimos...?” A resposta do Senhor é inaudita: “Em verdade vos digo: Quantas vezes [não] o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim [não] o fizestes”Nunca uma divindade se tinha identificado com a pessoa necessitada!

O discurso de Jesus não tem por objetivo intimidar-nos com a ameaça do castigo, mas ajudar-nos a reler a nossa vida do ponto de vista do fim. O verdadeiro julgamento realiza-se na história: o nosso caminho é já um percurso de bênção ou de maldição, de vida ou de morte! A linguagem forte e profética de Jesus quer abanar-nos para não corrermos o risco de arruinar a nossa vida! 

Pergunto-me: porquê “seis” (imperfeição) e não “sete” obras de misericórdia? Eu responderia: a sétima é o serviço da fé prestado pelos crentes (ver as parábolas dos talentos e das dez virgens).

 

5. O mistério da Encarnação não está concluído!

A identificação de Jesus com os pequeninos faz-nos pensar que o mistério da Encarnação ainda não está completo. Jesus não só se fez (um) homem, mas continua a encarnar-se em cada homem e mulher, assumindo todo o sofrimento humano.
Isto leva-nos a pensar também que o mistério eucarístico se prolonga nos pobres: “Este é o meu corpo... este é o meu sangue!”

 

Exercício espiritual para a semana

Invocar a vinda do Reino de Deus nas diferentes situações e lugares que frequentamos durante o dia: “Venha [aqui] o vosso Reino!”
“Nunca afastes de algum pobre o teu olhar” (Tobias 4,7, Dia Mundial dos Pobres).
Façamos um sério exame de consciência para ver se também nós não estamos a ser influenciados pela “globalização da indiferença” (Papa Francisco).

P. Manuel João Pereira Correia
Verona, 24 de novembro de 2023

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
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NATAL DA ALEGRIA PARA TODOS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Todos os anos nasce a pergunta: o dia 25 de Dezembro é uma data histórica ou uma construção simbólica? Actualmente, a Igreja Católica, as Igrejas Protestantes e as Igrejas Ortodoxas de Constantinopla, de Alexandria, de Antioquia, da Roménia, de Chipre e da Grécia celebram o Natal no dia 25 de Dezembro. Todas as outras Igrejas Ortodoxas o celebram no dia 6 de Janeiro, quando a Igreja Católica celebra a Epifania. A Igreja da Arménia celebra o Natal a 18 ou 19 de Janeiro.

Estas datas têm todas a ver com a resistência do sol ao seu aparente apagamento e com as festas pagãs a propósito do solstício de Inverno. Os romanos festejavam, a 25 de Dezembro, a festa do Sol invencível, a qual foi decisiva para situar a festa do nascimento do verdadeiro Sol, luz do mundo, nossa luz, Jesus Cristo.

A palavra solstício significa "sol parado". A partir desta data, a duração do dia começa a crescer. Por isso, na antiguidade greco-romana, o solstício de inverno simbolizava a vitória da luz sobre a escuridão.

As narrativas evangélicas da infância de Jesus são diferentes em Mateus e em Lucas e a sua poética também. Mas, quer uma quer outra, significam sempre o Natal de Jesus ou, como escreveu S. Mateus, Deus-connosco. Esta significação é extensiva às outras narrativas do Novo Testamento. Todas dizem que Deus está com todas as pessoas, de todos os povos, para que todas possam renascer, tornar-se cristãs. O universalismo cristão tem, aqui, a sua fonte.

Não vou entrar nos problemas da evolução histórica desta convicção cristã. Mas não vale tudo. Alguns dos chamados novos movimentos religiosos, que se apresentam para renovar a Igreja, tornaram-se os seus maiores problemas – idolatria, abuso de poder, escândalos sexuais. Como prevenir esta deriva sectária e os seus abusos?[1].

2.  A própria existência de vários textos fundadores da fé cristã mostra que não são a cópia uns dos outros. Mesmo os chamados quatro Evangelhos foram precedidos da convicção de Cristo actuante na diversidade cultural das diferentes comunidades. Foram surgindo em contextos sempre novos da evangelização, desde os primeiros tempos.

A criatividade, no interior das comunidades cristãs, foi considerada fruto do Espírito de Cristo que suscita não só a diversidade, mas também a sua unidade. Criatividade, unidade e diversidade viveram sempre em tensão em todos os tempos e lugares.

Os cuidados com a ortodoxia não podem tentar sufocar a liberdade do Espírito de Deus porque foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Paulo insiste em não nos deixarmos prender, de novo, ao que nos escravizou[2]. Podemos ouvir, hoje, esse grande aviso no coração dos próprios trabalhos do sínodo em curso. Este só tem sentido se for para abrir o presente à liberdade de Deus na criatividade da Igreja. Não se pode meter vinho novo em odres velhos. Por isso, não nos admiremos dos movimentos tradicionalistas que nunca desejaram o novo, mas o velho. Não podemos esquecer que é preciso um discernimento constante para não confundir as verdadeiras com as falsas reformas, como diria Yves Congar[3].

3. Desde há bastante tempo que o Natal se tornou uma festa de família, que deveria ser para todas as famílias, considerem-se elas cristãs ou não. Os próprios laços familiares vão mudando de sentido com as transformações da própria família ou da ausência de família por doenças, guerras ou catástrofes. Daí, a diversidade das suas festas: Natal dos hospitais, das prisões, dos sem abrigo e das múltiplas iniciativas das mais diferentes instituições. Ao contrário do que muitas pessoas julgam, não me parece que se devam desvalorizar essas iniciativas com o pretexto de que não resolvem problema nenhum e servem, apenas, para criar momentâneas ilusões.

No entanto, os cristãos não podem esquecer que o nascimento de Jesus é apresentado, em S. Lucas, como a festa dos que não frequentavam o Templo ou as Sinagogas – os pastores que cuidavam dos seus rebanhos, mesmo durante a noite. Vale a pena escutar esse texto:

«Um Anjo apareceu-lhes e a glória do Senhor envolveu-os de luz e ficaram assustados. O Anjo disse-lhes: Não tenhais medo, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo. Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Cristo-Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolto em panos e deitado numa manjedoura. De repente, juntou-se ao Anjo uma multidão do céu, louvando a Deus e dizendo: Glória a Deus nas alturas e paz na terra a todos os seres humanos, de todos os tempos e lugares[4].

É seguindo esta lógica que o Papa Francisco acaba de nos lembrar: o anúncio cristão é alegria para todos! Quando nos encontramos verdadeiramente com o Senhor Jesus, a maravilha deste encontro invade a nossa vida e pede para ser levada além de nós mesmos. É isso que Ele deseja, que o seu Evangelho seja para todos. Com efeito, nele existe um “poder humanizador”, um cumprimento de vida destinada a cada homem e mulher, porque Cristo nasceu, morreu e ressuscitou para todos. Para todos, sem excluir ninguém!»

Mas observa: «Talvez que a maior tentação consista em considerar o chamamento recebido como um privilégio. Por favor, não! O chamamento não é um privilégio, nunca! Não podemos dizer que somos privilegiados em relação aos outros, não! O chamamento é para um serviço. E Deus, quando escolhe alguém, é por amor de todos e para ir ao encontro de todos!

Também para evitar a tentação de identificar o cristianismo com uma cultura, com uma etnia, com um sistema. Desse modo, perderia a sua natureza verdadeiramente católica, isto é, para todos, universal. Não é um grupinho de eleitos de primeira classe. Não nos esqueçamos: Deus escolhe alguns para todos. É este o horizonte da universalidade. O Evangelho não é só para mim, é para todos, não o esqueçamos».

Como já tinha escrito na Evangelli gaudium (nº 14), «todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte maravilhoso, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração».

«Irmãos e irmãs, sintamo-nos ao serviço do destino universal do Evangelho, que é para todos, e distingamo-nos pela capacidade de sair de nós próprios. Para ser verdadeiro, o anúncio deve-nos fazer sair do egoísmo e ter a capacidade de superar todos os limites»[5].

As festas do Natal anunciam e denunciam o Natal que falta!

 

 

26 Novembro 2023



[1] Cf. Manuel Pinto, Novos movimentos religiosos: como prevenir a deriva sectária e de abusos?, 7Margens, 20.11.2023.

[2] Gal 5, 1

[3] Vraie et fausse reforme dans l’Église, Cerf, Paris, 1950

[4] Cf. Lc 2, 1-20; ver genealogia de Jesus: Lc 3, 23-38

[5] Cf. Audiência de 22.11.2023, www.vatican.va

domingo, 19 de novembro de 2023

Três mal-entendidos, três pistas de leitura e três propostas - Pe. Manuel João, MC

 Três mal-entendidos, três pistas de leitura e três propostas

 

Ano A - 33º Domingo do Tempo Comum
Mateus 25,14-30: 
Muito bem, servo bom e fiel. Porque foste fiel em coisas pequenas, confiar-te-ei as grandes. Vem tomar parte na alegria do teu senhor!

 

Estamos no penúltimo domingo do ano litúrgico. O Evangelho oferece-nos a parábola dos talentos, que faz parte do "discurso escatológico", o quinto e último discurso de Jesus segundo o Evangelho de São Mateus. O Senhor dá-nos instruções sobre o modo como o discípulo se deve comportar enquanto espera o seu regresso no fim dos tempos. No domingo passado, com a parábola das dez virgens, Jesus convidou-nos à vigilância: "Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora". Este convite é retomado hoje por São Paulo na segunda leitura: “O dia do Senhor vem como um ladrão noturno... Por isso, não durmamos como os outros, mas permaneçamos vigilantes e sóbrios”. Hoje, porém, com a parábola dos talentos, a tónica é colocada na diligência. A expectativa do cristão caracteriza-se pelo seu empenhamento no mundo.

Neste domingo, celebramos também o Dia Mundial dos Pobres, instituído pelo Papa Francisco. O tema proposto para este ano é: Nunca afastes de algum pobre o teu olhar”. Este Dia está ligado à Festa de Cristo Rei, no próximo domingo, na qual o Senhor nos revelará uma presença misteriosa da sua realeza nos pobres.

 

Três mal-entendidos

Antes de abordar a parábola, gostaria de mencionar três mal-entendidos que correm o risco de deturpar a sua compreensão.

1) O primeiro é pensar que a parábola é um incentivo ao activismo, à produtividade e à eficiência, tão promovidos na sociedade actual. Como se as "obras" pudessem trazer-nos a salvação!

2) O segundo é pensar que quando falamos de "talentos" nos referimos aos nossos dons naturais, como quando dizemos que uma pessoa "tem talentos". De facto, a palavra grega "talento" foi transmitida às nossas línguas por esta parábola. É claro que os dons naturais, as nossas capacidades e, sobretudo, o próprio dom da vida, também devem ser desenvolvidos, mas a parábola fala de outra coisa!

3) O terceiro mal-entendido é ler a parábola numa chave individualista. Infelizmente, a educação que recebemos põe muitas vezes a tónica no empenho individual "para salvar a própria alma", negligenciando a dimensão eclesial. Na realidade, os três servos - aos quais devemos acrescentar a "mulher virtuosa" da primeira leitura e a "mulher fecunda" do salmo responsorial - representam toda a comunidade eclesial!

 

Três pistas de leitura 

1. O QUE é que o talento representa? O talento não era uma moeda, mas uma medida de peso ("talento" em grego significa "peso"). Seria, por assim dizer, uma espécie de grande lingote de prata, que pesaria cerca de trinta quilos, portanto um verdadeiro tesouro. O que é que o talento representa na parábola? São os tesouros do Reino que Jesus nos confiou: a sua Palavra, a Graça, o Espírito Santo... Penso sobretudo no dom da fé, esta luz que não deve ser colocada "debaixo do alqueire, mas no candelabro" (Mt 5,15) para iluminar a nossa existência e a vida da Igreja e do mundo!

2. QUEM são os servos? O homem rico da parábola, que “parte de viagem”, é facilmente identificável: é o Senhor ressuscitado que subiu ao céu. Os servos somos nós seus "ministros" a quem Jesus confiou, com grande generosidade e confiança, os tesouros do Reino. Os três representam a Igreja inteira! A nós, pela fé, foi-nos confiado o Tesouro do Reino, que é a própria pessoa de Jesus.

3. ONDE fazer frutificar os talentos? A Igreja não é uma "sala de espera" onde se “dormita” à espera do regresso de Jesus. O Senhor enviou-nos ao mundo para fazermos frutificar o talento da fé, quer tenhamos "muita" ou "pouca" fé! Recordo-me de um episódio da minha vida de jovem missionário. Destinado a uma nova paróquia (Adidogome), nos arredores da capital do Togo, fiquei surpreendido por haver apenas três comunidades cristãs, apesar de existirem vários coros, associações e grupos de oração. Disse-lhes: "Eu vim de longe, percorri milhares de quilómetros para vir anunciar-vos o Evangelho, e vocês não são capazes de percorrer alguns quilómetros para o anunciar nas aldeias vizinhas? Saibam que nenhum grupo tem direito de cidadania na comunidade cristã se não se empenhar no apostolado!" Atribuí a cada grupo uma aldeia. Alguns anos mais tarde, havia cerca de vinte capelas e, atualmente, várias tornaram-se novas paróquias!
O cristão que não proclama a sua fé enterrou-a e já celebrou o seu funeral!

 

Três propostas de reflexão

1) Agradece ao Senhor pelos dons que te concedeu, especialmente o dom da fé. Pergunta a ti mesma/o se há algum "talento" que enterraste por preguiça, comodismo ou medo de arriscar. E lembra-te que "A todo aquele que tem, dar-se-á mais e terá em abundância; mas, àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado".

2) Perante as dificuldades e a tentação do desânimo no teu empenho cristão, deixa ressoar no teu coração esta palavra/promessa de Jesus: "Muito bem, servo bom e fiel. Porque foste fiel em coisas pequenas, confiar-te-ei as grandes. Vem tomar parte na alegria do teu senhor".

3) Em que campo concreto achas que o Senhor te convida a fazer frutificar os teus "talentos"? Talvez quisesses fazê-lo "noutro lugar" ou noutras condições mais "ideais". Também eu já me queixei ao Senhor: "Porque não me deixaste continuar a semear no vasto campo do mundo?" E o Senhor fez-me compreender que o solo mais fértil é a pequena horta à volta da minha cadeira de rodas! Lembremo-nos, no entanto, que um campo privilegiado para investir os nossos talentos é o dos pobres!

 

P. Manuel João Pereira Correia
Verona, 17 de novembro de 2023

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
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O QUE FAZEMOS DOS NOSSOS TALENTOS? Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. É muito repetida a afirmação atribuída a Jesus de que pobres sempre teremos entre nós como se fosse uma abençoada fatalidade, uma bem-aventurança premiada com o céu! É o resultado da leitura de alguns versículos do Evangelho fora do seu contexto. Se assim fosse, não valeria a pena lutar contra essa fatalidade. O contexto destas afirmações é simplesmente sublime, um gesto apaixonado de amor[i].

Nos Actos dos Apóstolos[ii], o combate à pobreza é radical. É o resultado da conversão ao movimento de Jesus. Nas primeiras comunidades cristãs, não havia pobres porque os que tinham posses partilhavam entre eles, segundo as necessidades de cada um.

Que pretendia o Papa Francisco ao instituir, em 2017, o Dia Mundial dos Pobres? Seria para confirmar que pobres sempre teremos entre nós ou para combater essa afronta à dignidade humana, à fraternidade universal – Fratelli Tutti?

Existem muitos estudos acerca da pobreza e das formas de a erradicar das sociedades humanas[iii]. Segundo o Papa, é fácil cair na retórica, quando se fala dos pobres. Tentação insidiosa é também parar nas estatísticas e nos números. Os pobres são pessoas, têm rosto, uma história, coração e alma. São irmãos e irmãs com os seus valores e defeitos, como todos, e é importante estabelecer uma relação pessoal com cada um deles. O livro bíblico de Tobias ensina-nos a ser concretos no nosso agir com e pelos pobres. É uma questão de justiça que nos obriga, a todos, a irmos ao encontro uns dos outros, favorecendo a harmonia necessária para que uma comunidade se possa identificar como tal.

A recordação, que o velho Tobite pede ao filho para guardar, não se reduz simplesmente a um acto da memória nem a uma oração dirigida a Deus. Faz referência a gestos concretos, que consistem em praticar boas obras e viver com justiça. E a exortação torna-se ainda mais específica: Dá esmolas, conforme as tuas posses. Nunca afastes de algum pobre o teu olhar, e nunca se afastará de ti o olhar de Deus.

Que a nossa solicitude pelos pobres seja sempre marcada pelo realismo evangélico. A partilha deve corresponder às necessidades concretas do outro e não ao meu supérfluo de que me quero libertar[iv].

2. Por coincidência, na celebração eucarística deste Domingo – Dia Mundial dos Pobres –, é proposta a estranha parábola dos talentos. Cada talento seria o correspondente, no dinheiro de hoje, entre €250 000 e €300 000[v]. Não é nessa correspondência monetária que me vou fixar. No entanto, essa correspondência ajuda a entender o sentido da zanga do senhor do dinheiro por algo que parece muito pouco. Normalmente, achamos uma injustiça pedir contas pela insignificância de um talento e aumentar com ele o que já tem dez.

A correspondência monetária ajuda a entender que, afinal, um talento era muito dinheiro e com ele podia ser feito ainda mais. O melhor é ler essa parte do texto: «Veio, finalmente, o que tinha recebido um só talento: Senhor, disse ele, sempre te conheci como homem duro, que ceifas onde não semeaste e recolhes onde não espalhaste. Por isso, com medo, fui esconder o teu talento na terra. Aqui está o que te pertence. O senhor respondeu-lhe: Servo mau e preguiçoso! Sabias que eu ceifo onde não semeei e recolho onde não espalhei. Pois bem, devias ter levado o meu dinheiro aos banqueiros e, no meu regresso, teria levantado o meu dinheiro com juros. Tirai-lhe, pois, o talento, e dai-o ao que tem dez»[vi].

Por causa dessas confusões, vou tomar a liberdade de usar a palavra talentos para referir as capacidades e os recursos que temos e não os investimos para mudar as situações de miséria ou calamidade.

Vivemos num mundo em que são gastos os seus recursos para o deixarmos pior do que o encontrámos. O Papa Francisco diz, de uma forma muito clara, que «de uma vez por todas acabemos com a atitude irresponsável que apresenta a questão apenas como ambiental, verde, romântica, muitas vezes ridicularizada por interesses económicos. Admitamos, finalmente, que se trata de um problema humano e social em sentido amplo e a diversos níveis. Por isso, requer-se o envolvimento de todos. Por ocasião das Conferências sobre o Clima, chamam frequentemente a atenção as ações de grupos ditos radicalizados; mas, na realidade, eles preenchem um vazio da sociedade inteira que deveria exercer uma sã pressão, pois cabe a cada família pensar que está em jogo o futuro dos seus filhos»[vii].

3. Ninguém está dispensado de fazer render as suas capacidades, sejam grandes ou pequenas. Por isso, na educação familiar e em todas as instituições educacionais, sobretudo nas ditas católicas, importa ajudar a fazer a seguinte pergunta: que vou fazer da minha vida, como vou desenvolver as minhas capacidades e a favor de quem?

Geralmente, as famílias e as escolas preocupam-se com a orientação profissional para puro benefício individual. Mesmo quando se fala de educação para os valores, importa perguntar: mas que valores?

As parábolas fazem parte da linguagem de Jesus e são muitas, mas nenhuma delas é suficiente para explicar a complexidade cristã da vida individual e colectiva. Não é por acaso que S. Mateus reuniu três no capítulo 25. As duas primeiras – a das virgens e a dos talentos – parecem brilhantes, mas não ultrapassam o individualismo, nunca olham para o lado, para o desgraçado, para o pobre. É a terceira que dá sentido ao desenvolvimento das capacidades e recursos individuais.

No texto, é a própria História universal que vai a julgamento. O Senhor da História dirá a uns: Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo. Então, os justos vão responder-lhe: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te? E o Senhor da História vai dizer-lhes: Em verdade vos digo. Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.

Nesta parábola, o que nos julga é o bem ou o mal que fazemos ou deixamos de fazer, seja a quem for. É a pessoa necessitada que é sagrada. Na interpretação religiosa, é o próprio Deus que se identifica com as pessoas que precisam de ajuda.

Há um Dia Mundial dos Pobres para que os ricos, pessoas ou países, não se esqueçam do destino universal dos bens.

 

 

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[i] Cf. Mt 5, 3 e Jo 12, 7-8

[ii] Act 4, 12-14

[iii] Cf. Observatório Nacional. Luta contra a pobreza: Pobreza e Exclusão Social em Portugal. Relatório 2022

[iv] Cf. Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial dos Pobres, 2023

[v] Cf. Nota de Federico Lourenço ao texto da parábola dos Talentos em S. Mateus

[vi] Cf. Mt 25, 14-30

[vii] Cf. Laudate Deum, nº 58

sábado, 11 de novembro de 2023

Há um amanhã que é demasiado tarde! - Pe. Manuel João, MC

 Manuel João - Há um amanhã que é demasiado tarde!

Ano A - 32º Domingo do Tempo Comum


Mateus 25,1-13: Vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora!

Nos três últimos domingos do ano litúrgico, a Igreja convida-nos a meditar sobre os “últimos tempos”, os do regresso do Senhor, seu Esposo. Neste ano, em que o evangelho de Mateus nos acompanhou, concluiremos com o último dos cinco discursos que estruturam o seu evangelho, o discurso escatológico (do grego eschaton, a realidade última). Num contexto de convite à vigilância, Mateus oferece-nos três parábolas de Jesus sobre o que significa estar vigilante: o servo fiel e prudente que espera o regresso do seu senhor (que não leremos), as dez virgens (parábola de hoje) e a parábola dos talentos (próximo domingo), concluindo com o juízo final (domingo de Cristo Rei). 

 

Uma lâmpada na noite

A parábola não é simples porque tem alguns traços improváveis. Isso faz parte do estilo das parábolas, que muitas vezes introduzem algo que vai contra o senso comum e a lógica da realidade, a fim de chamar a atenção para a mensagem final. 

O reino dos Céus pode comparar-se a dez virgens, que, tomando as suas lâmpadas, foram ao encontro do esposo”. Dez simboliza a totalidade. As dez virgens representam toda a gente. A nossa vida é uma saída ao encontro do Esposo, conscientes ou não. Mas é noite, uma noite longa. Precisamos de uma lâmpada para afastar a escuridão, pelo menos o suficiente que nos permita dar um passo em frente. É a luz da fé. “Lâmpada para os meus passos é a Tua palavra, luz para o meu caminho” (Salmo 109). 

Cinco eram insensatas e cinco eram prudentes”. Há uma maneira de viver como insensatos e outra como prudentes/sapientes. E aqui se divide em duas partes distintas: a humanidade inteira, crentes e não crentes. Devemos perguntar-nos: a qual destas duas partes pertencemos? E não se trata de uma pergunta qualquer, mas de uma antecipação do exame final da nossa existência: uma vida realizada, “sensata” isto é, com sentido, ou uma vida irremediavelmente desperdiçada, “insensta”, sem sentido! O mundo não está dividido entre ricos e pobres, entre inteligentes e ignorantes, entre patrões e servos, mas entre pessoas insensatas e pessoas sapientes!

Em que consiste a insensatez e a sapiência? “As insensatas, ao tomarem as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo, enquanto as prudentes, com as lâmpadas, levaram azeite nas almotolias”. A diferença parece pequena, insignificante, mas revelar-se-á decisiva. Sem alimentar a lâmpada, a luz apaga-se e a escuridão da noite invade a vida. No final do Sermão da Montanha, Jesus diz que o insensato constrói a sua casa sobre a areia e o prudente ou sábio sobre a rocha (Mateus 7,24-27).

Como o esposo se demorava, começaram todas a dormitar e adormeceram”. Todas foram vencidas pelo sono! Mateus está certamente a pensar na sua própria comunidade, no final do primeiro século, que tinha aderido à fé com entusiasmo, mas que, vencida pelo cansaço da longa espera do regresso do Senhor, esmorecera. São Pedro ilustra bem esta situação de crise: “Onde está a sua vinda, que prometeu? Desde o dia em que os nossos pais fecharam os olhos, tudo continua como no princípio da criação!” (2 Pedro 3,4). Este pode ser também o nosso sentimento. Basta olhar para tantas das nossas comunidades cristãs, adormecidas, sem entusiasmo, desiludidas.... Depois do Concílio Vaticano II, esperava-se uma nova primavera para a Igreja, mas os ventos impetuosos do secularismo e dos escândalos sufocaram-na. Esperava-se que a guerra e a fome se tornassem memórias distantes do passado, mas esses pesadelos voltaram. Em tudo isto, Deus parece cada vez mais ausente. À pergunta do profeta: “Até quando?”, a resposta continua a ser: “O justo viverá pela sua fé!” (Habacuc 2,4). “Mas será que o Filho do Homem, quando vier, encontrará fé sobre a terra?” (Lucas 18,8).

 

Lâmpadas sem azeite

No meio da noite ouviu-se um brado: ‘Aí vem o esposo; ide ao seu encontro’. Então, as virgens levantaram-se todas e começaram a preparar as lâmpadas”. No meio da noite do mundo, um grito! Como o da noite do Êxodo (Sabedoria 18,14-15). Queremos prever tudo, planear tudo, mas há acontecimentos que nos apanham sempre de surpresa! Então, a verdade da nossa vida será revelada: se o nosso sono foi o sono dos insensatos ou o sono de um coração enamorado: “Eu durmo, mas o meu coração vigia” (Cântico 5,2). 

As insensatas disseram às prudentes: ‘Dai-nos do vosso azeite, que as nossas lâmpadas estão a apagar-se’. Mas as prudentes responderam: ‘Talvez não chegue para nós e para vós. Ide antes comprá-lo aos vendedores’”. O que significa o azeite? Embora todos concordem que a lâmpada é a fé, há opiniões diferentes sobre o azeite. A maioria pensa em obras de caridade ou em pôr em prática a Palavra de Deus. Cada um de nós pode pensar qual será o “azeite” de que precisa para alimentar a chama da sua vida. Esse “azeite” só tu o podes obter. Não o podemos receber “por procuração”!

 

Uma porta fechada, um hoje sem amanhã!

Mas, enquanto foram comprá-lo, chegou o esposo. As que estavam preparadas entraram com ele para o banquete nupcial; e a porta fechou-se. Mais tarde, chegaram também as outras virgens e disseram: ‘Senhor, senhor, abre-nos a porta’. Mas ele respondeu: ‘Em verdade vos digo: Não vos conheço’”. A parábola retoma o que Jesus tinha dito no Sermão da Montanha: “Nem todo aquele que me diz: "Senhor, Senhor", entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus” (Mateus 7,21-). 
“E a porta fechou-se”! “Batei e abrir-se-vos-á!” (Lucas 11,9-10). Demasiado tarde! É o fim de todas as oportunidades! Não é verdade que “nunca é tarde demais”! “O melhor tempo da vida passa-se a dizer "é demasiado cedo", depois "é demasiado tarde"” (Gustave Flaubert).

Portanto, vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora!” A vida desenrola-se no “hoje” da nossa vida. “Eis agora o tempo favorável, eis agora o dia da salvação!” (2 Coríntios 6,2). “Exortai-vos, pois, uns aos outros todos os dias, enquanto durar este dia” (Hebreus 3,13). “O que é específico do cristão?” - pergunta São Basílio. “Estar vigilante todos os dias e todas as horas e estar pronto para fazer plenamente a vontade de Deus, sabendo que na hora em que não pensamos o Senhor vem”.

 

P. Manuel João Pereira Correia 
Verona, 10 de outubro de 2023

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

UMA IGREJA DE TODA TRIBO, LÍNGUA, POVO E NAÇÃO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Confesso que a Carta ao Povo de Deus, publicada no passado dia 25, me deixou desconsolado. Dois anos de trabalhos (2021-2023) só para aquilo?  Não podia ser! Agora, já é possível ter acesso ao Relatório da primeira Assembleia do Sínodo e fiquei consolado com o que li. É um documento longo e não esconde nada. Em cada número, apresentam as convergências, as questões que precisam de ser abordadas e as propostas.

Vou destacar apenas algumas convergências que também evocam a Festa de Todos os Santos que celebrámos na passada quarta-feira: Uma Igreja de todas as tribos, línguas, povos e nações[i].

O Sínodo chama, felizmente, a atenção para os contextos culturais, históricos e regionais em que a Igreja está presente e que revelam diferentes necessidades espirituais e materiais. Isto molda a cultura das Igrejas locais, as suas prioridades missionárias, as preocupações e os dons que cada uma traz para o diálogo sinodal, e as línguas com as quais se expressam. Isso exigirá que muita coisa terá de ser revista para marcar a abertura universal da Igreja, mas a partir da singularidade de cada comunidade.

As igrejas vivem em contextos cada vez mais multiculturais e multirreligiosos, nos quais é essencial o compromisso de diálogo entre religião e cultura juntamente com os outros grupos que compõem a sociedade. Viver a missão da Igreja nestes contextos exige um estilo de presença, serviço e anúncio que procure construir pontes, cultivar a compreensão mútua e empenhar-se numa evangelização que acompanha, escuta e aprende.

Em alguns lugares, o anúncio do Evangelho tem sido associado à colonização e até ao genocídio. Evangelizar nestes contextos exige reconhecer os erros cometidos, aprender uma nova sensibilidade para estas questões e acompanhar uma geração que procura forjar identidades cristãs para além do colonialismo. Respeito e humildade são atitudes fundamentais para que cada tribo, língua, povo e nação reconheça que nos complementamos e que o encontro com diferentes culturas pode enriquecer a experiência e o pensamento da fé das comunidades cristãs[ii].

Tudo isto vai exigir uma mudança na própria forma de fazer Teologia. O Papa acaba de dar o seu contributo na Carta Apostólica dirigida à Academia Pontifícia de Teologia[iii].

2. Era inevitável o confronto provocado pela actual extensão dos conflitos, com o comércio e utilização de armas cada vez mais poderosas. Esta questão, levantada em vários grupos, exige uma reflexão e formação mais atentas para lidar com os conflitos de forma não violenta. Esta é uma contribuição qualificada que os cristãos podem oferecer ao mundo de hoje, também no diálogo e na cooperação com outras religiões.

Por iniciativa do Papa Francisco, o dia 27 de Outubro foi proposto às comunidades cristãs para jejuarem e rezarem pela paz. Francisco concluiu esse dia, na Praça de S. Pedro, com uma hora de oração conhecida como Oração Pacem in Terris, pedindo que a humanidade aprenda a acolher e a cuidar da vida – de toda a vida humana! – e a repudiar a loucura da guerra, que semeia morte e apaga o futuro.

Escolheu o seguinte texto de Isaías para dar início a esta oração: «Deus julgará as nações e dará as suas leis a muitos povos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra e nem se aprenderá mais a fazer a guerra» (Is 2, 4).

Esta oração pela paz não integrava o calendário do Sínodo, mas os dois acontecimentos têm uma relação directa: o Sínodo não pretende só curar as feridas da Igreja, mas também as de toda a humanidade – guerra, emergência climática, escravatura, falta de habitação ou de trabalho… –, disse o padre Timothy Radcliffe, antigo superior geral dos dominicanos, na conferência de imprensa desse dia. Foi o orientador do retiro que antecedeu a Assembleia sinodal e publicou um novo livro que já apareceu em diversas línguas e, em Março, será editado em português, Perguntas de Deus, perguntas a Deus.

3. Três dias depois do início do Sínodo (07.10.2023), começou uma nova guerra no Médio-Oriente. O Papa nunca esquece esta loucura. No Angelus do dia Todos os Santos, exortou-nos a continuar a rezar por todos os povos que sofrem as guerras de hoje: Não esqueçamos a atormentada Ucrânia, não esqueçamos a Palestina, não esqueçamos Israel e não esqueçamos tantas outras regiões afectadas pela guerra.

O próprio discurso do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, no Conselho de Segurança da ONU, a 24 de Outubro, suscitou várias polémicas. De qualquer forma, Ana Sá Lopes, jornalista do Público, fala da vingança até ao extermínio do último palestiniano (29.10.2023). O que é que poderíamos fazer?

O texto Moderados de todo o mundo: uni-vos! de Pedro Abrunhosa tem de ser atendido: Só uma solução política que envolva os moderados dos dois lados poderá fazer a transição da injustiça-absoluta para a paz desejada. Nem Netanyahu nem o Hamas são capazes desta solução.
Nada há de heroico em matar um ser humano. Absolutamente nada. Nem em nome da pátria, nem em nome da história, nem, muito menos, em nome de Deus[iv].

Além do plano meramente político, devemos acolher a imaginação de todos os pacíficos.

Miguel Marujo lembrou-nos o belo exemplo da marcha das mães: Há mulheres, muitas, que marcham, vestidas de branco, lado a lado, sorridentes, em festa – e fazem-no pela paz. São quatro mil, duas mil israelitas, duas mil palestinianas, que caminharam em direção a Jerusalém, para pedirem a paz numa terra a que muitos chamam santa e vive em estado (quase) permanente de guerra e conflito.

Estávamos em 2016, há sete anos, no dia 19 de outubro, e aquelas mulheres tomaram em mãos a vontade de muitas e muitos naquelas terras do Médio Oriente – a de lutar pela paz sem armas nas mãos. Partiram a 4 de outubro de Qasr el Yahud (a norte do Mar Morto) na Marcha da Esperança, até Jerusalém.

A cantora e compositora israelita, também ativista por esta causa, Yael Deckelbaum, juntou-se a esse grupo de mulheres, apresentadas como corajosas, que se tinham unido no movimento Women Wage Peace, quando em 2014 se registou uma escalada no conflito, com mais um episódio de guerra entre israelitas e palestinianos[v].

João Rosa contou-me que, por ocasião da vinda do Papa Francisco às JMJ, em Maio, fez com o seu filho Martim um livro dedicado a Francisco, Uma Flor em Marte. É um ansejo de paz, utópico, talvez ingénuo, mas catártico, face à dor de assistir a um tempo de guerra, próxima e ultrajante, como se não fossemos dignos de nos distinguirmos das outras espécies animais. Agora, a dor é acrescida e ainda mais agravada pelo intolerante e odioso conflito Hamas-Israel.

Esse livro ilustrado é uma forma de gratidão ao Papa: este constitui um privilégio para a humanidade, desde o dia em adoptou o nome Francisco.

Bem-aventurados todos os que promovem a paz![vi]

 

 



[i] Ap 7, 9; cf. também Ap 5, 9

[ii] Cf. Relatório Síntese, nº 5;

[iii] Cf. Carta Apostólica sob Motu Proprio Para Promover a Teologia, 01.11.2023

[iv] Cf. Pedro Abrunhosa, Público 02.11.2023

[v] Cf. 7Margens, 22.10.2023

[vi] Cf. Mt 5, 1-12