segunda-feira, 27 de maio de 2024

DEUS, UMA PAIXÃO INSACIÁVEL Frei Bento Domingues, O.P. 26 Maio 2024

 

DEUS, UMA PAIXÃO INSACIÁVEL

Frei Bento Domingues, O.P.

26 Maio 2024

 

1. Ao reler os vários textos que escrevi para o Domingo da Santíssima Trindade, senti a necessidade de retomar alguns que me parecem mais fecundos.

Ó Deus, Trindade Santa,/ ó luz mais radiosa que toda a luz,/ fogo mais ardente que todo o fogo,/ Tu és um oceano, a paz,/ Tu és um mar sem fundo,/ mais eu mergulho, mais eu me afundo,/ mais eu Te encontro, mais eu Te procuro ainda./ Sede que Tu saciaste no deserto um dia,/ para sempre ficar com sede de Ti[i].

Esta oração é um poema. Não precisa de comentários. Traz consigo a sua própria inteligibilidade simbólica que pode exigir uma iniciação, mas nunca a sua substituição.

Tentei, desde muito cedo, inscrever-me numa corrente de pensamento teológico que pratica a modéstia subversiva como atitude básica da inteligência da fé. Estou a referir-me a S. Tomás de Aquino que, em poucos anos de vida – morreu aos 49 anos – produziu uma obra monumental de análise filosófica, de exegese bíblica, de selecção patrística, sempre em confronto aberto e criativo com as várias correntes do seu tempo, de horizontes culturais e religiosos muito diferentes. Ditou um impressionante e rigoroso guião para principiantes na investigação teológica, para que não se perdessem na floresta de opiniões para todos os gostos[ii]. Procurou abrir novos caminhos, na escola de Alberto Magno. Mas, os pseudo discípulos viram nesse guião um repouso, uma preguiça, um substituto de constantes interrogações. Como escreveu Umberto Eco, fizeram de um incendiário, um bombeiro. Um pensador subversivo e condenado foi promovido a padroeiro de uma ignorante ortodoxia.

Para S. Tomás – que também era poeta – a teologia não é um produto intelectual como a geometria. Pressupõe uma inteligência afectiva, de conaturalidade espiritual. Essa conaturalidade, paradoxalmente, não dispensa, pelo contrário, exige o estudo aturado, bebido nas mais diversas fontes, pois a graça não substitui nem diminui a natureza.

Nunca se esqueceu de unir duas atitudes que, aparentemente, parecem excluir-se: a razão argumentativa e o pensamento simbólico, a teologia afirmativa e a teologia negativa, cuidando que o ridículo não fosse apresentado como defesa ou apologia da fé. O nosso modo de dizer Deus é sempre abissalmente inadequado.

Este cuidado é a alma da sua teologia. No entanto, para viver e pensar a fé cristã, no século XXI, não dispomos de nenhuma receita. Encontramo-nos polarizados por aceleradas mudanças em todos os domínios. Como se costuma dizer, teremos de encontrar o caminho, caminhando[iii].

2. A liturgia dá que pensar se assumir a sabedoria inscrita na prática simbólica e ritual. O exercício do pensamento simbólico assume a presença e a distância.

Como o Pentecostes não é uma clausura, mas a entrada numa criatividade sem fronteiras, as festas da Santíssima Trindade e a do Corpo de Deus nasceram para tentar entender, em novos contextos culturais, palavras e gestos simbólicos de Jesus que suscitaram vivas controvérsias.

Fora da linguagem do pensamento simbólico, tanto a celebração da SS. Trindade como a do Corpo de Deus, oscilam entre banalidades e subtilezas pseudo filosóficas. Digo isto, porque me lembro da confusão que me faziam, na catequese, as explicações da Trindade à base do trevo e de uma palavra feminina para dizer três masculinos. Mas era lindo rezar três vezes ao dia, ao toque do sino, o toque das Trindades: de manhã; ao meio-dia e ao escurecer. Tudo parava para santificar o dia, o trabalho e o repouso.

Na vida adulta delirava com as anedotas que se contavam desse mistério. Descobri místicos trinitários, teologias muito subtis, disputas conciliares e a loucura da separação das Igrejas do Oriente e do Ocidente mediante a arma ridícula do anátema recíproco sustentado por uma série de banalidades, incluindo as da formulação trinitária.

3. Apesar de todas estas polémicas, existia como não existindo. O teólogo K. Rahner escreveu que se o dogma trinitário fosse eliminado como falso, a maior parte da literatura religiosa poderia permanecer quase inalterável. Goethe não encontrava na fé trinitária a mais pequena ajuda. I. Kant escreveu algo que já evoquei nestas crónicas: “tomada em sentido literal, a doutrina da Trindade, mesmo se se julgasse compreendê-la, é totalmente inútil em termos práticos e, menos ainda, ao reconhecer que ultrapassa totalmente os nossos conceitos”.

Leonardo Boff reagiu a essa posição. Durante o ano de silêncio que lhe foi imposto, escreveu uma obra que tentava mostrar a Trindade como a melhor comunidade. P. Blanquart (1934-2023) via na expressão trinitária da fé virtualidades democráticas: todas as pessoas são iguais e diferentes, todas activas sem subordinação, todas autónomas e todas em relação.

A simbólica cristã, a simbólica trinitária – na qual, o Espírito se diz, em hebraico, no feminino (ruah) –, não se pode esgotar numa fonte de inspiração social, seja ela qual for. Sem a vigilância da chamada Teologia Negativa, que purifica cada afirmação com uma negação provocadora, podemos cair facilmente numa transposição unívoca do céu para a terra e da terra para o céu: a reprodução insípida do mesmo.

Essas tentativas valem o que valem. A teologia é uma vigilância da linguagem para não ceder à ilusão de meter Deus dentro dos nossos conceitos, transformando-O num ídolo. A teologia negativa favorece o humor e a ironia ao criar a boa distância e a boa proximidade, evitando a sedução do ridículo, expresso em certas eclesiologias, como a seguinte.

Assim como no céu há uma só cabeça, também na terra deve haver uma só que a represente, o Papa. Já Inácio de Antioquia (m. 104) afirmara: um único Deus, um único Cristo, um único bispo, uma única comunidade local.

Como mostrou Yves Congar, épocas houve em que o Papa era considerado o Deus visível sobre a terra, o Deus terrenus. Esta concepção originou um modelo piramidal de Igreja: em cima, a hierarquia e, em baixo, os leigos. Não é esse o caminho de uma comunidade de irmãos e irmãs.

 



[i] Oração de Santa Catarina de Sena

[ii] Cf. Summa Theologiae,I parte; q.1,a.6,8, 9; q.3,prol. ; q.12; q.13;q.32; q. 46 a. 2

[iii] Cf. Jacques le Goff, Em busca da Idade Média, Teorema, 2003, pag.90-91

sábado, 25 de maio de 2024

Em tudo o que existe, está impresso o nome da Trindade! - Pe. Manuel João - MC

 Em tudo o que existe, está impresso o nome da Trindade!

Ano B - Solenidade da Santíssima Trindade
Mateus 28,16-20: “Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos”.

Hoje celebramos a solenidade da Santíssima Trindade. Experimentámos a acção salvadora do Pai, do Filho e do Espírito Santo durante os períodos da Quaresma e da Páscoa. Neste domingo, depois do Pentecostes, a Igreja convida-nos a contemplar esta ação amorosa das três pessoas individuais em Deus na sua unidade e sinergia. “Esta festa é como um oásis de contemplação, depois da plenitude do Pentecostes.” (P. Angelo Casati).

A Santíssima Trindade é uma festa relativamente recente. Foi introduzida no calendário litúrgico no século XIV e atribuída ao domingo seguinte ao Pentecostes, considerado o domingo mais adequado, tendo em conta que a Trindade se revelou plenamente com a descida do Espírito Santo. Não estamos a celebrar uma verdade do catecismo, encerrada numa formulação dogmática, nem um mistério enigmático. É uma realidade viva, bela, surpreendente, que está no centro da boa nova do Evangelho e que São João resume na afirmação: “Deus é amor” (1Jo 4,8). 

A Trindade não é uma festa particular a ser celebrada uma vez por ano, mas é o coração e a raiz da vida cristã. Celebramo-la na Eucaristia, que tem tudo a ver com a Trindade. Além disso, é a expressão máxima da vocação do cristão, do seu modo e estilo de vida. Teilhard de Chardin fala de “amouriser le monde”, “amorisar” o mundo!

O caminho para a fé na Trindade

Todos os cristãos professam a fé na Trindade: “Deus é um só em três pessoas”Não encontramos esta definição de Deus na Bíblia e as primeiras gerações de cristãos não usavam a palavra Trindade. O primeiro a empregá-la ("Trinitas") foi Tertuliano, um Padre da Igreja (+240). Não se trata, evidentemente, de uma invenção, mas do fruto da sua meditação sobre a Sagrada Escritura. Não faltam alusões a esta verdade de fé no Novo ou Segundo Testamento. Na conclusão do Evangelho de Mateus, que a liturgia nos propõe para hoje, encontramos a fórmula trinitária mais explícita de toda a Sagrada Escritura: “Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.” (Mt 28,16-20). Outra encontra-se na saudação final da segunda carta de São Paulo aos Coríntios: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.” (2 Coríntios 13,14).

O Antigo ou Primeiro Testamento foi um percurso lento e progressivo de experiência e conhecimento de Deus que conduziu o povo de Israel à profissão de fé num Deus único. Encontramos esta fé maravilhosamente formulada na primeira leitura de hoje: “Considera hoje e medita em teu coração que o Senhor é o único Deus, no alto dos céus e cá em baixo na terra, e não há outro.” (Deuteronómio 4). Podemos imaginar como poderia ser escandaloso, neste contexto, que Jesus se proclamasse Filho de Deus e falasse da pessoa do Espírito Santo. Os primeiros cristãos foram de facto audazes ao dar início à fé na Trindade, que só seria claramente formulada no século IV. Só uma convicção profunda, recebida através do ensinamento e do testemunho de Jesus, os poderia ter levado a tal ousadia. 

Do exterior à intimidade de Deus

A inteligência humana pode chegar à unicidade de Deus (monoteísmo) através da reflexão e da filosofia. É possível a todos chegarem a Deus através da sua epifania na criação. Em contrapartida, só a fé em Jesus nos conduziu à trindade das pessoas no Deus único, pois “a Deus, ninguém jamais viu: o Filho único, que é Deus e está no seio do Pai, foi ele que o revelou”. (João 1,18). Não se trata, porém, de um conhecimento teórico ou dogmático, de pouca ou nenhuma utilidade, mas de uma introdução na intimidade de Deus, de uma imersão no imenso e surpreendente mistério de Deus. Dietrich Bonhoeffer escreve: "Não nos interessa um divino que não faça florescer o humano! 

Hoje vivemos projectados para o mundo e para o universo, desejosos - com razão - de conhecer os mistérios do cosmos e da vida. Mas poucos estão interessados em mergulhar no Mistério por excelência! A humanidade sempre procurou conhecer o "cosmos" que traz dentro de si: “Conhece-te a ti mesmo!”. E, apesar dos progressos espantosos das ciências, continuamos a ser um enigma para nós próprios. Só a abertura a Deus e ao seu Mistério pode revelar o homem a si mesmo! 

Este Mistério é a chave para compreender toda a realidade. Bento XVI disse: “Em tudo o que existe está num certo sentido gravado o "nome" da Santíssima Trindade, porque todo o ser, até às últimas partículas, é um ser em relação, e assim transparece o Deus-relação, transparece por fim o Amor criador. Tudo deriva do amor, tende para o amor e se move impelido pelo amor, naturalmente com diferentes graus de consciência e de liberdade.” (Angelus 7/6/2009).

A Trindade, uma exigência de amor

Se, por um lado, o mistério da Trindade é difícil de compreender, porque entra em conflito com a nossa lógica, por outro lado poderíamos dizer que é fácil de compreender, porque é uma exigência do próprio amor. Um Deus unipessoal seria solipsista, como poderia ser amor? Um amor de dois poderia tornar-se um amor de reciprocidade, um amor especular, em que os dois amantes se espelham um no outro. Continua a ser um amor imperfeito. É necessário um terceiro que encarne a diversidade e que obrigue o amor a dois a sair da lógica da reciprocidade para integrar o diferente.

Deus criou o homem "à sua imagem e semelhança" (Génesis 1,26-27), todavia o ícone da Trindade não é o casal, mas a família, isto é, o casal fecundo que acolhe "o outro", que sai da lógica especular. Deus é Família. Neste sentido, é preocupante a atual tendência crescente que se verifica de excluir a possibilidade de ter um filho, seja por constrangimento sociológico, económico ou laboral, seja por opção do próprio casal. A procriação diz algo sobre Deus. A natureza traz em si uma marca trinitária. 

A forma perfeita de comunhão, que é o símbolo de toda a comunhão, é o "três". […] O cristão deve ter o número três como número sagrado: "A minha fé é três, a minha vida é três"... Porque a fé não é uma coisa e a nossa vida é outra. A nossa vida é "três". Para nós, o número "três" é o objetivo, é aquilo por que temos de lutar. A nossa vida torna-se uma vida pobre e inacabada se não experimentarmos o amor do 'três'”. (Cardeal José Tolentino de Mendonça).

Exercício diário de oração para a semana
1. Fazer o sinal da cruz no início do dia, com uma consciência especial de o viver em nome da Trindade. E no fim do dia, antes de nos abandonarmos ao sono, repeti-lo como uma imersão no infinito Mar de Amor.
2. Repetir frequentemente ao longo do dia, como o respiro do coração, a doxologia: 
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
3. Rezemos com Santa Catarina de Sena:
“Trindade eterna, sois como um mar profundo, no qual quanto mais procuro, mais encontro; e quanto mais encontro, mais cresce a sede de vos procurar. Vós sois insaciável; e a alma, saciando-se no vosso abismo, não se sacia, pois permanece com fome de Vós, sempre mais desejosa de Vós, ó Trindade eterna, desejando ver-Vos com a luz da vossa luz. 

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 23 de maio de 2024

Para a reflexão completa, ver:https://comboni2000.org/2024/05/24/riflessione-domenicale-in-tutto-cio-che-esiste-e-impresso-il-nome-della-trinita/

 

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com

 


segunda-feira, 20 de maio de 2024

VIGÍLIAS Frei Bento Domingues, O.P. 19 Maio 2024

 

VIGÍLIAS

Frei Bento Domingues, O.P.

19 Maio 2024

 

1. Estou a começar a escrever este texto no dia 13 de Maio. A beleza deste dia começa na sua vigília, um mar de luz em movimento, a procissão das velas. É a vigília mais escura e luminosa em que já participei.

A verdade é que Fátima não se recomendava pela beleza das suas construções. A fealdade e o comércio dos objectos religiosos inundavam e comandavam tudo. Em várias intervenções, para que fui convidado, atrevi-me a dizer que o único remédio para Fátima seria um buldózer. Mas, quando via chegar os peregrinos cada um com o seu mistério e, depois, as multidões a despedir-se de lenço branco, parecia-me que estava no cais das lágrimas de Portugal. Não vou ter o mau gosto de me repetir nem de reproduzir o que outros já escreveram sobre as páginas da Religião dos Portugueses[1], mas como vivi vários anos, na Cova da Iria, em épocas diferentes, assisti às suas transformações.

Muita coisa mudou. Fátima encontrou o caminho da beleza, mas nunca se devia esquecer que o fascínio de Fátima era, e é, de outra ordem. Consolida-se, cada vez mais, como um constante apelo da paz no meio das guerras. O que parecia um nacionalismo pretensioso – Altar do Mundo – tem-se revelado um verdadeiro encontro de povos.

Este ano, quem veio ajudar-nos a retomar o sentido universal deste Santuário foi o cardeal Juan José Omella, de Barcelona: «Rezemos pela paz no mundo: na Ucrânia, Rússia, na Terra Santa, na África, na América, na Ásia, quantos países precisam e reclamam a paz».

O bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, voltou-se para a Ucrânia e para a Terra de Jesus: é inconcebível o que se passa na Faixa de Gaza.

O pior de tudo, o que não se pode permitir, é proibir que chegue a ajuda alimentar necessária para mais de um milhão de pessoas que estão a morrer de fome. Daqui, da Cova da Iria, apelamos à paz. É inconcebível para o coração de Deus, mas é também inconcebível para um coração humano que isto esteja a acontecer[2].

2. Temos, de facto, de acolher o vendaval de Deus, o Pentecostes: Quando chegou este dia – contam os Actos dos Apóstolos –, os discípulos encontravam-se reunidos no mesmo lugar. De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde eles se encontravam. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem. Ora, residiam em Jerusalém judeus piedosos provenientes de todas as nações que há debaixo do céu.

Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados, diziam: Mas esses que estão a falar não são todos galileus?

Que se passa, então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus![3].

D. Rui Valério, Patriarca de Lisboa, convocou os jovens e adolescentes para entrarem nesse vendaval, para serem contagiados pelo Espírito de missão, nos seus diversos mundos que devem transformar numa festa.

Tanto a preparação como a celebração do Pentecostes não devem ser entendidas como um momento evanescente. Todas as realidades, na Igreja, são para contagiar, difundir e ampliar a sua missão.

Não é apenas dos jovens, mas dos que se deixam rejuvenescer mediante um diálogo novo.

É porque acreditam no poder do diálogo que Graça Machel, François Hollande, o Patriarca Bartolomeu I, assim como líderes políticos e religiosos, representantes de organizações internacionais e figuras-chave da sociedade civil, se encontraram, em Lisboa, de 14 a 16 deste mês, no 1º Fórum Global do KAICIID – Centro Internacional de Diálogo.

Sentaram-se à mesa para procurarem construir confiança, expandir visões e criar oportunidades para que seja possível sair do plano das intenções e avançar para uma acção concreta e concertada, através do desenvolvimento de iniciativas multilaterais para a construção de coesão social e resolução de conflitos.

Com o mundo a atravessar «um momento particularmente difícil» e a humanidade a enfrentar «enormes desafios – com guerras, conflitos e profundas clivagens sociais a abrirem espaço para o medo, a desconfiança e os discursos de ódio e de intolerância», o Fórum «ganha ainda mais sentido»[4].

3. O relacionamento entre Ocidente e Oriente é uma necessidade mútua indiscutível – diz o Papa Francisco –, que não pode ser substituída nem descuidada, para que ambos se possam enriquecer mutuamente com a civilização do outro, através da troca e do diálogo das culturas, o que exige uma vigilância constante.

O Ocidente poderia encontrar, na civilização do Oriente, remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo domínio do materialismo. E o Oriente poderia encontrar na civilização do Ocidente tantos elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural. É importante prestar atenção às diferenças religiosas, culturais e históricas que são uma componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização oriental. É importante consolidar os direitos humanos gerais e comuns, para ajudar a garantir uma vida digna para todos os seres humanos, no Oriente e no Ocidente, evitando o uso da política de duas medidas[5].

O mundo está a sofrer ameaças e guerras em cadeia. O apelo ao diálogo parece uma ingenuidade. A verdade é outra: fora do diálogo não há salvação. Vigiai!

 

 



[1] Frei Bento Domingues, O.P., A religião dos portugueses. Testemunhos do tempo presente, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2018; Cf. 7Margens, 12.05.2024, António Marujo, Fátima foi também um “lugar de resistência silenciosa” contra a guerra.

[2] Cf. Daqui, da Cova da Iria, apelamos à paz!, 7Margens, 13.05.2024

[3] Cf. todo o texto dos Actos dos Apóstolos, 2, 1-36

[4] Cf. Clara Raimundo, 7Margens, 08.05.2024

[5] Fratelli Tutti, 136

sábado, 18 de maio de 2024

Os quatro Pentecostes - Pe. Mamuel João, MC

 Os quatro Pentecostes

Ano B – Tempo pascal - 8o domingo - Pentecostes
Evangelho: João 20,19-23

Hoje a Igreja celebra a grande solenidade do Pentecostes, a festa da descida do Espírito Santo, cinquenta dias depois da Páscoa, segundo a narração dos Actos dos Apóstolos (ver primeira leitura). O Pentecostes, que significa Quinquagésimo (dia), do grego, era uma festa judaica, uma das três festas de peregrinação ao templo de Jerusalém: a Páscoa, o Pentecostes e a Festa das Tendas (a festa das colheitas, no Outono). Trata-se de uma festa agrícola de acção de gracas pela colheita dos primeiros frutos, celebrada no 50.º dia após a Páscoa. É também chamada de "Festa das Semanas", devido ao facto de ocorrer sete semanas após a Páscoa. Esta festa agrícola, mais tarde, foi associada também à recordação da entrega da Lei ou Torá por Moisés no Monte Sinai.

O Pentecostes cristão é o cumprimento e a conclusão do tempo pascal. É a nossa Páscoa, a passagem para uma nova condição, já não sob o domínio da Lei, mas do Espírito. É a festa do nascimento da Igreja e o início da Missão.

As leituras da festa apresentam-nos, de facto, quatro vindas do Espírito Santo ou quatro modos diferentes mas complementares da Sua presença. Eu diria que são quatro "Pentecostes"!

1. O Pentecostes da Igreja

A primeira leitura (Actos 2,1-11) apresenta-nos uma vinda do Espírito surpreendente, impetuosa e luminosa:
Quando chegou o dia de Pentecostes, os Apóstolos estavam todos reunidos no mesmo lugar. Subitamente, fez se ouvir, vindo do Céu, um rumor semelhante a forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde se encontravam. Viram então aparecer uma espécie de línguas de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem.
É uma vinda que suscita espanto e admiração, entusiasmo e euforia, consolação e coragem. É absolutamente gratuita, imprevisível e nunca programável. Trata-se de casos excepcionais. Encontramos alguns deles no livro dos Actos, mas houve-os também na história da Igreja, embora não tão vistosos e imponentes, mas sempre de grande fecundidade. De facto, o Pentecostes é sempre seguido de uma primavera eclesial. Deus sabe como precisamos dela, no inverno eclesial que estamos a atravessar no Ocidente! Só a oração incessante da Igreja, a humilde paciência do semeador e a docilidade ao Espírito podem obter uma tal graça!

2. O Pentecostes do mundo

A efusão do Espírito estende-se a toda a criação. É Ele "que dá vida e santifica o universo" (Oração Eucarística III). É Ele que "faz entrar o pólen primaveril no seio da história e de todas as coisas" (Ermes Ronchi). Por isso, com o Salmista, invocámos o Pentecostes sobre toda a terra"Enviai, Senhor, o vosso Espírito e renovai a face da terra." (Salmo 103). Esta deveria ser uma oração típica e habitual do cristão: invocar o Pentecostes sobre o mundo, sobre as dinâmicas que regem a nossa vida social, sobre os acontecimentos da história. Toda a gente se queixa de "como o mundo vai mal!", do "mau espírito" que o anima, mas quantos de nós fazem a "epiclese" (invocação) do Espírito para que Ele desça sobre as pessoas, as situações e os acontecimentos da nossa vida quotidiana?

3. O Pentecostes dos dons espirituais, ministérios e carismas

O apóstolo Paulo, na segunda leitura (1 Coríntios 12), chama a nossa atenção para uma outra epifania do Espírito: os dons espirituais e os ministérios"Em cada um se manifestam os dons do Espírito para o bem comum" Hoje fala-se muito de dons, de carismas, de ministérios e de partilha dos serviços eclesiais, mas há um crescente e preocupante desinteresse das gerações mais jovens. O sacramento da confirmação, o "Pentecostes pessoal", que deveria tornar-se a passagem para a plena participação na vida da Igreja, é infelizmente o momento da deserção. Um sinal claro de que falhámos no nosso objectivo de iniciação cristã. O que é que se deve fazer? A Igreja deverá dotar-se de um "ouvido" extremamente sensível e reforçar as suas "antenas" para perceber a Voz do Espírito neste momento particular da sua história. Atrevo-me a dizer que o problema mais grave é a mediocridade espiritual das nossas comunidades. Preocupados em salvaguardar a ortodoxia e a boa ordem da liturgia, perdemos de vista o essencial: a experiência de fé!

4. O Pentecostes do domingo

A liturgia propõe-nos de novo o evangelho da aparição de Jesus ressuscitado na tarde de Páscoa (João 20,19-23). Um evangelho cheio de ressonâncias pascais:
Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam, com medo dos judeus, veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco». Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo: «A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

Este evangelho é chamado o "pequeno Pentecostes" do evangelho de S. João, porque aqui a Páscoa e o Pentecostes coincidem. O Ressuscitado oferece o Espírito na tarde de Páscoa. Todo este contexto faz pensar na reunião dominical e na Eucaristia. É aí que o Espírito "paira sobre as águas" (Gênesis 1,2) do caos e do medo da morte e traz a paz, a harmonia e a alegria da vida. O papel preeminente do Espírito deve ser redescoberto. Este é o Seu tempo. Sem Ele, não podemos proclamar que "Jesus é o Senhor" (I Coríntios 12,3), nem clamar "Abbá! Pai!" (Gálatas 4,6). Não há Eucaristia sem a intervenção do Espírito. Por isso, entremos na Eucaristia suplicando no nosso coração: Vinde, vinde, Espírito Santo!

Para concluir, como é que navegas no mar da vida: a remos ou à vela?

Respiramos o Espírito Santo. Ele é o oxigénio do cristão. Sem Ele, a vida cristã é lei e dever, é um remar constante, com esforço e cansaço. Com Ele, é a alegria de viver e de amar, é a leveza de navegar à vela. Agora que, depois do tempo pascal, retomamos o tempo comum, com a rotina da vida, como te preparas para navegar: com a força dos remos ou deixando-te levar pelo Vento que sopra na vela desfraldada do teu coração?

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 16 de Maio de 2024

Para uma reflexão ulterior, ver: https://comboni2000.org/2024/05/17/riflessione-domenicale-quale-e-il-nostro-progetto-di-vita-babele-o-pentecoste/

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com

 

terça-feira, 14 de maio de 2024

A pergunta por Deus: uma questão infinita Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 11 Maio 2024

 A pergunta por Deus: uma questão infinita

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

11 Maio 2024

Tem-se frequentemente a ideia de que, à partida, o ateu, quando nega a existência de Deus

ou quando afirma que, com a morte, acaba tudo, tem do seu lado a razão, ficando o crente

sob a suspeita de não-racional, de tal modo que é a ele apenas que compete ter de

apresentar razões da sua fé.

Ora, as coisas não são assim, de modo nenhum. Por paradoxal que pareça, também o ateu

assenta a sua negação da existência de Deus ou da vida depois da morte num acto de fé,

melhor, numa crença. “Em qualquer das suas formas, o ateísmo é uma crença e não uma

evidência, escreveu o filósofo Pedro Laín Entralgo, um ‘creio que Deus não existe’ e não um

‘sei que Deus não existe’.”

O chamado crente e o ateu encontram-se exactamente no mesmo plano: o crente não pode

demonstrar a existência de Deus, nem a vida eterna, exactamente como o ateu não pode

demonstrar que Deus não existe ou que a morte é o termo definitivo da existência da

pessoa. No que se refere a Deus ou à vida depois da morte, as posições do crente, do

agnóstico ou do ateu assentam na crença.

Evidentemente, sendo humanos e, portanto, racionais, todos - o crente, o agnóstico, o ateu -

têm de apresentar razões para a sua crença, pois esta, se quiser ser verdadeiramente

humana, não pode ser cega. Sublinhe-se, porém, que se trata, para todos, de um acto de fé,

certamente com razões, mas sempre de um acto de fé, e não da conclusão de uma

demonstração.

Assim, o crente, o agnóstico, o ateu, em vez de se excluírem, devem encontrar-se e

enriquecer-se mutuamente num conflito dialógico de razões, e, por paradoxal que pareça,

num diálogo sincero e aberto, concluirão que há entre eles muito mais sintonias do que

poderiam supor à primeira vista. Quantos crentes, por exemplo, não ficarão surpreendidos

ao ler em Santo Tomás de Aquino que o saber da fé, não podendo ser evidente, convive com

a opinião, a dúvida...

Fé religiosa e dúvida não se excluem. Pelo contrário, a fé está sempre acompanhada de

perguntas. Estas perguntas humanizam a religião, pois impedem todo o tipo de

fundamentalismo, abrem ao diálogo não só com os crentes de outras religiões, mas também

com os ateus e agnósticos, obrigando a uma reformulação constante das fórmulas

doutrinais, que ao mesmo tempo que tentam dizer o Mistério também o ocultam. Por outro

lado, é bem possível que também ateus e agnósticos aceitem que há um Mistério inominável

que a todos envolve...

Aprofundando a conhecida diferença entre problema e mistério, estabelecida por Blondel e

sobretudo por Gabriel Marcel, Pedro Laín Entralgo distinguia entre problema, enigma e

mistério.

Problemas são aquelas questões que, mais tarde ou mais cedo, o Homem pode resolver.

Assim, concluiu-se que a Terra é redonda e que gira à volta do Sol, e pode encontrar-se

solução para uma crise financeira...

O enigma está referido àquelas questões que nunca serão completamente resolvidas, mas

de cuja solução racional o Homem se vai aproximando cada vez mais, ainda que apenas

assintoticamente.

Enigmas são, por exemplo, a realidade da matéria ou o pensamento. Hoje, sabemos muito

mais sobre o que é a matéria do que Aristóteles ou mesmo Galileu ou Newton, mas isso não

significa que tenhamos uma intelecção plena ou que algum dia venhamos a possuí-la. Neste

domínio, há um saber cumulativo, mas num horizonte assintótico, na medida em que, como

escreveu H.-G. Gadamer, o horizonte não é uma fronteira fixa, mas algo para onde viajamos

e que ao mesmo tempo se desloca connosco, de tal modo que o não alcançamos...

Finalmente, o mistério refere-se a uma realidade na qual se crê, mas cuja intelecção racional

estará para sempre vedada ao Homem. O mistério refere-se às perguntas últimas, como:

Qual o sentido último do universo e da existência? Por que é que existo precisamente eu?

Por que é que há algo e não nada? A vida continua depois da morte? Deus existe?

Estas perguntas colocam-nos perante o que é, por si mesmo, misterioso, pois relacionam-se

com a ultimidade, que não é objecto do saber de evidência, mas do saber de crença. Daí, um

dos dramas maiores da existência, pois, como não se cansava de repetir P. Laín Entralgo, o

objecto da ciência é penúltimo, mas o último é objecto de crença, seguindo-se daí que “o

certo é penúltimo e não pode não ser penúltimo, será sempre penúltimo, e o último é

incerto e não pode não ser incerto, será sempre incerto”.

Mas, por outro lado, repetindo, a crença, para ser autêntica e verdadeiramente humana, não

pode ser cega, o que significa, portanto, que tem de ser argumentativa, isto é, tem de dar

razões de si mesma. A fé não demonstra, mas tem de argumentar, de tal modo que mostre

que é razoável. As razões que tem a capacidade e o dever de apresentar têm de mostrar a

sua plausibilidade.

Concretamente quanto à questão de Deus e da vida depois da morte, isto é, com a morte, o

Homem acaba definitivamente ou, pelo contrário, entrará na sua plena realização na

Realidade Última e Primeira a que chamamos Deus? Quanto a esta questão, nem o não-

crente nem o crente podem demonstrar a sua respectiva posição, pois é de uma crença que,

em última análise, se trata. No entanto, um e outro apresentarão razões a que ambos serão

sensíveis. Ser ser humano é levar consigo esta questão. Melhor: ser esta própria questão. E o

que, em última instância, une os homens é esta procura sem fim e o diálogo à volta desta

questão infinita.

Ascensão: fim ou início? Festa da despedida ou festa do envio? - Pe. Manuel João, MC

 Ascensão: fim ou início? Festa da despedida ou festa do envio?

Ano B - Tempo Pascal - 7º Domingo - Ascensão
Marcos 16,15-20: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura” 

Estamos a celebrar o "Mistério Pascal" que compreende cinco momentos culminantes da vida do Senhor: Paixão, Morte, Ressurreição, Ascensão e Pentecostes (50 dias depois da Páscoa). A Ascensão conclui o período simbólico de quarenta dias em que o Ressuscitado se manifesta aos seus discípulos: “Se apresentou vivo com muitas provas, aparecendo-lhes durante quarenta dias e falando-lhes do reino de Deus.” (Actos 1,1-11, primeira leitura). Os "quarenta dias" de que fala São Lucas não representam um tempo cronológico. De facto, na conclusão do seu evangelho, ele fala apenas do dia da Ressurreição. Por fim, notemos que geralmente a festa é transferida da quinta-feira para o domingo, para permitir uma participação mais numerosa dos fiéis. 

A passagem do evangelho escolhida para esta festa é a parte final da chamada “conclusão canónico” do evangelho de Marcos (Marcos 16,9-20), que os estudiosos acreditam não ter sido escrita pelo evangelista, mas acrescentada por um redator anónimo no final do século I ou no início do século II. Trata-se de um resumo dos relatos das aparições do Ressuscitado que encontramos em Mateus e Lucas, porque o evangelho de Marcos parecia terminar de forma brusca, com a fuga das mulheres assustadas do túmulo (Marcos 16,8). Este acrescento, porém, é considerado pela Igreja como parte integrante do evangelho. 

A Ascensão, festa do envio em Missão

Gostaria de sublinhar a dimensão missionária da Ascensão, que nem sempre é suficientemente realçada. Geralmente consideramos o Pentecostes como a "festa da missão", com a efusão do Espírito, o nascimento da Igreja e o início da pregação apostólica. Tudo isto é verdade. Mas não podemos ignorar o facto de que o "mandato missionário" tem lugar no dia da Ascensão, pelo menos nos evangelhos sinópticos, Mateus, Marcos e Lucas. 

Hoje, portanto, é a festa do envio da Igreja em missão! A Ascensão é, ao mesmo tempo, o ponto de chegada de Jesus, ou seja, o fim do seu ministério, e o ponto de partida da Igreja, enviada em missão. Os três sinópticos sublinham a estreita ligação entre a Ascensão e o envio em missão. O movimento vertical de Jesus em direção ao céu corresponde ao movimento horizontal dos apóstolos em direção ao mundo. Jesus conclui a sua missão na terra e faz-se "invisível" para dar espaço, visibilidade e responsabilidade à missão dos seus discípulos na terra. 

O septenário da Missão

A passagem do Evangelho dá-nos algumas indicações sobre a missão: 

1. O OBJECTIVO: anunciar o Evangelho. “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura”. A missão apostólica começa como Jesus a tinha começado: “Jesus partiu para a Galileia, anunciando o Evangelho de Deus e dizendo: O tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo; arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,14-15).

2. A MODALIDADE: a pregação da Palavra. “Eles partiram a pregar por toda a parte”. Porque “aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação” (1 Coríntios 1,21). É uma loucura para todos, de facto, hoje como ontem, porque o objeto da pregação é "o Crucificado". É o último nome de Jesus que encontramos no evangelho de Marcos: “Procurais Jesus de Nazaré, o crucificado” (16,6). Podemos usar o crucifixo de ouro ou de prata ao pescoço, mas não podemos ignorar que adoramos um crucificado, “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1 Coríntios 1,23).

3. Os MEIOS: ir, partir. “Ide por todo o mundo” e “eles partiram a pregar por toda a parte”. A missão faz-se, antes de mais, com os pés! O primeiro nome da fé cristã é "a Via" - é assim que é definido nos Actos dos Apóstolos - e um dos primeiros nomes a designar os cristãos é "os adeptos da Via" (cf. Actos 9,2). Se Jesus se chamou a si próprio "a Via", cada um dos seus discípulos é chamado a tornar-se um caminho que conduz os perdidos até ela. Uma das representações da Ascensão mostra apenas os pés de Jesus sob a nuvem. Jesus deixa-nos os seus pés para continuar a percorrer os caminhos da humanidade. É por isso que o Papa Francisco insiste tanto na "Igreja em saída".

4. Os DESTINATÁRIOS, os LUGARES e os PROTAGONISTAS da missão: toda a gente, em todo lugar, todo cristão. “Ide por todo o mundo” e “por toda a parte”, porque a missão não tem fronteiras e não exclui ninguém. Este mandato missionário era dirigido a todos os discípulos de Jesus. Hoje é justamente sublinhado que cada crente é uma missão: “Eu sou uma missão nesta terra” (Evangelii Gaudium, 273). Além disso, não se trata apenas de atingir as fronteiras geográficas, mas também as existenciais, como a sociedade, a política, a economia, a cultura, a ecologia, a tecnologia, os meios de comunicação social, a esfera profissional...

5. A sua CARACTERÍSTICA: a universalidade! A missão é dirigida “a toda a criatura”. É o universo inteiro que deve ser evangelizado, em vista dos “novos céus e da nova terra, onde habita a justiça” (2 Pedro 3,13; cf. também Apocalipse 21,1).

6. A NECESSIDADE e a URGÊNCIA da missão! “Quem acreditar e for batizado será salvo; mas quem não acreditar será condenado”. Esta afirmação tem um significado dramático. Está em jogo a salvação do mundo! Hoje, tendemos a relativizar demasiado tudo isto, ao ponto de negar a necessidade da missão: “afinal de contas, todas as religiões são iguais!”. O respeito sagrado pela consciência de cada um, o direito inalienável à liberdade religiosa, o diálogo devido e enriquecedor entre todos os crentes, não isentam o cristão deste dever de evangelizar. São Paulo encarna esta necessidade e urgência: “Anunciar o Evangelho não é para mim motivo de orgulho, mas é uma necessidade que me é imposta: ai de mim se não anunciar o Evangelho!” (1 Coríntios 9,16). O nosso batismo é a "consagração à missão", enquanto muitos cristãos a assumiram "para seu próprio uso e consumo".

7. Os SINAIS e FRUTOS da missão. "O Senhor cooperava com eles, confirmando a sua palavra com os milagres que a acompanhavam”. Concretamente, são indicados quatro sinais/frutos da missão: expulsar os demónios; falar novas línguas; lidar com as serpentes e os venenos; curar os doentes. Notemos que estes sinais/frutos ocorrem naqueles que aceitam o Evangelho.
Podemos perguntar-nos onde estão esses sinais. Sem negar uma interpretação literal, pois nunca faltaram sinais/milagres na Igreja, creio que tais sinais têm uma profunda significação simbólica válida para todos os tempos. Cristo confere-nos tais poderes: o poder de expulsar os demónios da guerra e do ódio, da injustiça e do egoísmo que ainda escravizam a humanidade; o poder de falar novas línguas, não as de Babel que levaram à divisão da humanidade, mas as do Pentecostes que nos unem na harmonia da diversidade; o poder de vencer as numerosas armadilhas e seduções da Serpente e os venenos escondidos na "lógica mundana"; e, sobretudo, o poder de levar consolação e esperança à humanidade ferida.

Por fim, e para concluir, não podemos esquecer que a Ascensão está ligada à expetativa do regresso do Senhor, sobre o qual paira uma dos interrogativos mais inquietantes do Evangelho: “Mas o Filho do Homem, quando vier, encontrará fé na terra?” (Lucas 18,8).

Padre Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 9 de maio de 2024

Para a reflexão completa, ver: https://comboni2000.org/2024/05/10/la-mia-riflessione-domenicale-ascensione-fine-o-inizio-festa-delladdio-o-festa-dellinvio/

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com

 

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Como um rio em cheia! - Pe. Manuel João, MC

 Como um rio em cheia!

Ano B - Tempo Pascal - 6º Domingo 
João 15,9-17: Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei. Permanecei no meu amor

O evangelho deste sexto domingo de Páscoa é uma continuação do evangelho do domingo passado ("Eu sou a videira e vós sois os ramos"). Estamos no capítulo 15 do evangelho de João. Este é o segundo de três vagas do discurso de despedida durante a última ceia de Jesus com os seus discípulos (capítulos 13-14; 15-16; 17). No discurso de despedida de Jesus, encontramos todos os temas caros ao evangelista São João. Estes capítulos (13-17) são como que a "magna carta" da vida cristã, à qual deveríamos regressar periodicamente para reler e reavivar a nossa fé.

Gostaria de me concentrar em cinco palavras/realidades que emergem da passagem evangélica de hoje: Amor/amar, Mandamento/mandar, Pai, Amigos e Alegria. São cinco "palavras" que, de certa forma, resumem a vida cristã. Espero que cada um de nós, num segundo momento, seja capaz de se debruçar sobre aquela palavra que, por um toque do Espírito, sentimos no nosso coração como sendo dirigida a nós pessoalmente.

1. O amor de ÁGAPE

"Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei. Permanecei no meu amor". A palavra de ordem de domingo passado era "permanecer". A de hoje é amor/amar, que encontramos 19 vezes nas leituras (9 no evangelho, 9 na segunda leitura e 1 no salmo) e mais de 30 vezes na boca de Jesus no seu discurso de despedida. Em grego (a língua em que foi escrito o Novo Testamento) encontramos umvocabulário muito rico para exprimir o amor/amar, com uma grande variedade de matizes, mas três termos eram principalmente utilizados: éros, philía e ágape.

Éros (έρως) é, na sua maior parte, o amor sensual, apaixonado, sexual;
Philía (φιλία) é o amor de afeto, de amizade, recíproco entre amigos;
Ágape (αγάπη) é o amor que é gratuito, desinteressado, incondicional, altruísta, oblativo e, portanto, frequentemente associado ao amor espiritual. Em latim, é traduzido como cáritas.

Este termo "ágape", bastante raro no grego clássico, é o adotado pela Sagrada Escritura para designar o amor de Deus e a caridade fraterna. Ágape é a perfeição e a sublimação do amor. No Novo Testamento, a raiz deste termo grego aparece 320 vezes (Gianfranco Ravasi). Ágape tornou-se a expressão caraterística da concepção cristã do amor. 
Todo o cristão sabe que "Deus é amor" ( 1 João 4,7-10, segunda leitura) e que "toda a Lei encontra a sua plenitude num só preceito: Amarás...". (Gálatas 5,14). O amor sem limites a Deus e aos irmãos faz Santo Agostinho dizer: "Feliz aquele que te ama a ti, ao amigo em ti e ao inimigo por ti".

A palavra "amor" é tão usada e abusada, tanto na linguagem comum como na nossa esfera eclesial, que está gasta. Creio que nos faria bem fazer um "jejum" desta palavra para tentar redescobrir o seu sabor genuíno, que se perdeu. Ao falar tanto de amor, podemos iludir-nos de que sabemos amar. "Não nos embebedamos ouvindo falar de vinho" (Isaac, o Sírio). Em vez de falarmos dele, tentemos deixar que esta palavra ressoe em nós, que se torne "verdadeira" para nós, que nos surpreenda, que nos maravilhe, que nos leve até às lágrimas:"Jesus, sabendo que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim" (João 13,1, introdução ao discurso de despedida). Aceitemos este amor transbordante, sem resistência, e deixemo-nos arrastar por este rio transbordante!

2. O MANDAMENTO

"É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei"; "O que vos mando é que vos ameis uns aos outros". Por estranho que pareça, a segunda "palavra" que mais se repete na passagem do Evangelho de hoje é mandamento. Mas será que se pode mandar no coração?! Sim e não! O amor é um dom, mas é também um compromisso, uma adesão e uma decisão da vontade. Podemos escolher viver no amor ou no desamor, na indiferença e até no ódio. Esta escolha é muitas vezes feita inconscientemente.
Enquanto o amor éros é espontâneo e instintivo, o amor ágape, pelo contrário, deve ser querido e desejado e, portanto, "comandado" pela razão. Nunca será "natural". É isto que Jesus quer dizer com o seu "mandamento novo"!

3. O PAI

"Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei. Permanecei no meu amor". O "Pai" aparece aqui quatro vezes e mais de cinquenta vezes nos capítulos 13-17. Jesus fala do Pai com amor e ternura, com a exaltação de um amante, e quer transmitir-nos esta sua paixão. É o Pai que se ajoelha diante de nós, seus filhos, para nos lavar os pés, porque "quem me viu, viu o Pai!". É o Pai que, pela unção do Espírito, torna belos os pés dos seus filhos chamados a anunciar o Evangelho: "Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, o mensageiro da boa nova!" (Isaías 52,7). Todos os dias invocamos Deus como Pai, mas até que ponto a nossa imagem de Deus foi evangelizada? A pior consequência do pecado é desvirtuar a nossa ideia de Deus, que de Pai se torna patrão e juiz!

NB. Para os outros pontos da reflexão, ver o meu blogue:https://comboni2000.org/2024/05/02/la-mia-riflessione-domenicale-come-un-fiume-in-piena/

Oração de Madre Teresa para pedir o dom do amor 

Ensina-me a amar

Senhor, ensina-me a não falar
como um bronze que ressoa ou um címbalo que toca,
mas com amor.
Torna-me capaz de compreender
e dá-me a fé que move as montanhas,
mas com amor.
Ensina-me o amor que é sempre paciente e sempre gentil;
nunca ciumento, vaidoso, egoísta ou melindroso;
o amor que sente alegria na verdade,
sempre pronto a perdoar,
a acreditar, a esperar e a suportar.
Finalmente, quando tudo tiver terminado
se dissolverá e tudo ficará claro,
que eu tenha sido o reflexo fraco
mas constante reflexo do teu amor perfeito.
M. Teresa de Calcutá

Padre Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 2 de maio de 2024

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

A questão do Homem: a questão de Deus Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 04 Maio 2024

 A questão do Homem: a questão de Deus

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

04 Maio 2024

Ainda ecoa aquela proclamação que Nietzsche em A Gaia Ciência (1882) colocou na boca de
um louco: “Deus morreu! Deus está morto!” Desde então o mundo não é o mesmo. É certo
que para Nietzsche Deus tinha de morrer, pois o que a religião proclamava é contra a vida,
de tal modo que, com a proclamação da morte de Deus, é o mar infindo das novas
possibilidades do sim à vida que se abre. No entanto, à morte de Deus não se seguiria a
morte do Homem e do sentido último de toda a realidade?

Segundo as análises de Gilles Lipovetsky, “Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-
se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, as derrocadas dos ideais
não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais
pessimismo”: isto escreveu ele em A era do vazio - presentemente, parece que já não pensa
exactamente da mesma maneira.

De qualquer forma, os espíritos mais atentos julgam que é necessário dar antes razão a L.
Kolakowski, o filósofo polaco agnóstico, já falecido, quando afirmou que, desde a
proclamação da morte de Deus por Nietzsche, nunca mais houve ateus serenos: “Com a
segurança da fé desfez-se também a segurança da incredulidade. Ao contrário de um mundo
familiar, protegido por uma natureza benéfica e benigna, como era proposto pelo ateísmo
iluminista, o mundo sem Deus dos nossos dias é sentido como um caos opressor, eterno. É
um mundo privado de todo o sentido, de qualquer orientação, sinal de direcção, estrutura. A
ausência de Deus tornou-se a ferida sempre aberta do espírito europeu, por maior que
tenha sido o esforço feito para esquecê-la, recorrendo a toda a espécie de narcóticos.”

De que falamos, quando falamos da morte de Deus? De facto, como escreveu o filósofo
Eusebi Colomer, a própria expressão “morte de Deus” não é unívoca, pois pode ter, e tem,
múltiplos sentidos. Pode significar que Deus realmente nunca existiu, embora só
recentemente tenhamos feito essa descoberta. Pode querer dizer que talvez Deus exista,
mas os homens, que outrora se lhe dirigiram pela fé e pela invocação, hoje já não acreditam
nele. Talvez queiramos apenas exprimir a experiência de ausência e aparente silêncio de
Deus, própria do nosso tempo. Talvez estejamos a referir-nos à necessidade de transcender
constantemente as nossas ideias acerca de Deus, e, neste sentido, a “morte de Deus”
significa a morte dos ídolos fabricados por nós.
Afinal, que Deus era esse que morreu? Se o Deus verdadeiro é o Deus sempre maior, que
transcende sempre tudo quanto possamos pensar ou afirmar dele, então os deuses
enquanto ídolos têm de morrer, para ser possível a fé no Deus verdadeiro...
Neste domínio, a pergunta essencial consiste em saber se é possível ser Homem sem colocar
a questão de Deus. É que ser Homem é a abertura ao Infinito, e, assim, a questão do Homem
é a questão de Deus precisamente enquanto questão. Será que, neste sentido, o Homem é
por natureza religioso?
Evidentemente, responder a esta questão é extremamente complexo, pois, à partida, seria
necessário perguntar pela natureza do Homem, que não é algo de estável e fixo: a natureza
do Homem é histórica. De qualquer modo, embora seja histórico, o Homem possui umas
constantes, enquanto capacidades a desenvolver, que permitem não só distingui-lo dos
outros animais como constituem também uma realidade transcultural, que faz com que
todos os seres humanos, independentemente da cultura e do tempo histórico que lhes é
dado viver, formem uma só Humanidade. Pergunta-se então se a religião é uma dessas
constantes, ao menos enquanto questão.
Podem ser apresentados alguns sinaAssim, quando se considera a história da evolução, parece haver consenso no que se refere
à apresentação da sepultura como sinal distintivo decisivo na passagem do animal ao
Homem. O Homem é animal sepultante. Ora, não há dúvida de que os rituais funerários
sempre estiveram ligados à religião. Depois, quando se pensa concretamente nas culturas
antigas, a antropologia não deixa de sublinhar o vínculo entre o culto e a cultura no seu
todo.
Mas sobretudo não se poderá ignorar que o Homem é um ser que espera. O bebé que vem
ao mundo está animado por aquilo que Erik Erikson chamou basic trust, confiança de base,
confiança radical, originária, que começa por concentrar-se na mãe, mas que se dirige ao
mundo. Se essa confiança for substancialmente frustrada, os estragos no seu
desenvolvimento enquanto processo de se ir aos poucos erguendo até poder dizer “eu” de
modo expansivo e integrado podem ser irreparáveis. Por outro lado, como observava o
teólogo W. Pannenberg, nem a mãe nem o mundo podem corresponder adequadamente a
essa confiança radical ilimitada, que, por isso mesmo, só em Deus, portanto, para lá da
família, da sociedade e do mundo, poderá encontrar o seu apoio e segurança.
Neste contexto, afirmar Deus não é então também um modo de expressar a confiança no
Sentido último, como sugeriu o filósofo Ludwig Wittgenstein? Seja como for, o Homem é o
ser da pergunta e, por isso, de pergunta em pergunta, desembocará inevitavelmente na
pergunta ao infinito pelo Infinito, por Deus, pelo Fundamento último, pelo sentido de todos
os sentidos, o Sentido último.
O que aí fica não prova, evidentemente, a existência de Deus. Significa apenas que a
pergunta por Deus é constitutiva do Homem enquanto tal.is que apontam no sentido de um vínculo entre ser ser
humano e a religião.