domingo, 3 de novembro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. Nos cemitérios, o que há? Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 03 Novembro 2024

 O Homem: questão para si mesmo.

Nos cemitérios, o que há?
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

03 Novembro 2024

Apesar de a morte hoje se ter tornado tabu, muitos nestes dias passaram pelos cemitérios. E a
pergunta é: que foram lá fazer? Quando alguém está concentrado num cemitério perante a
campa de um familiar, de um amigo, está a olhar para onde? E o que é que vê realmente?

Há talvez algumas imagens entrecortadas que lhe passam de modo fugaz pela mente. Mas,
quando olha, verdadeiramente absorto, embora talvez com os olhos muito abertos para ver, o
que realmente lhe aparece é simplesmente e só um abismo sem fundo e sem fim, um vazio
ilimitadamente aberto...

Mas olhar e ver um abismo sem fundo e sem fim e um vazio ilimitadamente aberto, isto é, não
ver nada, é o que propriamente se chama ver o Mistério.

Quando se vai ao cemitério visitar a campa de um familiar, de um amigo, presta-se uma
homenagem, faz-se uma romagem de saudade... É isso: de saudade, no sentido mais fundo da
palavra, dito na própria etimologia - a saudade refere-se a uma ausência sem nome e sem fim,
que nos faz sentir a solidão (solitate) que nos dói; se o étimo for salutem dare (saudar), então
trata-se de uma saudação, com o desejo de que quem partiu esteja bem. Aí, no recolhimento
mais intenso, pode erguer-se, sem palavras, uma súplica, um soluço, como forma de tentar
balbuciar o Mistério indizível...

A morte é o mistério pura e simplesmente... Perante ela e tudo o que se lhe refere, é como se
caíssemos num precipício, onde se estilhaça a capacidade de pensar... Ninguém sabe o que é
morrer. Que instante é esse o da morte, mediante o qual se deixa de pertencer ao mundo e ao
tempo? Mesmo que assistamos à morte de alguém, é de fora que o fazemos... Ninguém sabe o
que é estar morto. Diante do cadáver do pai, da mãe, do filho, do amigo, do marido, da mulher,
não tem sentido dizer: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo
está aqui morto, o meu marido está aqui morto, a minha mulher está aqui morta... De facto, eles
não estão ali... Também é por pura ilusão de linguagem que dizemos que levamos o pai, ou a
mãe, ou o filho, ou o amigo, ou a mulher, ou o marido à sua última morada... Como não
podemos dizer, quando vamos ao cemitério, que os vamos visitar... Nos cemitérios, com
excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém.

Pergunta-se então: porque é que é um crime nefando em todas as culturas e sociedades a
violação de um cemitério se lá não há ninguém? Afinal o que é que está nos cemitérios?

Nos cemitérios, o que há é uma incontível e inapagável interrogação: o que é o Homem, o que é
ser-se humano? O que há nos cemitérios é a afirmação de que, seja como for, a antropologia
não é redutível a um simples capítulo da zoologia...
Afinal, para onde foram os mortos? Não será que, como acontece nas guerras, andam perdidos,
mas um dia havemos de encontrá-los e encontrar-nos? Para onde vão os mortos? Para o nada?
Mas, como perguntava o filósofo Bernhard Welte, que nada é esse? O nada vazio e nulo ou o
nada enquanto véu que oculta a realidade verdadeira, como quando entramos num espaço de
breu e dizemos: aqui, não vejo nada, o que não significa que lá não haja nada, pois pode até
acontecer que lá se encontre o tesouro maior?... Para onde vão os mortos? Para a noite total ou,
pelo contrário, para a luz plena, de tal modo luz que para nós é noite, como quando, olhando
para o sol de frente, ficamos cegos pelo excesso de luz? No final, está a esperança.

Dar um coração à lei! - Pe. Manuel João, MC

 31º Domingo do Tempo Comum (Ano B) 

Marcos 12,28-32: “Escuta, Israel!” 

Dar um coração à lei! 

Já passaram três dias desde a chegada a Jerusalém. No domingo passado, percorremos o último trecho da estrada, subindo de Jericó na companhia dos Doze e da multidão de peregrinos. Entre eles estava Bartimeu, o cego de Jericó que Jesus curou, símbolo de todos nós. 

O Senhor passa os últimos dias da sua vida entre o Templo e Betânia, uma aldeia na periferia da cidade. Durante o dia, permanece no Templo, onde ensina o povo que o escuta de bom grado (11,18). À noite, com os seus, retira-se para Betânia, como hóspede de amigos.

Estamos no terceiro dia da sua estadia na cidade santa, o destino final do seu ministério. Este dia é particularmente intenso e começa com um sinal: a figueira seca desde as raízes (11,20-26), símbolo de uma vida estéril e do poder da oração. No Templo, Jesus confronta-se com os chefes religiosos, que contestam a sua autoridade para ensinar naquele lugar (11,27-33). A eles, Jesus conta a parábola dos vinhateiros homicidas (12,1-12). O destino de Jesus já está traçado: as autoridades decidiram eliminá-lo e só procuram a ocasião e um pretexto. Segue-se, então, uma série de armadilhas para o colocar em dificuldade: primeiro sobre o tributo a César (12,13-17) e depois sobre a ressurreição dos mortos (12,18-27). Este é o contexto do trecho do Evangelho de hoje. 

Pontos para reflexão 

1. Perdidos no labirinto das leis 

Aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe: ‘Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” 

Segundo Mateus e Lucas, este doutor da Lei também queria pôr Jesus à prova (Mateus 22,35; Lucas 10,25). Qual era, neste caso, a armadilha? Para a mentalidade comum da época, o grande mandamento era o terceiro do Decálogo: a observância do sábado, pois o próprio Deus o tinha observado após o “trabalho” da criação (Génesis 2,2). Os adversários esperavam que Jesus respondesse assim, para o acusarem: “Então, por que tu e os teus discípulos não respeitam o sábado?”. 

Para o evangelista Marcos, porém, a pergunta do escriba era sincera e pertinente. Com a intenção de regular toda a vida segundo a lei de Deus, os rabinos tinham identificado 613 preceitos na Torá (Pentateuco), além dos dez mandamentos: 365 negativos (proibições, correspondentes aos dias do ano solar) e 248 positivos (prescrições, correspondentes aos órgãos do corpo humano, segundo a crença da época). Um verdadeiro labirinto! Num emaranhado de leis como este, sentia-se a necessidade de discernir o que era verdadeiramente essencial. 

2. O amor é a lei! 

Jesus respondeu: O primeiro é este: ‘Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças”.

Jesus não cita nenhum dos dez mandamentos, mas eleva-se do plano legalista ao nível do amor. Refere a profissão de fé do “Shema Israel”, “Escuta, Israel” (Deuteronómio 6,4-5, ver a primeira leitura), a oração que todo judeu recita três vezes ao dia (de manhã, à noite e antes de dormir). 

O segundo é este: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Não há nenhum mandamento maior que estes.” 

Ao “primeiro” mandamento, Jesus acrescenta um “segundo” tirado de Levítico 19,18. Esta combinação de textos da Torá é original e própria de Jesus. 

Qual é a relação entre os dois mandamentos? Santo Agostinho comenta: “O amor a Deus é o primeiro que é mandado; o amor ao próximo é o primeiro, porém, a ser praticado”. No Novo Testamento, esta síntese da lei nos dois mandamentos não é mencionada noutro lugar e parece inclinar-se para o amor ao próximo: “Isto vos mando: amai-vos uns aos outros” (Jo 15,17). Para São Paulo, “toda a lei encontra a sua plenitude num só preceito: amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14) e “o pleno cumprimento da lei é o amor” (Rm 13,10). O amor pelo irmão é o espelho e a prova do amor de Deus. Quem diz que ama a Deus e não ama o irmão é mentiroso (1 Jo 4,20-21). Os “dois amores” são, na verdade, inseparáveis. 

3. “Amarás!”: dar um coração à lei 

Em ambos os textos citados por Jesus, a palavra-chave é o imperativo “Amarás!”. O amor torna-se, assim, a chave da Lei. Os deuses pagãos desejavam adoradores submissos, escravos; o Deus de Jesus Cristo, por sua vez, quer filhos livres, capazes de amar. O verbo “amar” (ahav em hebraico) aparece no Antigo Testamento 248 vezes (Fernando Armellini). Dir-se-ia que é um número simbólico, pois corresponde ao número de preceitos positivos (coisas a fazer), segundo a tradição rabínica. Poderíamos dizer que a única coisa a fazer sempre (365 dias por ano!) é amar. 

A Torá, que emanava do coração de Deus, tinha perdido o seu espírito original e, em vez de servir o homem, tinha-se transformado num fardo pesado. Jesus veio para devolver o coração a tudo o que é humano. Agora, no coração da Lei, podemos redescobrir o Seu Coração! 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj 

 

 

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

VIVER E HABITAR NA COMUNHÃO DOS SANTOS - Pe. Manuel João - MC

 VIVER E HABITAR NA COMUNHÃO DOS SANTOS 

Reflexão sobre a Solenidade de Todos os Santos e a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos 

1. No início de novembro, terminadas as colheitas, no hemisfério norte, quando a natureza começa a repousar e as árvores ganham tons de outono; quando os serenos e um pouco melancólicos pores do sol convidam a olhar ao longe... a tradição cristã dedica um momento especial de comunhão com aqueles que nos precederam na peregrinação da vida. Este período começa a 1 de novembro com a celebração da solenidade de Todos os Santos. A festa foi instituída pelo Papa Gregório IV em 835, mas suas raízes remontam ao século IV, com a comemoração coletiva dos mártires cristãos. Nesta festa, que une a terra e o céu, regozijamo- nos com aquela “grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” contemplada por São João no Apocalipse (7,9). 

2. No dia seguinte a Todos os Santos, 2 de novembro, celebramos a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, uma tradição nascida no meio monástico no século X. Foi o abade beneditino Santo Odilon de Cluny que a introduziu em 998, a seguir à festa de Todos os Santos. Esta celebração espalhou-se gradualmente até se estender a toda a Igreja Católica no século XIII. A memória dos fiéis defuntos é, ainda hoje, uma das ocasiões mais sentidas, caracterizada pela oração – em especial a celebração eucarística –, pela visita ao cemitério, pela decoração das sepulturas com flores e pelo acendimento de velas. A atenção aos familiares e amigos falecidos continua durante todo o mês de novembro. 

3. Neste contexto, parece oportuno referir a festa de Halloween, celebrada a 31 de outubro e ligada a Todos os Santos e à memória dos Fiéis Defuntos, criando uma espécie de “tríduo”. Halloween é a contração do inglês “All Hallows’ Eve”, ou seja, “véspera de Todos os Santos” ou noite de Todos os Santos. Esta comemoração, nascida no ambiente cristão ocidental, transformou- se ao longo dos séculos numa celebração laica, frequentemente influenciada por costumes pagãos e com traços macabros, às vezes inquietantes, associados ao esoterismo e ao satanismo. Propagada na América pelos colonos irlandeses e escoceses, espalhou-se para muitas outras culturas entre o final do século XX e o início do século XXI, transformando-se numa festa carnavalesca. Apresentada muitas vezes como uma festa para crianças, é na verdade uma forma de neocolonialismo cultural com fins comerciais, que corre o risco de esvaziar o sentido das festas cristãs e de banalizar a realidade da morte, que se tornou um tabu na nossa sociedade. 

4. A comunhão dos Santos é uma das realidades mais belas da nossa fé. A festa de Todos os Santos abre-nos as portas do Paraíso para contemplar a alegria e felicidade de todos os nossos irmãos e irmãs – de todos os tempos e espaços, religiões e crenças, línguas, raças, povos e nações – que gozam da glória celestial. Não se trata apenas dos “santos ao nosso lado” ou dos cristãos que chegaram à pátria celestial, mas de todos os membros do Reino de Deus, santificados pelo sangue do Cordeiro (Ap 7,14). 

5. A “comunhão dos santos” não é uma idea abstrata, mas uma realidade muito concreta. Os santos, habitantes do Paraíso, não vivem “em descanso eterno” ignorando os nossos sofrimentos e lutas diárias contra o mal. No Céu não há ócio, mas atividade. Se o Pai “está sempre a trabalhar” (Jo 5,17), como poderiam os seus filhos permanecer inativos, indiferentes ao nosso sofrimento? Viver e habitar na comunhão dos santos significa tomar consciência desta maravilhosa solidariedade, abrir-nos a ela e participar na ação do Céu sobre a terra. 

6. A comunhão não estaria completa sem pensar nos nossos irmãos e irmãs falecidos que ainda não atingiram a visão beatífica, meta e supremo anseio do coração humano. Este é o 

significado da Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, que se segue a Todos os Santos. A Igreja peregrina na terra lembra-os com carinho, reza por eles com confiança e participa da sua purificação com a sua intercessão. Sempre que celebramos a Eucaristia, recordamo-los na oração eucarística: “Lembra-te também dos nossos irmãos e irmãs que adormeceram na esperança da ressurreição e, na tua misericórdia, de todos os defuntos: admiti-os à luz da tua face” (Oração Eucarística n. 2). 

7. Nesta ocasião, somos incentivados a lembrar com maior frequência e com solicitude fraterna todos os fiéis defuntos, especialmente os nossos familiares e amigos com quem mantemos uma relação de afeto e gratidão. É uma oportunidade para fortalecer o nosso laço de comunhão com eles, pois a morte não quebra os laços de amor, mas os purifica e fortalece. Mesmo que a memória de algumas pessoas possa ser dolorosa pelas dores e injustiças sofridas, este período pode representar um tempo de graça para nos reconciliarmos com elas, curar as nossas feridas e sanar as nossas recordações. À luz do Amor, eles próprios estão agora bem conscientes do mal cometido e, arrependidos, imploram o nosso perdão e rezam por nós. 

8. As celebrações de 1 e 2 de novembro, prolongadas por todo o mês pela memória dos nossos queridos defuntos, são uma proclamação da nossa fé pascal. A graça destas celebrações permite-nos professar com maior consciência: “Creio na comunhão dos santos, no perdão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna”. Além disso, a imersão na Vida de Cristo Ressuscitado, primícias dos vivos, exorciza o nosso medo da morte. A esperança cristã conduz-nos a um processo de transfiguração da morte, até que, como São Francisco, possamos considerá-la “irmã morte”. 

9. A contemplação dos santos e a experiência de comunhão com os falecidos leva-nos a comparar a nossa vida com a vida futura e definitiva. A beleza da comunhão dos santos, se realmente vivida, leva-nos a mudar os nossos parâmetros de vida: o cristão que olha para o Céu não permite que sejam os critérios mundanos a guiar a sua existência. Se o nosso olhar é iluminado pela Luz, comprometemo-nos a colaborar para a realização do Reino de Deus na terra, promovendo a paz, a justiça e a fraternidade universal. 

10. Em relação ao Purgatório, é necessário purificar esta doutrina das visões acumuladas pelo imaginário cristão ao longo dos séculos. Após a morte, encontramos-nos fora do tempo e do espaço, e não é possível “imaginar” o Purgatório, mas apenas pensá-lo. O Catecismo da Igreja Católica trata este tema de forma sóbria, mas essencial (nn. 1030-1032), falando de “purificação final ou purgatório”. São Paulo, em 1 Coríntios 3,10-17, diz que “o fogo provará a qualidade da obra de cada um” e que alguns serão salvos “quase passando pelo fogo”! Tudo em Deus, no entanto, é graça. Até o Purgatório! É o suplemento de misericórdia para nos tornar “puro amor”. Podemos pensar que o “fogo purificador” seja o fogo do Espírito, que continua em nós a sua obra de santificação e, ao mesmo tempo, seja também o fogo da paixão da nossa alma, que anseia pela visão beatífica e sofre ao sentir-se ainda “distante”. Porque “forte como a morte é o amor, tenaz como o reino dos mortos é a paixão: as suas chamas são chamas de fogo, uma chama divina!” (Cântico dos Cânticos 8,6). 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj 

 

 

 

terça-feira, 29 de outubro de 2024

27 outubro O Homem: questão para si mesmo. 12. Donde vem o “eu” - Padre e Professor de Filosofia na U.C., Anselmo Borges

 27 outubro 2024 às 00:00

Leitura: 5 min
O Homem: questão para si mesmo.

12. Donde vem o “eu”

É soberanamente estranho e enigmático o significado de dizer “eu”. Só cada um, cada uma, o
pode dizer de si mesmo, de si mesma, com sentido único e irrepetível. Ninguém pode dizer
“eu” na vez de outro. Precisamente por isso, ninguém sabe o que é exactamente ser outro,
outro eu, ninguém pode viver-se plenamente a partir de dentro de outro, ninguém pode
conceber o mundo visto pelo outro, por outro eu. O outro - outro eu, mas sobretudo e sempre
um eu outro - é irredutível.

É absolutamente fascinante perguntar-se a si próprio: como será o mundo a partir dali, daquele
olhar, daquele olhar do outro - olhar não apenas externo, mas interior? Como é que ele, ela,
me vê? O que se passará nele, nela, dentro dele, dela, quando me vê, quando me observa,
quando pensa em mim, quando diz que me ama? Se nos fosse possível ir lá dentro!... O que é
que aconteceu para que o bebé, que começa por parecer um “embrulhinho” (perdoe-se a
expressão terna), inicie um processo de dizer-se, que vai do neutro - o menino, a menina, o
Kico, a Rita... - até ao soberano eu, donde tudo parece partir para tudo dominar?

Mas não é apenas o eu do outro que é enigmático. O meu próprio eu é enigma para mim.
Quando tentamos ver-nos a nós próprios à distância, em miúdos, quando andávamos na
escola, por exemplo, ao dar connosco, sabemos que somos nós, mas ao mesmo tempo vemo-
nos de fora: somos os mesmos, mas de outro modo.

Até no presente, por mais que objective de mim, há sempre um reduto último - parte da
subjectividade - que resiste à objectivação, não havendo nunca coincidência entre o eu
objectivo e o eu subjectivo. Vejo-me, sem ver-me adequadamente, de tal maneira que, na
medida em que procuro mergulhar até à ultimidade de mim, é como se desaparecesse no
nada.

Também por isso, David Hume negou a existência do eu: quando me vejo por dentro, o que
encontro é apenas uma série de vivências, mas nunca o eu, que não passa precisamente de um
feixe de vivências. Não perguntava Pascal em que parte do corpo é que se encontraria o eu?
Aliás, já certas correntes do budismo se tinham referido ao eu como ilusão, e o exemplo que se
dá é o de uma cebola a que se vai tirando as camadas sucessivas, sem que reste um núcleo
duro: da desconstrução da unidade pessoal não permanece um sujeito.

Mas a interpretação também pode seguir outro caminho. Descendo até ao abismo de mim,
aquele aparente nada com que deparo é o véu de mim enquanto inobjectivável, isto é,
enquanto pessoa e não coisa. Precisamente aí - no eu irredutível - posso encontrar-me com o
mistério do Deus criador.

É com esse milagre do eu enquanto pessoa, fim e não meio para nada, nem para ninguém, que
se defrontam, por exemplo, os pais, no encontro com o filho, como escreveu o filósofo Julián
Marías: “A realidade psicofísica do filho - corpo, funções biológicas, psiquismo, carácter, etc. -
‘deriva’ da dos pais, e neste sentido é ‘redutível’ a ela. Mas o filho que é e diz ‘eu’ é
absolutamente irredutível ao eu do pai, bem como ao da mãe, igualmente irredutíveis, é claro,
entre si. Não tem o menor sentido controlável dizer que ‘vem’ deles, pois eu não posso vir de
outro eu, já que este é um ‘tu’ irredutível.

Neste sentido, a criação pessoal é evidente. Isto é, o aparecimento da pessoa - de uma pessoa -
, enquanto tal, é o modelo daquilo que realmente entendemos por criação: a iluminação de
uma realidade nova e intrinsecamente irredutível”

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

MENDIGOS DE LUZ - Pe. Manuel João - MC

 MENDIGOS DE LUZ 

 

XXX Domingo do Tempo Comum (B) 
Marcos 10,46-52: “Mestre, que eu veja!” 

A cura do cego de Jericó é o último milagre narrado no Evangelho de São Marcos. Este relato segue os três anúncios de Jesus sobre a sua paixão, morte e ressurreição, acompanhados pelas catequeses dirigidas aos discípulos, que constituem a espinha dorsal da parte central do Evangelho de São Marcos. 

Estamos em Jericó, a última etapa para os peregrinos da Galileia que percorriam o caminho ao longo do Jordão, em direção a Jerusalém para a Páscoa. A distância entre Jericó e Jerusalém é de cerca de 27 quilômetros. O percurso atravessa um território desértico e montanhoso, com uma diferença significativa de altitude: Jericó está a 258 metros abaixo do nível do mar, enquanto Jerusalém está a cerca de 750 metros acima do nível do mar. A caminhada, portanto, é íngreme e bastante cansativa. 

O evangelista dá especial atenção à figura de Bartimeu, filho de Timeu, provavelmente uma pessoa conhecida na comunidade primitiva. Além de mencionar o nome do seu pai, o evangelista descreve cuidadosamente as suas ações: “O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus”. O manto, considerado a única posse do pobre, também representava a identidade da pessoa. Portanto, “deitar fora o manto” simboliza despir-se de si mesmo. São Paulo, na Carta aos Efésios (4,22), fala em “despir-se do homem velho”. Bartimeu é o único caso em que se diz que a pessoa curada segue Jesus pelo caminho. Os Padres do Deserto viam nisso uma alusão à liturgia batismal: antes de ser batizado, o catecúmeno despia-se da veste, descia nu na piscina batismal e, ao subir, era revestido com uma túnica branca.

Pontos de reflexão 

1. Bartimeu, figura do discípulo: valor simbólico do milagre 

A parte central do Evangelho de Marcos (capítulos 8-10), chamada “a seção do caminho”, é enquadrada por duas curas de cegos. No início da seção encontramos a cura progressiva do cego de Betsaida (8,22-26), que precede imediatamente a profissão de fé de Pedro em Cesareia de Filipe. Nesse caso, um cego – sem nome – é levado a Jesus por alguns amigos que intercedem por ele. No final da seção, encontramos a cura de outro cego, de nome Bartimeu, que toma a iniciativa de pedir, gritando – apesar da oposição da multidão – a graça de recuperar a visão. 

O relato tem um grande valor simbólico: Bartimeu é o espelho do discípulo. Nos últimos domingos, Marcos conduziu-nos pelo itinerário dos apóstolos. Nesse percurso de formação e de tomada de consciência das exigências do seguimento, o discípulo sente-se como cego. Bartimeu é símbolo do discípulo que está sentado à beira do caminho, incapaz de continuar. Ele representa, por isso, cada um de nós. Todos nós nos damos conta de que somos espiritualmente cegos quando se trata de seguir Jesus no caminho da cruz. Como Bartimeu, pedimos ao Senhor que nos cure da cegueira que nos paralisa. 

2. Bartimeu, nosso irmão: “mestre” de oração 

Bartimeu sabe exatamente o que pedir, ao contrário de Tiago e João, que “não sabiam o que estavam a pedir”. Ele pede o essencial na sua oração: “Filho de David, Jesus, tem piedade de mim!” Nesta súplica, Bartimeu expressa a sua fé em Jesus como Messias, invocando-o como “Filho de David” — ele é a única pessoa no Evangelho de Marcos a conceder-lhe esse título. Ao mesmo tempo, manifesta uma relação de confiança, intimidade e ternura, chamando Jesus pelo nome e invocando-o como “Rabbuni”, que significa “meu mestre”. Este título aparece apenas duas vezes nos Evangelhos: aqui e no relato de Maria Madalena, na manhã da Páscoa (Jo 20,16). 

A vida nasce da luz e se desenvolve graças à luz. O mesmo acontece na vida espiritual: sem a luz interior, a nossa vida espiritual é engolida pela escuridão. Às vezes, experimentamos a alegria da luz, enquanto em outras ocasiões as trevas parecem invadir a nossa existência. Problemas, sofrimentos, dificuldades e fraquezas ofuscam a nossa visão da vida, tornando-nos incapazes de seguir o Senhor. Nesses momentos, a oração de Bartimeu vem em nosso auxílio: “Rabbuni, que eu veja de novo!” Bartimeu é mestre duma oração simples, essencial e confiante. 

3. Companheiros de Bartimeu: mendigos de luz 

Na Igreja antiga, o batismo era considerado como uma “iluminação”. Essa iluminação, que nos salva das trevas da morte, está sempre ameaçada. Ela nos introduz num caminho de busca contínua da luz. Como o girassol, o cristão volta-se diariamente para o Sol de Cristo. Todas as manhãs, enquanto lavamos os nossos olhos físicos, com a alma em oração corramos a lavar-nos na piscina de Siloé do nosso batismo, como o cego de nascença de que fala São João no capítulo 9 do seu Evangelho. E quando nos sentimos cegos, lembremo-nos que há o colírio da Eucaristia. Com as mãos que receberam o Corpo luminoso de Cristo, podemos tocar os nossos olhos e o nosso rosto, lembrando-nos da experiência dos dois discípulos de Emaús, aos quais os olhos se abriram ao “partir o pão”. Não apenas os nossos olhos, mas também o nosso rosto está destinado a brilhar, como o de Moisés (Ex 34,29). O rosto do cristão, com efeito, reflete a glória de Cristo (2Cor 3,18), tornando-se assim testemunha da Luz, colocada sobre o candelabro do mundo.

P. Manuel João Pereira Correia, mccj
Se não desejar receber estas mensagens, por favor informe-me. Obrigado. 
p.mjoao@gmail.com

 

sábado, 19 de outubro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. 11 - Máquinas com consciência? Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 19 Outubro 2024

O Homem: questão para si mesmo.
11 - Máquinas com consciência?

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

19 Outubro 2024

O que diz alguém, quando diz “eu”? Afirma-se a si mesmo como sujeito, autor das suas acções
conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, na abertura e em
contraposição a tudo.

Mas há observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar
para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?

Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nesta
direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da
inexistência do eu, do não-eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge
budista, deu-me, há anos, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o Rio Douro. O que é o
Rio Douro? Onde está o Rio Douro? Ele não existe como substância, pois não há senão uma
corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de
pensamentos fugazes, de vivências? O eu não passa de um nome para designar um continuum,
como nomeamos um rio.

Mas há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em
transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. O que se passa é que, não se tratando
de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível.

É, e será sempre, enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência. É claro
que o eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro
do corpo - o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os
processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que
haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu
Leibniz e é acentuado pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os
conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que
é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos
eléctricos e químicos no cérebro - processos neuronais da ordem da terceira pessoa - para a
experiência subjectiva na primeira pessoa?

Apesar de se não afastar, por princípio, a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão,
o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência
surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz
disse numa entrevista: “Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do
cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu, nem como é que o
cérebro é capaz de gerar significados.”
E sou livre ou não? É claro que, como escreve o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades
espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia
falar em liberdade - “as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis.”
Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? “Como não é a
minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu,
quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu,
quem pensa”, escreveu o filósofo Th. Buchheim.
Neste domínio, nestes tempos de debates fundamentais à volta da Inteligência Artificial, a
questão decisiva é se algum dia teremos uma explicação científica da consciência. Mais: se
haverá máquinas com consciência.
O físico Carlos Fiolhais, apresentou recentemente num dos seus escritos semanais no Correio da
Manhã, precisamente à volta da Inteligência Artificial.uma famosa aposta precisamente sobre a
consciência: “Em 1994, em Tucson, nos Estados Unidos, realizou-se uma conferência intitulada
‘Em direcção a uma base científica da consciência’.” O neurocientista Christof Koch defendeu aí
que a consciência tinha uma base física: dar-se-iam disparos síncronos de neurónios 40 vezes
por segundo. O filósofo David Chalmers retorquiu, dizendo que era impossível descrever a
consciência por um fenómeno físico. Chamou ao entendimento da consciência ‘o problema
difícil’.”