quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O Homem: questão para si mesmo 10. Vida boa: bondade e inteligência entrecruzadas Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 12 Outubro 2024

 O Homem: questão para si mesmo

10. Vida boa: bondade e inteligência entrecruzadas
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

12 Outubro 2024

O senhor Elliot fora operado a um tumor. Embora a operação tenha sido considerada um êxito,
depois dela as pessoas começaram a dizer que o senhor Elliot já não era o mesmo sofrera uma
mudança de personalidade drástica. Outrora um advogado de sucesso, o senhor Elliot tornou-se
incapaz de manter um emprego. A mulher deixou-o. Tendo desbaratado as suas poupanças, viu-
se forçado a viver no quarto de hóspedes em casa de um irmão. Havia algo de estranho em todo
este caso. De facto, intelectualmente continuava tão brilhante como antes, mas fazia um
péssimo uso do seu tempo. As censuras não produziam o mínimo efeito. Foi despedido de uma
série de empregos. Embora aturados testes intelectuais nada tivessem encontrado de errado
com as suas faculdades mentais, mesmo assim foi procurar um neurologista. António Damásio, o
neurologista que Elliot consultou, notou a falta de um elemento no reportório mental de Elliot:
ainda que tudo estivesse certo com a sua lógica, memória, atenção e outras faculdades
cognitivas, Elliot parecia não ter praticamente sentimentos em relação a tudo o que lhe
acontecera.

Sobretudo era capaz de narrar os trágicos acontecimentos da sua vida de uma forma
perfeitamente desapaixonada. Damásio ficou mais impressionado do que o próprio Elliot. A
origem desta inconsciência emocional, concluiu Damásio, fora que a cirurgia da remoção do
tumor cortara as ligações entre os centros inferiores do cérebro emocional e as capacidades de
pensamento do neocórtex. O pensamento de Elliot tornara-se igual ao de um computador:
totalmente desapaixonado.

Citei livremente Daniel Goleman em Inteligência Emocional. Afinal, o ser humano não é
redutível à lógica.

No que se refere à moral, Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt,
deixou escrito que não é possível fundamentar a moral de um modo exclusivamente lógico. Isso
foi visto também por Herbert Marcuse. Já no hospital, confessou ao seu amigo Jürgen
Habermas: “Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais
elementares: na compaixão”.

Juntamente com Espinosa, terá sido Hegel que levou mais longe o racionalismo: “O que é
racional é real; e o que é real é racional”, escreveu. Mas Ernst Bloch objectou que o processo do
mundo não pode desenrolar-se a partir do logos puro. Na raiz do mundo tem de estar um
intensivo da ordem do querer. Bloch, como também Nietzsche e Freud, foi beber a
Schopenhauer. Este foi um filósofo que sublinhou do modo mais intenso que, na sua ultimidade,
a realidade não é racional, pois há uma força que tem o predomínio sobre os planos e juízos da
razão: a vontade.

Aí está um dos motivos fundamentais por que, na tentativa da explicação dos fenómenos
humanos, a nível individual e social, temos sempre a sensação de que há uma falha no
encadeamento das razões. No ser humano, há a pulsão e o lógico, o afecto e o pensamento, a
emoção e o cálculo, o impulso e a razão. O próprio cérebro, que forma certamente um todo
holístico, tem três níveis; Paul D. Mac Lean fala dos três cérebros integrados num, mas também
em conflito: o paleocéfalo, o cérebro arcaico, reptiliano, o mesocéfalo, o cérebro da
afectividade, e o córtex com o neo-córtex, em conexão com as capacidades lógicas. A luz
racional é afinal apenas uma ponta num imenso oceano. Por isso, não só não conseguimos uma
harmonia permanente como é necessário estar constantemente de sobreaviso contra a ameaça
de descalabros e catástrofes mortais.

Por outro lado, porque o ser humano não é redutível à lógica computacional, é capaz de criações
artísticas divinas, do amor gratuito, do luxo generoso, da música a música, “arte ‘pura’ por
excelência”, “a mais ‘mística’, a mais ‘espiritual’ das artes é talvez simplesmente a mais corporal”,
como escreveu Pierre Bourdieu, e que não é preciso compreender para ficar emocionado e
extasiado. Perante uma orquestra, com instrumentos de sopro, de percussão, de corda...,
assistimos a uma sinfonia que nos atira para um lugar onde nunca estivemos, mas onde
quereríamos ficar sempre e um tempo sem tempo numa experiência de êxtase de eternidade...

Neste contexto, vem-me à memória uma história de há muitos anos. Naquela manhã, estacionei
o carro. Um jovem encostou-se imediatamente para a moedinha da praxe. À noite, de regresso,
saí do comboio e dirigi-me ao carro. O jovem da manhã apressou-se. Saudei-o:

Como foi o dia, senhor João?
Sabe o meu nome? Como é que sabe o meu nome?
Foi o senhor que mo disse esta manhã.
E não se esqueceu do meu nome? Ainda se lembra do meu nome?
Como vê, senhor João.
Nunca vou deixar que algum filho da p... lhe faça mal ao carro.

Aquele jovem já trôpego e caído teve um assomo de alegria e de quase redenção. Pela razão
simples de ser tratado como gente, de alguém se lembrar dele e o tratar pelo nome.

Mas também, mais uma vez, concluí: Não basta a bondade, uma bondade cega, o sentimento
em bruto. A bondade tem de ser inteligente. Viemos ao mundo por fazer e, livres, a única tarefa
que temos é fazermo-nos: fazendo o que fazemos, uns com os outros, estamos a fazer-nos. E
isso exige a bondade e a inteligência entrecruzadas. De facto, a bondade sem a inteligência não
abre caminhos novos e pode até causar imensos estragos; a inteligência sem a bondade pode
tornar-se cruel e fazer um sem-número de vítimas. Como está à vista.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

 O EVANGELHO DOS OLHARES - Pe. Manuel João, MC

 

O EVANGELHO DOS OLHARES

XXVIII Domingo do Tempo Comum (B) 
Marcos 10,17-30: “Uma só coisa te falta!” 

O evangelho deste domingo narra o episódio do chamado jovem rico, que todos conhecemos bem. Depois do tema do matrimônio, a Palavra de Deus convida-nos hoje a enfrentar outro tema delicado: o das riquezas. 

O trecho é estruturado em três momentos. Em primeiro lugar, o encontro de Jesus com um homem rico que lhe pergunta: “Mestre bom, o que devo fazer para herdar a vida eterna?”. Em segundo lugar, o famoso comentário de Jesus sobre o perigo do apego às riquezas: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus”, logo após que, à proposta de Jesus, o jovem, com o rosto sombrio, foi embora triste. “Pois ele possuía muitos bens”, acrescenta o evangelista. Por fim, a promessa do cêntuplo àqueles que deixarem tudo “por causa dele e do Evangelho”. 

Três olhares de Jesus pontuam este evangelho: o olhar de simpatia e amor para o jovem rico; o olhar triste e reflexivo para aqueles que estão ao seu redor, após a partida do jovem; e, finalmente, o olhar profundo e tranquilizador para os seus íntimos, os doze. O olhar de Jesus hoje está voltado para nós. A escuta, a leitura, deste evangelho deve ser feita com os olhos do coração. 

O texto começa com o relato do encontro de Jesus com “um homem”, sem nome, rico, jovem, segundo Mateus (19,16-29), e um líder, segundo Lucas (18,18-30). Essa pessoa poderia ser cada um de nós. Somos todos ricos, porque o Senhor “sendo rico, fez-se pobre por nós, para que nos tornássemos ricos por meio de sua pobreza” (2 Coríntios 8,9). Ao mesmo tempo, somos todos pobres, pobres de amor, de generosidade, de coragem. Este evangelho revela a nossa realidade profunda, desnudando as nossas falsas riquezas e seguranças. “Tu dizes: Sou rico, enriqueci-me, não preciso de nada. Mas não sabes que és infeliz, miserável, pobre, cego e nu” (Apocalipse 3,17). 

Jesus fixou o olhar nele, e o amou”. Este é sem dúvida o olhar mais belo, profundo e singular de Jesus. No entanto, encontramos muitas alusões ao olhar de Jesus nos evangelhos. Seu olhar nunca é indiferente, apático ou frio. É um olhar límpido, luminoso e caloroso, que interage com a realidade e as pessoas. É um olhar curioso que se move ao redor, observa e questiona. Um olhar que revela os sentimentos profundos de seu coração. Um olhar que sente compaixão pelas multidões e intui as suas necessidades. Um olhar atento a cada pessoa que cruza seu caminho. Um olhar que suscita milagres, como no caso da viúva de Naim. Um olhar que nutre profundos sentimentos de amizade e ternura, até fazê-lo chorar pelo seu amigo Lázaro e pela cidade santa de Jerusalém, a pupila do olho de todo israelita. 

O seu olhar é também penetrante, como a sua palavra, “mais afiada que qualquer espada de dois gumes”. “Tudo está nu e descoberto” aos seus olhos, como diz a segunda leitura (Hebreus 4,12-13). Seu olhar é também flamejante (Apocalipse 2,18), que se torna colérico diante da dureza de coração, da negligência para com os pequenos e da injustiça para com os pobres. 

Os olhos de Jesus são protagonistas, os precursores da sua palavra e da sua ação. Nós, geralmente, consideramos o evangelho como um relato das palavras e ações de Jesus. Podemos dizer, no entanto, que há também um evangelho dos olhares de Jesus. São sobretudo os artistas que o contam. 

A pintura mais famosa que retrata o olhar de Jesus dirigido ao jovem rico é provavelmente “Cristo e o jovem governante rico” do pintor alemão Heinrich Hofmann (1889). O olhar profundo e intenso de Jesus é voltado para o jovem, enquanto suas mãos estão estendidas para o olhar triste e lânguido dos pobres. O jovem tem um olhar perdido, incerto e esquivo, voltado para baixo, para a terra. É uma representação icônica da vocação não realizada do “décimo terceiro apóstolo”, poderíamos dizer. Em contraste, a pintura ilustra bem a vocação do cristão: acolher o olhar de Cristo para depois o direcionar aos pobres. Sem a unificação desse duplo olhar, não há fé, apenas religiosidade alienante. 

Uma só coisa te falta!”. Qual? Acolher o olhar de Jesus sobre ti, seja ele qual for, deixar que penetre no profundo do coração e o transforme. E então descobriremos, com maravilha, alegria e gratidão, que realmente “tudo é possível a Deus”! 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

domingo, 6 de outubro de 2024

CASAMENTO CRISTÃO, UMA CONTRACULTURA? - Pe. Manuel João, MC

 CASAMENTO CRISTÃO, UMA CONTRACULTURA? 

 

XXVII Domingo do Tempo Comum (B) 


Marcos 10,2-16 (10,2-12): "Não separe o homem o que Deus uniu" 


CASAMENTO CRISTÃO, UMA CONTRACULTURA? 

O tema principal que emerge das leituras deste XXVII domingo é o matrimónio. Os fariseus, para pôr Jesus à prova, perguntam-lhe "se é lícito um homem repudiar a sua mulher". O divórcio era uma prática comum no Médio Oriente e em todo o Mediterrâneo. Mesmo a Lei de Moisés (Torá) o permitia, por iniciativa do marido, "se acontecer que ela não ache graça aos seus olhos" (Deuteronómio 24,1-4). No entanto, a lei mosaica procurava de certa forma proteger a mulher, obrigando o homem a escrever um ato de repúdio, ou seja, um certificado de divórcio, para permitir que a mulher se casasse com outro.

Quanto às motivações para o divórcio, havia na época duas escolas rabínicas com opiniões muito diferentes. A escola de Hillel interpretava a lei de forma permissiva, permitindo ao homem repudiar a sua mulher por qualquer motivo. A escola de Shammai, mais rigorosa, só o permitia em caso de adultério. 

Jesus não toma partido na disputa rabínica. Ele considera que Moisés fez essa concessão por causa da dureza do coração humano. No entanto, o plano original de Deus para o casal era outro. Deus criou-os homem e mulher, e os dois, unindo-se, tornam-se uma só carne. E Jesus conclui afirmando: "Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o homem não separe o que Deus uniu!".

Em casa, os discípulos interrogam novamente o Mestre sobre este assunto. Jesus reafirma a indissolubilidade do matrimónio, igualando a responsabilidade do homem e da mulher. No texto paralelo de Mateus, os apóstolos reagem com espanto a esta afirmação de Jesus, dizendo: "Se essa é a situação do homem em relação à mulher, não convém casar" (Mateus 19,10). A convivência matrimonial nunca foi fácil!

Pontos de reflexão 

1. Uma mudança de época. Assistimos, há algumas décadas, a uma profunda mudança na visão da sexualidade, da identidade de género e da orientação sexual, colocando em crise a instituição social da família. Neste contexto, torna-se muito difícil falar sobre o casal e a união matrimonial, entre duas posições extremas: a tradicional, ligada à cultura patriarcal, e a ideologia de género. Entre as duas posições existe um vasto campo de debate que, para um cristão, não deve ser de crítica e julgamento, mas de respeito e misericórdia.

A visão cristã do casal natural parte do dado bíblico de que a humanidade foi criada à imagem de Deus, segundo Génesis 1,27: "Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou: homem e mulher os criou". É, portanto, o "sacramento primordial da criação" (João Paulo II). O sacramento do matrimónio parte mais especificamente do apelo de Jesus ao plano original de Deus: a união indissolúvel do casal homem e mulher. Esta visão é ainda mais enriquecida pelo texto de São Paulo em Efésios 5, que desenvolve o conceito veterotestamentário da aliança esponsal entre Deus e o seu povo, apresentando o casal cristão como um "sacramento" da união entre Cristo e a sua esposa, a Igreja. Muitas vezes, infelizmente, destaca-se o elemento cultural mutável do texto ("as mulheres sejam submissas aos seus maridos em tudo"!), ofuscando o elemento bíblico perene: "Este mistério é grande: eu digo isto em relação a Cristo e à Igreja!" (Efésios 5,32).

O matrimónio cristão é uma verdadeira vocação que é memorial da união esponsal entre Cristo e a sua Igreja, tal como a vida consagrada com o voto de virgindade o é da nossa condição escatológica. A atual crise do "matrimónio na Igreja" pode tornar-se uma ocasião de graça para devolver ao sacramento a sua essência. Naturalmente, esta situação exigirá da Igreja uma capacidade inventiva cada vez maior para encontrar linhas pastorais de acolhimento para outros tipos de união, na linha da misericórdia, tendo em conta que a nossa humanidade é frágil e ferida.

2. O casamento cristão tornar-se-á cada vez mais uma contracultura, em contraste com a mentalidade dominante. Também isso pode ser um serviço prestado à sociedade para contrariar a deriva subjetivista de uma sexualidade "faça você mesmo" e de um tipo de união "descartável".

O cristão "não faz por si mesmo"! Não abdica de ter o horizonte ideal evangélico como meta da sua vida. Não baixa a fasquia para poupar esforço. Não se adapta a um estilo de vida em baixa, ao "mínimo denominador comum". E tudo isso apesar da consciência da própria fraqueza, que se torna como um espinho na carne, mas que o leva a confiar unicamente na graça de Deus.

O cristão "não usa e deita fora" nas suas relações pessoais e, ainda mais, na relação matrimonial. Por isso, torna-se um especialista em "reparações". Não descarta, mas repara! Outro nome do cristão poderia ser "reparador de brechas" (Isaías 58,12). Só assim o discípulo/a de Cristo será sal da terra e luz do mundo.

3. Como alcançar um ideal de amor tão elevado, sem 'se' e sem 'mas'? Talvez também neste caso Jesus nos responda: "Impossível para os homens, mas não para Deus! Porque tudo é possível para Deus" (Marcos 10,27). A vocação matrimonial é realmente um desafio que põe à prova a fé do cristão. Por isso, o casamento cristão só pode ser vivido a três, ou seja, colocando Cristo no centro! Também aqui se realiza, e de forma particular, a palavra do Senhor: "Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles" (Mateus 18,20).

P. Manuel João Pereira Correia, mccj
NB. Se não desejar receber este tipo de mensagens, peço que me comunique:
p.mjoao@gmail.com

 

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. 8. Uma identidade em processo Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 28 Setembro 2024

 O Homem: questão para si mesmo.

8. Uma identidade em processo
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

28 Setembro 2024

Antropologia, o estudo do Homem, é uma tarefa sem fim. De facto, o ser humano não pode
definir-se de uma vez por todas. Nem sequer há definição possível, pois ele é uma abertura
ilimitada: por mais que diga de si, nunca se diz plena e adequadamente.

A pergunta pelo Homem convoca todas as disciplinas. Não é ele, de facto, como bem viram
Aristóteles e São Tomás de Aquino, de algum modo todas as coisas? Quando questionamos: “O
que é que eu sou? Quem sou eu?”, é necessário apelar para o concurso das ciências da natureza,
da cosmologia, da física, da química, da paleontologia, da embriologia, da neurologia, da
etologia, da medicina, da linguística, da sociologia, da sociobiologia, da história, das artes, da
economia, das ciências políticas e jurídicas, da filosofia, da teologia...

O meu ilustre amigo, Juan Masiá, professor na Universidade Sophia, em Tóquio, apresentou a
questão numa bela síntese. Pode-se tentar uma Antropologia Filosófica partindo de algumas
afirmações de base. Assim:

Eu sou eu a partir da natureza, mas precisamente deste modo: provenho da natureza, mas
transcendo a natureza: em mim, a natureza e a sua história sabem de si. Impõe-se, pois, o
diálogo com as ciências da natureza e as filosofias personalistas.

Eu sou eu na minha circunstância (Ortega y Gasset). Portanto, eu sou no mundo, eu sou espácio-
temporalmente, ao mesmo tempo que transcendo e tento sempre transcender o espaço e o
tempo. Neste âmbito, são imprescindíveis os contributos das antropologias culturais, da
sociologia, das psicologias evolutivas, da história, da linguística.

Eu sou eu a partir do meu corpo, mas de tal modo que nunca sei adequadamente quem sou.
Como é que de um corpo acabado de nascer vai emergindo um eu, como é que o corpo se faz
um sujeito que vai lentamente tomando consciência de si? Neste quadro, dialoga-se com as
antropologias biológicas, com as fenomenologias existenciais.

Eu sou eu a partir de mim e perante a realidade. Eu sou eu, mas de tal modo que o segundo eu
exprime a possibilidade que uma pessoa tem de auto-objectivar-se e reconhecer-se. O ser
humano afirma-se a si mesmo na reflexão. E não é um mero animal de instintos, pois vive na
realidade: é um animal de realidades, como sublinhava o filósofo Xavier Zubiri, distinguindo
entre o imaginário, o que é objecto de desejo e o real. Apesar dos seus limites, encontraremos
aqui concretamente as antropologias racionais e reflexivas.

Eu não sou eu de modo fixo, dado de uma vez para sempre, pois eu vou sendo eu, ao sair de
mim. A partir do material genético que recebi dos meus pais e sempre condicionado por ele, eu,
se fosse educado noutro lugar e em circunstâncias diferentes, noutro ambiente, se fosse
encontrando outras pessoas ao longo da vida, seria o mesmo? A resposta é: sim e não, pois seria
eu, mas de outro modo. A identidade pessoal constrói-se e afirma-se na liberdade, mas a partir de uma herança tanto
genética como cultural, e isto num processo histórico sempre aberto: cada um de nós é uma
estrutura em permanente desestruturação para uma nova configuração: faço-me, desfaço-me,
refaço-me... A pessoa não é encerrando-se em si mesma; pelo contrário, é saindo de si que vem
a si e se encontra. O ser humano só é na relação, vivendo mesmo este paradoxo: só porque é
abertura a tudo é que é intimidade pessoal e única, e experiencia-se enquanto liberdade, ainda
que sempre liberdade em situação. Aqui, entram os contributos das psicologias evolutivas e
sociais, das filosofias do conhecimento, do amor, da práxis, da história.
Eu não sei se sou eu. Serei eu? Acontece por vezes o ser humano olhar para o que fez e
perguntar: fui eu que fiz isto? como foi possível?, aí não era eu. É, pois, inevitável o confronto
com os desafios da psicanálise, dos estruturalismos, das neurociências, da sociobiologia.
Eu ainda não sou eu, mas vou-me tornando eu e sou mais do que eu, eu sou o que serei para lá
de mim. O Homem é um ser temporal, vai-se fazendo historicamente. O ser humano é
simultaneamente um ser que sabe da sua morte inexorável e que constitutivamente espera para
lá da morte. Ele não é ainda, vai sendo e quer ser em plenitude: espera, assim, a sua realização
para lá da história intramundana. A antropologia desemboca assim em perguntas pela
ultimidade, que são questões da constituição metafísica do real e da conexão entre ética,
esperança e religião.
Aqui chegados, é ainda necessário reconhecer que estas afirmações-perguntas formuladas na
primeira pessoa do singular têm de apresentar-se no plural, pois o Homem só é real e
autenticamente na relação, a identidade individual implica a identidade social e histórica e
planetária e cósmica. Afinal, em cada ser humano está presente a realidade toda. Da identidade
de cada ser humano faz parte a humanidade inteira - lá estão, de novo, Aristóteles e São
Tomás: anima est quodammodo omnia (a alma, o ser humano, é de algum modo tudo).
Por todas estas razões, o Homem é sobretudo, para lá de tudo, o ser da pergunta, no sentido
radical, dito no étimo da palavra - perguntar vem do latim: percontare, que contém contus, um
pau comprido com o qual se remexe um tanque até ao fundo (o que há lá no mais fundo?). De
pergunta em pergunta, o Homem vai até ao infinito e pergunta ao infinito pelo infinito, ou seja,
por Deus, já que a pergunta pelo sentido global da existência é constitutiva e inevitável

terça-feira, 1 de outubro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. 7. Sujeito irredutível Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 21 Setembro 202

 O Homem: questão para si mesmo.

7. Sujeito irredutível
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

21 Setembro 2024

Já Freud falou das várias humilhações do Homem.

A primeira foi a cosmológica. O Homem pensava ocupar o centro do universo. O Sol girava à
volta da Terra. Copérnico, porém, veio mostrar que afinal é a Terra que gira à volta do Sol. E hoje
sabemos que o Sol é apenas uma estrela de entre trezentas ou quatrocentas mil milhões da
nossa galáxia e, como a nossa galáxia, há centenas de milhares de milhões...

A segunda humilhação foi a biológica e vem fundamentalmente de Darwin. O Homem não foi
directamente criado por Deus como coroa e senhor da criação, pois apareceu por evolução, em
que também jogam forças do acaso... De qualquer forma, mergulhamos as nossas raízes na
animalidade.

Desde Karl Marx que sabemos mais explicitamente - e é a humilhação sociológica - que nenhum
de nós fala a partir de um lugar neutro: nas nossas concepções de sociedade, de justiça, de
religião, de direito..., somos condicionados pela sociedade e pelo lugar que nela ocupamos.

O próprio Freud contribuiu decisivamente para a humilhação psicológica: o poder da
autoconsciência límpida e a arrogância do eu soberano foram abalados, já que há em nós as
forças subterrâneas e nocturnas do inconsciente, que não controlamos: a razão não é plena e
adequadamente transparente e não somos exactamente o que julgamos ser, pois há em nós
também o que é e nos impulsiona sem nós: o “isso” em nós sem nós...

Mais recentemente, fomos confrontados com as humilhações estruturalista e informática. E,
presentemente, está aí a revolução gigantesca da Inteligência Artificial, que leva alguns a
perguntar se não iremos ser substituídos por máquinas...

Agora, quando se reflecte sobre o Homem, é pelo menos necessário perguntar, como escreveu
Javier San Martín, até que ponto a subjectividade humana é um “sujeito-de” para lá de um
sujeito-a”...

Claro que a subjectividade é ineliminável. Mas aquele sujeito cartesiano auto-constituído pela
reflexão e de modo soberano ficou abalado. Tomámos consciência de que a alteridade nos
constitui. Para virmos a nós mesmos e à nossa identidade, temos de passar pelo outro - e este
outro é o outro humano (por princípio, o primeiro outro que encontrámos foi a mãe), o outro
que é a linguagem e a cultura, o outro que é cada um de nós para si mesmo enquanto um outro:
as nossas obras, as nossas possibilidades, a nossa escuridão, as nossas esperanças...
De qualquer modo, a Humanidade sempre teve consciência de si, sabendo que mergulhava em
abismos, onde mora o recôndito, o tenebroso e o incontrolável. A alma humana também é
habitada por complexos, medos, conflitos, paradoxos, antagonismos, ambivalências, angústias,
que, no fundo mais fundo, têm a sua génese na consciência da mortalidade.

Afinal, não é totalmente verdade o que dizemos: “querer é poder” - de facto, nem sempre
queremos o que podemos e nem sempre podemos o que queremos -, e há aquele “isso” em
nós, impenetrável, que nos impede a transparência total de nós mesmos.

Quando faltavam categorias filosóficas, científicas ou psicológicas, exprimiu-se essa outra
dimensão temerosa de nós sem nós, utilizando, por exemplo, o imaginário dos monstros, com
demónios, com híbridos, com figuras de seres humanos zoomorfos e de animais
antropomorfos... Mesmo o Evangelho, quando se está atento, é também combate do tenebroso,
demoníaco e diabólico, e promessa de reconciliação e de luz.

De qualquer modo, continuará o enigma humano de um corpo que diz eu. E, quando cada um o
diz, fá-lo de modo único e intransferível. Pela sua própria natureza, ao mesmo tempo que é
abertura à totalidade, cada eu é irredutível, em polaridade com tudo quanto existe. Como se
não cansava de repetir o filósofo Julián Marías, “o filho que diz eu é irredutível ao seu pai, à sua
mãe, a Deus e a toda a realidade, seja ela qual for”.

Assim, não é a mesma coisa perguntar: O que é o Homem? e: Quem é o Homem? De facto, o
Homem não é um quê, uma coisa, pois é realidade essencialmente aberta, em processo de
fazer-se, projectando-se a si próprio em permanência, de tal modo que se vive como paradoxo
vivo de em-si-fora-de-si-para--de-si e centro ex-cêntrico, u-tópico, em processo de
transcendimento...

Porque nunca é dado, o Homem como pessoa não cabe na definição famosa de Boécio:
“Substância ou coisa individual de natureza racional.” O Homem é um quem, alguém.
Evidentemente, vai-se fazendo, e, na medida em que se faz, faz-se algo, mas, precisamente
porque é alguém, nega e transcende sempre todos os algos e quês, recusando e superando toda
a coisificação. O Homem é sempre mais do que consegue objectivar de si.

No meio de todas as humilhações, ao ser humano reflexivo impor-se-á sempre a subjectividade
própria, pois a ciência objectiva só existe para e a partir do sujeito. O sujeito humano - sublinhe-
se -, por mais que objective de si, deparará sempre com o inobjectivável, já que a condição de
possibilidade de objectivar é ele mesmo enquanto sujeito irredutível. O Homem enquanto
sujeito transcenderá, portanto, continuamente a explicação das ciências objectivantes.

Deste modo, como escreveu o filósofo José Gómez Caffarena, mantendo “a nossa condição
irrenunciável de sujeitos - não só de conhecimento, mas também de acção, de decisão, de
valoração moral, estética... -, renascerá sempre para nós, nessa perspectiva, a pergunta
pelo sentido global da existência”.
Escreve de acordo com a antiga ortografi