Deus: o essencial
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Vivemos imersos em crises que nos
desumanizam, mas a maior, no meu
entender, é vivermos mergulhados no ter,
no prazer, no poder pelo poder, nas redes
sociais, nas tecnologias, no imediatismo, na
vertigem da pressa, esquecendo o ser, o
parar para pensar, a pergunta por Deus...
Enredamo-nos assim no sem sentido...
Com razão, perguntava Karl Rahner,
talvez o maior teólogo católico do século XX
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— tenho a honra de ter sido aluno: O que
aconteceria, se a simples palavra “Deus”
deixasse de existir? E respondia: “A morte
absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que
eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já
não ouvido por ninguém, de que o Homem
morreu.”
Václav Havel, o grande dramaturgo e
político, pouco tempo antes de morrer,
surpreendeu muitos ao declarar que
“estamos a viver na primeira civilização
global” e “também vivemos na primeira
civilização ateia, numa civilização que
perdeu a ligação com o infinito e a
eternidade”, temendo, também por isso,
que “caminhe para a catástrofe”.
Há uma correlação íntima entre a
concepção de Deus e a concepção do
Homem. Com o eclipse de Deus é o sentido
do mundo que desaparece e o próprio
Homem perde orientação. George Minois
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conclui a sua História do Ateísmo: se,
independentemente da sua resposta,
positiva ou negativa, o Homem já não vir
necessidade de colocar a questão de Deus,
isso significa que, pela primeira vez na sua
História, a Humanidade sucumbe ao
imediatismo, a uma visão fragmentária do
aqui e agora e “abdica da sua procura de
sentido”.
No contexto de uma crise global — crise
financeira, económica, social, política, moral
—, é preciso decisivamente perguntar se a
crise de Deus não ocupa lugar central.
De qualquer modo, a quem não quiser
ficar na pura imediatidade empírica — será
isso possível? — impõe-se a questão do
mistério último da realidade. A pergunta
essencial é então se se opta pela Natureza
impessoal ou pelo Deus transcendente,
pessoal e criador.
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Compreende-se o fascínio em
permanecer na afirmação da Natureza como
força geradora divina de tudo. Esta
concepção é bem resumida pelo filósofo
Marcel Conche, ao escrever que Deus é
inútil, pois a Natureza cria seres que podem
ter ideias de todas as coisas, inclusive da
própria Natureza. Está a referir-se não à
Natureza “oposta ao espírito ou à história
ou à cultura ou à liberdade”, mas à
“Natureza omni-englobante, a physis grega,
que inclui nela o Homem. Essa é a Causa
dos seres pensantes no seu efeito.”
Esta concepção confronta-se, porém, com
objecções de fundo. Por um lado, ao
divinizar a Natureza, põe em causa a
secularização e, consequentemente, a
liberdade. Por outro, tem dificuldades em
explicar como é que a Natureza, que é
impessoal, dá origem à pessoa, como é que
mecanismos da ordem da terceira pessoa
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acabam por dar origem a alguém que se
vive a si mesmo como eu irredutível na
primeira pessoa.
Neste domínio, houve um debate
significativo entre o matemático P.
Odifreddi e o Papa emérito Bento XVI. Na
sua resposta ao livro de Odifreddi, Caro
Papa, ti scrivo, Bento XVI escreveu uma
longa carta, em parte publicada no jornal
“La Repubblica” de 24 de Setembro de 2013,
referindo precisamente este debate.
Textualmente: “Com o 19º capítulo do seu
livro, voltamos aos aspectos positivos do
seu diálogo com o meu pensamento.
Mesmo que a sua interpretação do
Evangelho segundo São João 1, 1 — “No
princípio era o Logos e o Logos estava com
Deus e o Logos era Deus” — esteja muito
longe do que o evangelista pretendia dizer,
existe, no entanto, uma convergência que é
importante. Mas se o senhor quer substituir
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Deus por ‘A Natureza’, fica a questão: quem
ou o que é essa natureza. O senhor não a
define em lugar nenhum e, portanto, ela
parece ser uma divindade irracional que
não explica nada. Mas eu quereria
sobretudo fazer notar ainda que, na sua
religião da matemática, três temas
fundamentais da existência humana não são
considerados: a liberdade, o amor e o mal.
Espanta-me que o senhor, com uma única
referência, liquide a liberdade que, contudo,
foi e é o valor fundamental da época
moderna. O amor, no seu livro, não aparece,
e também não há nenhuma informação
sobre o mal. Independentemente do que a
neurobiologia diga ou não diga sobre a
liberdade, no drama real da nossa história
ela está presente como realidade
determinante e deve ser levada em
consideração. Mas a sua religião
matemática não conhece nenhuma
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informação sobre o mal. Uma religião que
ignore essas questões fundamentais
permanece vazia.”
Evidentemente, quem acredita no Deus
transcendente, pessoal e criador sabe que
Deus não é pessoa à maneira das pessoas
humanas, finitas. Deus também não é um
Super-homem. O que se quer dizer é que
Deus não é um Isso, uma Coisa. Como
escreveu o teólogo Hans Küng, “Deus, que
possibilita o devir da pessoa, transcende o
conceito do impessoal: não é menos do que
pessoa”. Não esquecendo que Deus é e
permanece o Inabarcável, o Indefinível, o
Inominável — Gregório de Nazianzo (330-
390) perguntava: “Ó Tu, o para lá de tudo,
não é tudo o que se pode dizer de Ti?” —,
pode dizer-se que é “transpessoal”.
Só nEle pode o ser humano encontrar
sentido, Sentido último.
Sábado, 14 de Junho de 2025