quinta-feira, 14 de novembro de 2024

XXXIII Domingo do Tempo Comum (B) Marcos 13,24-32: “Aprendei da figueira” O horóscopo do cristão - Pe. Manuel João- MC

 XXXIII Domingo do Tempo Comum (B)  

Marcos 13,24-32: “Aprendei da figueira”  
O horóscopo do cristão

Chegámos ao penúltimo domingo do ano litúrgico, que terminará no próximo domingo com a festa de Cristo Rei do Universo. Todos os anos, neste penúltimo domingo, a Palavra de Deus convida-nos a levantar os olhos para os horizontes da história, renovando a nossa esperança no regresso do Senhor. Ao mesmo tempo, com a celebração do Dia Mundial dos Pobres neste mesmo domingo, somos incentivados a reconhecer a presença de Cristo nos mais pobres e necessitados.

O trecho do Evangelho de hoje faz parte do capítulo 13 de São Marcos, inteiramente dedicado ao chamado discurso sobre o fim do mundo. O início do capítulo apresenta as circunstâncias deste discurso. Quando saíam do Templo, um dos discípulos chamou a atenção de Jesus para a grandiosidade das suas construções. O Templo, reconstruído por Herodes, o Grande, era realmente magnífico, uma das maravilhas da época. Jesus respondeu: “Vês estas grandes construções? Não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada.” Podemos imaginar o espanto e a perplexidade de todos. Esta profecia cumprir-se-á com a destruição da cidade no ano 70, pelos Romanos.

Enquanto estavam no Monte das Oliveiras, sentados em frente ao Templo, Pedro, Tiago, João e André, os primeiros discípulos chamados por Jesus, interrogaram-no em particular sobre quando e qual seria o sinal de que esta profecia estava para se cumprir. Jesus pronunciou então o chamado “discurso apocalíptico”, o ensino mais longo de Jesus no Evangelho de Marcos. Em conexão com a destruição do Templo e da cidade santa, Jesus fala sobre o fim do mundo e o seu retorno em glória. Esta ligação entre o fim da nação judaica e o retorno do Senhor levou os primeiros cristãos a pensar que o fim era iminente.

Para entender a mensagem do texto, é necessário considerar duas coisas. Em primeiro lugar, o texto é redigido no estilo chamado apocalíptico, difícil de entender para nós, devido à complexidade do seu simbolismo e aos cenários cósmicos, frequentemente esotéricos. “Apocalipse” significa “revelação”. No entanto, não se trata de uma profecia sobre o futuro, como se costuma pensar, mas da revelação do sentido dos eventos da história. Em segundo lugar, este género literário, que floresceu entre o século II a.C. e o século II d.C., não tinha como objetivo assustar, mas sim oferecer conforto e esperança ao povo de Deus em tempos de tribulação e perseguição, anunciando a intervenção de Deus para libertar o seu povo. Poderíamos dizer que a literatura apocalíptica não fala do “fim” do mundo, mas do “sentido” do mundo, isto é, para onde caminha a história.

 

Pontos de reflexão

1. O fim deste mundo já começou!  

“Naqueles dias, depois de uma grande aflição, o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade; as estrelas cairão do céu e as forças que há nos céus serão abaladas.” A perturbação do sol, da lua e das estrelas parece aludir à criação em Génesis 1, como se estivesse prestes a acontecer uma de-criação. Uma referência ao cenário cósmico também aparece na narrativa da morte de Jesus nos Evangelhos sinópticos (Marcos, Mateus e Lucas). Com a crucificação do Filho de Deus, caem o “firmamento” do céu, ou seja, as seguranças e os pontos de referência do homem, e todas as imagens que o homem fazia de Deus. Com a ressurreição de Cristo, inicia-se o processo da nova criação, dos novos céus e da nova terra (2 Pedro 3,13).

2. O fim deste mundo é o objeto da nossa esperança  

“Então, hão de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens, com grande poder e glória.” Nós aguardamos esta vinda do Senhor. Proclamamos isso no coração da Eucaristia: “Anunciamos a tua morte, Senhor, proclamamos a tua ressurreição, enquanto aguardamos a tua vinda.” Isso não significa desejar o “fim do mundo” ou uma “catástrofe apocalíptica”, e muito menos tentar adivinhar a hora da sua chegada através dos “sinais” de guerras, terremotos, fomes, perseguições, tribulações, abominações… Estas realidades sempre existiram. Basta-nos saber que tudo está nas mãos do Pai.

“Aprendei a parábola da figueira: quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas, sabeis que o Verão está próximo.” A figueira anuncia a chegada do verão, a estação dos frutos. Assim é para o cristão, que aguarda com alegria a maturação dos tempos e o encontro com Jesus. O livro do Apocalipse termina com esta resposta do Senhor à oração da Igreja: “Sim, venho em breve! Amém. Vem, Senhor Jesus.”

3. Artífices do fim deste mundo  

“Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão.” Meditando neste Evangelho, o cristão cresce na consciência da provisoriedade da vida e da história. O “fim do mundo” é, afinal, uma realidade de cada dia: todos os dias um mundo morre e um nasce. “Vamos de início em início, através de novos inícios”, diz São Gregório de Nissa. Tudo passa. Apenas duas coisas permanecem: a Palavra do Senhor e a caridade (1 Corintios 13,8).

A nossa espera, no entanto, não é passiva, mas ativa e laboriosa. Estamos envolvidos na preparação da vinda do Reino. Como? Sacudindo o “firmamento” das estrelas e astros que regulam o mundo atual! Sol, lua, estrelas, astros eram divindades no mundo pagão antigo, que governavam a vida dos homens. Basta pensar que cada dia da semana era dedicado a um astro. Os nomes das estrelas e dos astros mudaram, mas o firmamento do nosso mundo continua a ser povoado por deuses: negócios, bolsa de valores, poder, prestígio, beleza, prazer… O “horóscopo” do cristão tem outro firmamento de astros: amor, fraternidade, solidariedade, serviço, justiça, compaixão… Para abalar os alicerces do “velho mundo”, é preciso abalar o “firmamento” que o governa. A tarefa não é nada fácil. Por onde começar? Por nós mesmos: “Não vos conformeis com este mundo, mas deixai-vos transformar, renovando o vosso modo de pensar.” (Romanos 12,2).

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. 14. A morte e o intolerável Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 10 Novembro 2024

 O Homem: questão para si mesmo.

14. A morte e o intolerável
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

10 Novembro 2024

Conta-se que um dia um padre entrou na igreja e viu Deus a rezar. Terrivelmente perplexo,
perguntava a si mesmo a quem é que Deus poderia rezar. Aproximou-se, e constatou, com
espanto, que, Deus rezava ao homem: “Homem, se existes, mostra-te, aparece!” Mas Deus, o
criador, devia saber que o homem existe - como é que perguntava por ele?! De qualquer modo,
daí para diante, o padre anunciava por toda a parte que Deus existe: ele próprio tinha-o visto a
rezar ao homem, a perguntar por ele...

Nesta história - ingénua? -, está presente aquela urgência em que consiste a questão de Deus,
que Eduardo Lourenço traduziu assim: “Deus? O problema é saber se nós existimos para Deus.”

Afinal, porque é que perguntaríamos por Deus, se ele não estivesse presente em nós? Como é
que o procuraríamos, se, como explicitaram concretamente Santo Agostinho e Pascal, o não
tivéssemos já encontrado?

Deus está presente, pelo menos como questão aberta, essencialmente na pergunta irrecusável
pelo sentido último. A existência humana é uma caminhada de sentido em sentido: tem sentido
crescer e aumentar os conhecimentos, tem sentido casar, formar família, ter filhos, educá-los,
procurar uma realização profissional, tem sentido bater-se pela Justiça, festejar, fazer
investigação para aprofundar a compreensão do mundo e transformá-lo, sacrificar-se pela
edificação de uma sociedade mais justa e feliz... Mas se, no fim, pela morte, tudo desembocasse
no nada, então, em última análise, tudo apareceria sem sentido, precisamente porque a vida é
essa caminhada de sentido em sentido, à procura do Sentido último, e, no final, era o nada.
Precisamente esse nada é intolerável.

O carácter insuportável desse nada, do acabar no nada, do nunca mais ser para todo o sempre,
adquire intensidade dramaticamente maciça na morte do amigo. Por um lado, olha-se para
aquele resto cadavérico e tem-se consciência de que o amigo está real e totalmente morto - é
uma naturalidade evidente morrer e estar morto. Por outro, o amigo não é, não pode ser, aquele
resto. Mas então onde está, para onde foi? Como é que partiu sem deixar endereço? E fica-se
atordoado, é como se o mundo nos caísse em cima ou caíssemos nós num abismo - o
pensamento desfaz-se de parede contra parede, a fonte das palavras fica absolutamente seca, e
é um vazio sem fim...

A morte de alguém é sempre o fim de um mundo, a morte de um amigo é irreparável. Com a
morte do amigo, a nossa própria morte faz a sua entrada no mais profundo de nós mesmos.
Como escreveu Santo Agostinho: “Admirava-me de viverem os outros mortais, quando tinha
morrido aquele que eu amava, como se ele não houvesse de morrer! E, sendo eu outro ele, mais
me admirava de eu viver, estando ele morto.” E aí ergueu-se gigantesca, assombrosa e inevitável
a pergunta essencial: “Factus eram ipse mihi magna quaestio - tinha-me tornado para mim
próprio uma questão enorme.”

Decisivo é não abandonar a pergunta até ao fim e ao fundo. É que, como escreveu Theodor
Adorno, fundador da Escola Crítica de Frankfurt, agnóstico: “O pensamento que não se decapita
desemboca na Transcendência.” E como escreveu Max Horkheimer, outro fundador da Escola de
Frankfurt, “é impossível salvar um sentido absoluto sem Deus” e, por isso, a religião está em
conexão com “o anelo de que esta existência terrena não seja absoluta”, de que o sofrimento e a
morte “não sejam o último.”
Escreve de acordo com a antiga orto

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Uma viúva na cátedra - Pe. Manuel João - MC

 Uma viúva na cátedra

 

XXXII Domingo do Tempo Comum (B)

Marcos 12,38-44: A pobre viúva deu tudo o que tinha

O Evangelho deste domingo situa-se no mesmo contexto do domingo passado. Estamos em Jerusalém, no Templo, onde Jesus ensina a uma “grande multidão que o ouvia com prazer” (Mc 12,37), despertando a ira das autoridades religiosas, que já haviam decidido matá-lo. Estamos ainda no terceiro dia da sua chegada a Jerusalém, um dos dias mais longos, intensos e decisivos do ministério de Jesus, no Evangelho de Marcos. Esta é a última vez que Jesus visita o Templo e fala à multidão; três dias depois, será morto.

O contexto deste ensinamento é, portanto, muito especial e confere um peso excepcional às palavras de Jesus. O que Ele diz e faz neste momento tem o sabor de um testamento espiritual.

O trecho divide-se em duas partes. Na primeira, Jesus dirige-se à multidão, alertando-a contra o comportamento dos escribas (versículos 38-40). Na segunda, dirige-se aos discípulos chamando a atenção deles para uma pobre viúva que doa ao tesouro do Templo tudo o que possui (versículos 41-44).

Acautelai-vos de…”

“Acautelai-vos dos escribas, que gostam de exibir longas vestes, de receber cumprimentos nas praças, de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes.” Os escribas eram os especialistas da Torá, os mestres da Lei, os teólogos e juristas da época. É uma crítica muito forte dirigida a uma categoria de pessoas geralmente respeitadas.

Jesus denuncia o tipo de pessoas que vivem apenas de aparências: exteriormente parecem perfeitas, mas interiormente podem ser falsas. Se essa atitude é condenável na sociedade, é ainda mais na Igreja. Em vez de servirem a Deus, eles servem-se de Deus, “orando longamente para serem vistos”; e, em vez de servirem ao próximo, exploram-no, “devorando as casas das viúvas”. É o oposto do que Jesus nos ensinou no domingo passado: amar a Deus e amar ao próximo.

No entanto, não pensemos nos escribas de antigamente, mas nos de hoje. Não olhemos para os escribas externos, mas para os que estão dentro de nós. Porque aquilo que os escribas amavam, nós também amamos: aparecer, dar uma boa imagem de nós mesmos, ocupar os primeiros lugares, ser respeitados e honrados, estar de alguma forma sob os holofotes. Desses escribas, mestres ou modelos, há muitos, tanto na sociedade, divulgados pelos meios de comunicação, quanto na Igreja. O caminho da aparência é escorregadio e pode facilmente levar da aparência à falsidade e da falsidade à corrupção. “Pecadores sim, corruptos nunca,” diria o Papa Francisco.

Olhai para…”

Na segunda parte do texto, o cenário muda. “Jesus sentou-se em frente da arca do tesouro, a observar como a multidão deitava o dinheiro na caixa. Muitos ricos deitavam quantias avultadas.” No Templo, havia treze caixas destinadas a recolher ofertas, cada uma para um propósito específico, exceto a última, a décima terceira. Em frente a cada caixa, um funcionário controlava e anunciava em voz alta o valor doado. Com a aproximação da Páscoa, o número de peregrinos aumentava, e um rio de moedas de ouro e prata, tilintando, fluía para as caixas do Templo, o maior banco do Oriente Médio!

“Veio uma pobre viúva e deitou duas pequenas moedas.” A viúva era uma das categorias de pessoas vulneráveis a serem protegidas, segundo as Sagradas Escrituras: o órfão, a viúva e o estrangeiro. Esta mulher, viúva e pobre, lança na décima terceira caixa tudo o que possui: dois centavos. É quase nada, mas é tudo para ela. Era pouco, mas representava tudo o que ela tinha para viver.

“Jesus chamou os discípulos e disse-lhes: Em verdade vos digo: Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros.” O Mestre “chama” os seus discípulos pela última vez e coloca essa viúva na cátedra para o seu último ensinamento: - Olhem para ela! Aqui está o que eu quis dizer quando disse: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e com toda a tua força.”

Outra viúva, protagonista da primeira leitura, é a pobre viúva de Sarepta, uma mulher pagã, que oferece a um estrangeiro, o profeta Elias, o último punhado de farinha que guardava para si e para seu filho antes de morrer. Aqui está o que significa “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”

Pontos de reflexão

- A viúva do Evangelho antecipa profeticamente o que Jesus fará três dias depois, entregando a sua vida ao Pai por nós. Ele, sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer (2Coríntios 8,9) e despojou-se completamente de si mesmo até morrer como um escravo na cruz (Filipenses 2,7-8).

- A generosidade desta viúva representa também a da Virgem Maria que, aos pés da cruz, oferecerá o seu único filho. Além disso, anuncia a condição presente da Igreja, a quem foi tirado o Esposo (Marcos 2,18-19).

- A pobre viúva, finalmente, lembra-nos da nossa pobreza radical. Viúvo/a etimologica­mente significa estar privado, carente, desprovido. Nesse sentido, todos vivemos em uma condição de “viuvez”. Além da satisfação das necessidades diárias, frequentemente experimentamos que nos falta algo essencial para realizar plenamente a nossa existência. É importante tomar consciência dessa falta profunda. Santo Agostinho expressa isso com a sua famosa oração: “Tu nos fizeste para ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em ti”. Paradoxalmente, para preencher esse vazio, Jesus e o seu Evangelho nos propõem oferecer a nossa vida como dom: “Quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, salvá-la-á” (Marcos 8,35).

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

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domingo, 3 de novembro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. Nos cemitérios, o que há? Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 03 Novembro 2024

 O Homem: questão para si mesmo.

Nos cemitérios, o que há?
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

03 Novembro 2024

Apesar de a morte hoje se ter tornado tabu, muitos nestes dias passaram pelos cemitérios. E a
pergunta é: que foram lá fazer? Quando alguém está concentrado num cemitério perante a
campa de um familiar, de um amigo, está a olhar para onde? E o que é que vê realmente?

Há talvez algumas imagens entrecortadas que lhe passam de modo fugaz pela mente. Mas,
quando olha, verdadeiramente absorto, embora talvez com os olhos muito abertos para ver, o
que realmente lhe aparece é simplesmente e só um abismo sem fundo e sem fim, um vazio
ilimitadamente aberto...

Mas olhar e ver um abismo sem fundo e sem fim e um vazio ilimitadamente aberto, isto é, não
ver nada, é o que propriamente se chama ver o Mistério.

Quando se vai ao cemitério visitar a campa de um familiar, de um amigo, presta-se uma
homenagem, faz-se uma romagem de saudade... É isso: de saudade, no sentido mais fundo da
palavra, dito na própria etimologia - a saudade refere-se a uma ausência sem nome e sem fim,
que nos faz sentir a solidão (solitate) que nos dói; se o étimo for salutem dare (saudar), então
trata-se de uma saudação, com o desejo de que quem partiu esteja bem. Aí, no recolhimento
mais intenso, pode erguer-se, sem palavras, uma súplica, um soluço, como forma de tentar
balbuciar o Mistério indizível...

A morte é o mistério pura e simplesmente... Perante ela e tudo o que se lhe refere, é como se
caíssemos num precipício, onde se estilhaça a capacidade de pensar... Ninguém sabe o que é
morrer. Que instante é esse o da morte, mediante o qual se deixa de pertencer ao mundo e ao
tempo? Mesmo que assistamos à morte de alguém, é de fora que o fazemos... Ninguém sabe o
que é estar morto. Diante do cadáver do pai, da mãe, do filho, do amigo, do marido, da mulher,
não tem sentido dizer: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo
está aqui morto, o meu marido está aqui morto, a minha mulher está aqui morta... De facto, eles
não estão ali... Também é por pura ilusão de linguagem que dizemos que levamos o pai, ou a
mãe, ou o filho, ou o amigo, ou a mulher, ou o marido à sua última morada... Como não
podemos dizer, quando vamos ao cemitério, que os vamos visitar... Nos cemitérios, com
excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém.

Pergunta-se então: porque é que é um crime nefando em todas as culturas e sociedades a
violação de um cemitério se lá não há ninguém? Afinal o que é que está nos cemitérios?

Nos cemitérios, o que há é uma incontível e inapagável interrogação: o que é o Homem, o que é
ser-se humano? O que há nos cemitérios é a afirmação de que, seja como for, a antropologia
não é redutível a um simples capítulo da zoologia...
Afinal, para onde foram os mortos? Não será que, como acontece nas guerras, andam perdidos,
mas um dia havemos de encontrá-los e encontrar-nos? Para onde vão os mortos? Para o nada?
Mas, como perguntava o filósofo Bernhard Welte, que nada é esse? O nada vazio e nulo ou o
nada enquanto véu que oculta a realidade verdadeira, como quando entramos num espaço de
breu e dizemos: aqui, não vejo nada, o que não significa que lá não haja nada, pois pode até
acontecer que lá se encontre o tesouro maior?... Para onde vão os mortos? Para a noite total ou,
pelo contrário, para a luz plena, de tal modo luz que para nós é noite, como quando, olhando
para o sol de frente, ficamos cegos pelo excesso de luz? No final, está a esperança.

Dar um coração à lei! - Pe. Manuel João, MC

 31º Domingo do Tempo Comum (Ano B) 

Marcos 12,28-32: “Escuta, Israel!” 

Dar um coração à lei! 

Já passaram três dias desde a chegada a Jerusalém. No domingo passado, percorremos o último trecho da estrada, subindo de Jericó na companhia dos Doze e da multidão de peregrinos. Entre eles estava Bartimeu, o cego de Jericó que Jesus curou, símbolo de todos nós. 

O Senhor passa os últimos dias da sua vida entre o Templo e Betânia, uma aldeia na periferia da cidade. Durante o dia, permanece no Templo, onde ensina o povo que o escuta de bom grado (11,18). À noite, com os seus, retira-se para Betânia, como hóspede de amigos.

Estamos no terceiro dia da sua estadia na cidade santa, o destino final do seu ministério. Este dia é particularmente intenso e começa com um sinal: a figueira seca desde as raízes (11,20-26), símbolo de uma vida estéril e do poder da oração. No Templo, Jesus confronta-se com os chefes religiosos, que contestam a sua autoridade para ensinar naquele lugar (11,27-33). A eles, Jesus conta a parábola dos vinhateiros homicidas (12,1-12). O destino de Jesus já está traçado: as autoridades decidiram eliminá-lo e só procuram a ocasião e um pretexto. Segue-se, então, uma série de armadilhas para o colocar em dificuldade: primeiro sobre o tributo a César (12,13-17) e depois sobre a ressurreição dos mortos (12,18-27). Este é o contexto do trecho do Evangelho de hoje. 

Pontos para reflexão 

1. Perdidos no labirinto das leis 

Aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe: ‘Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” 

Segundo Mateus e Lucas, este doutor da Lei também queria pôr Jesus à prova (Mateus 22,35; Lucas 10,25). Qual era, neste caso, a armadilha? Para a mentalidade comum da época, o grande mandamento era o terceiro do Decálogo: a observância do sábado, pois o próprio Deus o tinha observado após o “trabalho” da criação (Génesis 2,2). Os adversários esperavam que Jesus respondesse assim, para o acusarem: “Então, por que tu e os teus discípulos não respeitam o sábado?”. 

Para o evangelista Marcos, porém, a pergunta do escriba era sincera e pertinente. Com a intenção de regular toda a vida segundo a lei de Deus, os rabinos tinham identificado 613 preceitos na Torá (Pentateuco), além dos dez mandamentos: 365 negativos (proibições, correspondentes aos dias do ano solar) e 248 positivos (prescrições, correspondentes aos órgãos do corpo humano, segundo a crença da época). Um verdadeiro labirinto! Num emaranhado de leis como este, sentia-se a necessidade de discernir o que era verdadeiramente essencial. 

2. O amor é a lei! 

Jesus respondeu: O primeiro é este: ‘Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças”.

Jesus não cita nenhum dos dez mandamentos, mas eleva-se do plano legalista ao nível do amor. Refere a profissão de fé do “Shema Israel”, “Escuta, Israel” (Deuteronómio 6,4-5, ver a primeira leitura), a oração que todo judeu recita três vezes ao dia (de manhã, à noite e antes de dormir). 

O segundo é este: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Não há nenhum mandamento maior que estes.” 

Ao “primeiro” mandamento, Jesus acrescenta um “segundo” tirado de Levítico 19,18. Esta combinação de textos da Torá é original e própria de Jesus. 

Qual é a relação entre os dois mandamentos? Santo Agostinho comenta: “O amor a Deus é o primeiro que é mandado; o amor ao próximo é o primeiro, porém, a ser praticado”. No Novo Testamento, esta síntese da lei nos dois mandamentos não é mencionada noutro lugar e parece inclinar-se para o amor ao próximo: “Isto vos mando: amai-vos uns aos outros” (Jo 15,17). Para São Paulo, “toda a lei encontra a sua plenitude num só preceito: amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14) e “o pleno cumprimento da lei é o amor” (Rm 13,10). O amor pelo irmão é o espelho e a prova do amor de Deus. Quem diz que ama a Deus e não ama o irmão é mentiroso (1 Jo 4,20-21). Os “dois amores” são, na verdade, inseparáveis. 

3. “Amarás!”: dar um coração à lei 

Em ambos os textos citados por Jesus, a palavra-chave é o imperativo “Amarás!”. O amor torna-se, assim, a chave da Lei. Os deuses pagãos desejavam adoradores submissos, escravos; o Deus de Jesus Cristo, por sua vez, quer filhos livres, capazes de amar. O verbo “amar” (ahav em hebraico) aparece no Antigo Testamento 248 vezes (Fernando Armellini). Dir-se-ia que é um número simbólico, pois corresponde ao número de preceitos positivos (coisas a fazer), segundo a tradição rabínica. Poderíamos dizer que a única coisa a fazer sempre (365 dias por ano!) é amar. 

A Torá, que emanava do coração de Deus, tinha perdido o seu espírito original e, em vez de servir o homem, tinha-se transformado num fardo pesado. Jesus veio para devolver o coração a tudo o que é humano. Agora, no coração da Lei, podemos redescobrir o Seu Coração! 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj 

 

 

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

VIVER E HABITAR NA COMUNHÃO DOS SANTOS - Pe. Manuel João - MC

 VIVER E HABITAR NA COMUNHÃO DOS SANTOS 

Reflexão sobre a Solenidade de Todos os Santos e a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos 

1. No início de novembro, terminadas as colheitas, no hemisfério norte, quando a natureza começa a repousar e as árvores ganham tons de outono; quando os serenos e um pouco melancólicos pores do sol convidam a olhar ao longe... a tradição cristã dedica um momento especial de comunhão com aqueles que nos precederam na peregrinação da vida. Este período começa a 1 de novembro com a celebração da solenidade de Todos os Santos. A festa foi instituída pelo Papa Gregório IV em 835, mas suas raízes remontam ao século IV, com a comemoração coletiva dos mártires cristãos. Nesta festa, que une a terra e o céu, regozijamo- nos com aquela “grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” contemplada por São João no Apocalipse (7,9). 

2. No dia seguinte a Todos os Santos, 2 de novembro, celebramos a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, uma tradição nascida no meio monástico no século X. Foi o abade beneditino Santo Odilon de Cluny que a introduziu em 998, a seguir à festa de Todos os Santos. Esta celebração espalhou-se gradualmente até se estender a toda a Igreja Católica no século XIII. A memória dos fiéis defuntos é, ainda hoje, uma das ocasiões mais sentidas, caracterizada pela oração – em especial a celebração eucarística –, pela visita ao cemitério, pela decoração das sepulturas com flores e pelo acendimento de velas. A atenção aos familiares e amigos falecidos continua durante todo o mês de novembro. 

3. Neste contexto, parece oportuno referir a festa de Halloween, celebrada a 31 de outubro e ligada a Todos os Santos e à memória dos Fiéis Defuntos, criando uma espécie de “tríduo”. Halloween é a contração do inglês “All Hallows’ Eve”, ou seja, “véspera de Todos os Santos” ou noite de Todos os Santos. Esta comemoração, nascida no ambiente cristão ocidental, transformou- se ao longo dos séculos numa celebração laica, frequentemente influenciada por costumes pagãos e com traços macabros, às vezes inquietantes, associados ao esoterismo e ao satanismo. Propagada na América pelos colonos irlandeses e escoceses, espalhou-se para muitas outras culturas entre o final do século XX e o início do século XXI, transformando-se numa festa carnavalesca. Apresentada muitas vezes como uma festa para crianças, é na verdade uma forma de neocolonialismo cultural com fins comerciais, que corre o risco de esvaziar o sentido das festas cristãs e de banalizar a realidade da morte, que se tornou um tabu na nossa sociedade. 

4. A comunhão dos Santos é uma das realidades mais belas da nossa fé. A festa de Todos os Santos abre-nos as portas do Paraíso para contemplar a alegria e felicidade de todos os nossos irmãos e irmãs – de todos os tempos e espaços, religiões e crenças, línguas, raças, povos e nações – que gozam da glória celestial. Não se trata apenas dos “santos ao nosso lado” ou dos cristãos que chegaram à pátria celestial, mas de todos os membros do Reino de Deus, santificados pelo sangue do Cordeiro (Ap 7,14). 

5. A “comunhão dos santos” não é uma idea abstrata, mas uma realidade muito concreta. Os santos, habitantes do Paraíso, não vivem “em descanso eterno” ignorando os nossos sofrimentos e lutas diárias contra o mal. No Céu não há ócio, mas atividade. Se o Pai “está sempre a trabalhar” (Jo 5,17), como poderiam os seus filhos permanecer inativos, indiferentes ao nosso sofrimento? Viver e habitar na comunhão dos santos significa tomar consciência desta maravilhosa solidariedade, abrir-nos a ela e participar na ação do Céu sobre a terra. 

6. A comunhão não estaria completa sem pensar nos nossos irmãos e irmãs falecidos que ainda não atingiram a visão beatífica, meta e supremo anseio do coração humano. Este é o 

significado da Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, que se segue a Todos os Santos. A Igreja peregrina na terra lembra-os com carinho, reza por eles com confiança e participa da sua purificação com a sua intercessão. Sempre que celebramos a Eucaristia, recordamo-los na oração eucarística: “Lembra-te também dos nossos irmãos e irmãs que adormeceram na esperança da ressurreição e, na tua misericórdia, de todos os defuntos: admiti-os à luz da tua face” (Oração Eucarística n. 2). 

7. Nesta ocasião, somos incentivados a lembrar com maior frequência e com solicitude fraterna todos os fiéis defuntos, especialmente os nossos familiares e amigos com quem mantemos uma relação de afeto e gratidão. É uma oportunidade para fortalecer o nosso laço de comunhão com eles, pois a morte não quebra os laços de amor, mas os purifica e fortalece. Mesmo que a memória de algumas pessoas possa ser dolorosa pelas dores e injustiças sofridas, este período pode representar um tempo de graça para nos reconciliarmos com elas, curar as nossas feridas e sanar as nossas recordações. À luz do Amor, eles próprios estão agora bem conscientes do mal cometido e, arrependidos, imploram o nosso perdão e rezam por nós. 

8. As celebrações de 1 e 2 de novembro, prolongadas por todo o mês pela memória dos nossos queridos defuntos, são uma proclamação da nossa fé pascal. A graça destas celebrações permite-nos professar com maior consciência: “Creio na comunhão dos santos, no perdão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna”. Além disso, a imersão na Vida de Cristo Ressuscitado, primícias dos vivos, exorciza o nosso medo da morte. A esperança cristã conduz-nos a um processo de transfiguração da morte, até que, como São Francisco, possamos considerá-la “irmã morte”. 

9. A contemplação dos santos e a experiência de comunhão com os falecidos leva-nos a comparar a nossa vida com a vida futura e definitiva. A beleza da comunhão dos santos, se realmente vivida, leva-nos a mudar os nossos parâmetros de vida: o cristão que olha para o Céu não permite que sejam os critérios mundanos a guiar a sua existência. Se o nosso olhar é iluminado pela Luz, comprometemo-nos a colaborar para a realização do Reino de Deus na terra, promovendo a paz, a justiça e a fraternidade universal. 

10. Em relação ao Purgatório, é necessário purificar esta doutrina das visões acumuladas pelo imaginário cristão ao longo dos séculos. Após a morte, encontramos-nos fora do tempo e do espaço, e não é possível “imaginar” o Purgatório, mas apenas pensá-lo. O Catecismo da Igreja Católica trata este tema de forma sóbria, mas essencial (nn. 1030-1032), falando de “purificação final ou purgatório”. São Paulo, em 1 Coríntios 3,10-17, diz que “o fogo provará a qualidade da obra de cada um” e que alguns serão salvos “quase passando pelo fogo”! Tudo em Deus, no entanto, é graça. Até o Purgatório! É o suplemento de misericórdia para nos tornar “puro amor”. Podemos pensar que o “fogo purificador” seja o fogo do Espírito, que continua em nós a sua obra de santificação e, ao mesmo tempo, seja também o fogo da paixão da nossa alma, que anseia pela visão beatífica e sofre ao sentir-se ainda “distante”. Porque “forte como a morte é o amor, tenaz como o reino dos mortos é a paixão: as suas chamas são chamas de fogo, uma chama divina!” (Cântico dos Cânticos 8,6). 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj 

 

 

 

terça-feira, 29 de outubro de 2024

27 outubro O Homem: questão para si mesmo. 12. Donde vem o “eu” - Padre e Professor de Filosofia na U.C., Anselmo Borges

 27 outubro 2024 às 00:00

Leitura: 5 min
O Homem: questão para si mesmo.

12. Donde vem o “eu”

É soberanamente estranho e enigmático o significado de dizer “eu”. Só cada um, cada uma, o
pode dizer de si mesmo, de si mesma, com sentido único e irrepetível. Ninguém pode dizer
“eu” na vez de outro. Precisamente por isso, ninguém sabe o que é exactamente ser outro,
outro eu, ninguém pode viver-se plenamente a partir de dentro de outro, ninguém pode
conceber o mundo visto pelo outro, por outro eu. O outro - outro eu, mas sobretudo e sempre
um eu outro - é irredutível.

É absolutamente fascinante perguntar-se a si próprio: como será o mundo a partir dali, daquele
olhar, daquele olhar do outro - olhar não apenas externo, mas interior? Como é que ele, ela,
me vê? O que se passará nele, nela, dentro dele, dela, quando me vê, quando me observa,
quando pensa em mim, quando diz que me ama? Se nos fosse possível ir lá dentro!... O que é
que aconteceu para que o bebé, que começa por parecer um “embrulhinho” (perdoe-se a
expressão terna), inicie um processo de dizer-se, que vai do neutro - o menino, a menina, o
Kico, a Rita... - até ao soberano eu, donde tudo parece partir para tudo dominar?

Mas não é apenas o eu do outro que é enigmático. O meu próprio eu é enigma para mim.
Quando tentamos ver-nos a nós próprios à distância, em miúdos, quando andávamos na
escola, por exemplo, ao dar connosco, sabemos que somos nós, mas ao mesmo tempo vemo-
nos de fora: somos os mesmos, mas de outro modo.

Até no presente, por mais que objective de mim, há sempre um reduto último - parte da
subjectividade - que resiste à objectivação, não havendo nunca coincidência entre o eu
objectivo e o eu subjectivo. Vejo-me, sem ver-me adequadamente, de tal maneira que, na
medida em que procuro mergulhar até à ultimidade de mim, é como se desaparecesse no
nada.

Também por isso, David Hume negou a existência do eu: quando me vejo por dentro, o que
encontro é apenas uma série de vivências, mas nunca o eu, que não passa precisamente de um
feixe de vivências. Não perguntava Pascal em que parte do corpo é que se encontraria o eu?
Aliás, já certas correntes do budismo se tinham referido ao eu como ilusão, e o exemplo que se
dá é o de uma cebola a que se vai tirando as camadas sucessivas, sem que reste um núcleo
duro: da desconstrução da unidade pessoal não permanece um sujeito.

Mas a interpretação também pode seguir outro caminho. Descendo até ao abismo de mim,
aquele aparente nada com que deparo é o véu de mim enquanto inobjectivável, isto é,
enquanto pessoa e não coisa. Precisamente aí - no eu irredutível - posso encontrar-me com o
mistério do Deus criador.

É com esse milagre do eu enquanto pessoa, fim e não meio para nada, nem para ninguém, que
se defrontam, por exemplo, os pais, no encontro com o filho, como escreveu o filósofo Julián
Marías: “A realidade psicofísica do filho - corpo, funções biológicas, psiquismo, carácter, etc. -
‘deriva’ da dos pais, e neste sentido é ‘redutível’ a ela. Mas o filho que é e diz ‘eu’ é
absolutamente irredutível ao eu do pai, bem como ao da mãe, igualmente irredutíveis, é claro,
entre si. Não tem o menor sentido controlável dizer que ‘vem’ deles, pois eu não posso vir de
outro eu, já que este é um ‘tu’ irredutível.

Neste sentido, a criação pessoal é evidente. Isto é, o aparecimento da pessoa - de uma pessoa -
, enquanto tal, é o modelo daquilo que realmente entendemos por criação: a iluminação de
uma realidade nova e intrinsecamente irredutível”