domingo, 6 de abril de 2025

O ENVIADO, FREI GUALTER - MISSÃO EM GUIMARÃES - Alfredo Monteiro (AAAFranciscanos)

 Quando em Junho de 2017 a Família Franciscana Portuguesa iniciou as comemorações dos Oitocentos Anos da presença da Ordem dos Frades Menores(OFM) em Portugal fui convidado a apresentar uma comunicação sobre Frei Gualter e as Festas Gualterianas de Guimarães. E assim aconteceu nas jornadas realizadas, mais tarde, na Universidade Católica do Porto. Proponho-me, agora, retomar o mesmo tema, mas, naturalmente, com a elaboração de um texto mais curto. Como antigo aluno da Escola Franciscana procuro acompanhar os frades Menores de todo o mundo que, neste ano de 2025, comemoram o “Oitavo Centenário do Cântico das Criaturas”, o mais belo poema sobre a Criação, escrito por Francisco de Assis, amigo da Natureza e Irmão de todas as criaturas. E, também,  porque me inspirei na leitura do livro “Santos e Amigos de Deus”, da OFM em Portugal, de Frei Henrique Rema, padre franciscano, académico brilhante da Academia Portuguesa de História, autor de numerosa bibliografia sobre o franciscanismo em Portugal e nas Missões.

Francisco de Assis, na peregrinação a Santiago de Compostela, terá passado pela vila de Guimarães e no contacto com os seus habitantes prometeu-lhes enviar alguns dos seus frades. Cumpriu a promessa, por 1216, enviando para Portugal Frei Zacarias e Frei Gualter. “….Filhos, eu vos tenho destinados para pregardes no Reino de Portugal. Mas sejam as vossas palavras acompanhadas de obras, porque o exemplo monta mais que a doutrina”. Vindos de Itália, separam-se dos seus companheiros de viagem e resistem ao calor abrasador de Agosto das terras de Castela e da Estremadura. Aqui chegados, Frei Zacarias rumou a Alenquer e Frei Gualter a Guimarães.

Antes da partida, Francisco advertiu Frei Gualter que construísse um pequeno convento na vila medieval de Guimarães, como prometera ao seu povo. E assim aconteceu. Enquanto construíam o modesto eremitério da Fonte Santa no monte de Santa Catarina, diríamos, hoje, no sopé da encosta da Penha, os frades alojaram-se no hospital. Dedicavam-se, no seu dia a dia, à pregação pelas ruas da vila, cuidando dos doentes hospitalizados e ajudando os lavradores nas lides do campo. Frei Gualter,  “…Com tanto espírito falava, que os seus ouvintes pediam perdão a Deus e se desfaziam em lágrimas”. A pedido dos fiéis, porque queriam os frades mais próximos, mudaram-se para São Francisco-O-Velho. A maneira austera e contemplativa como viviam atraiu numerosos discípulos à vida religiosa e franciscana.

Após a morte de Frei Gualter, pelo ano de 1259, já os frades menores povoavam várias terras de Portugal: Guimarães, Bragança, Alenquer, Porto e Lisboa. Se em vida era venerado pelos fiéis, a devoção pelo frade cresceu ainda mais. Quando, por 1271, os restos mortais foram trasladados da terra nua para sepulcro de pedra, dentro do Convento, mais aumentou a fama de taumaturgo com os sucessos milagrosos operados por intercessão deste servo de Deus. Posteriormente, em Agosto de 1577, foram novamente trasladados para um sepulcro mais sumptuoso e os prodígios multiplicaram-se! Nesse ano, São Gualter foi declarado padroeiro de Guimarães. A festa, uma das maiores romarias do Norte, celebra-se a 2 de Agosto com imensa participação popular.

O Rei D. Filipe III, por diploma de 20 de Janeiro de 1622, concede que Guimarães celebre, com a maior solenidade, a procissão do Santo. E o Papa Gregório XIII, pela Bula de 17 de Dezembro de 1577, aprovou o seu culto, ampliado pelo Breve de Gregório XV, de 15 de Abril de 1621. E pelo povo foi “canonizado”.

Alfredo Monteiro (AAAFranciscanos)

PRIMEIRA CRÓNICA DE ABRIL Frei Bento Domingues, O.P. 06 Abril 2025

 

PRIMEIRA CRÓNICA DE ABRIL

Frei Bento Domingues, O.P.

06 Abril 2025

 

1. A 25 de Abril de 1974, a chamada revolução dos cravos pôs fim ao regime de Salazar/Marcello Caetano. Este acontecimento continua a provocar abundantes estudos de diversa orientação e com vários significados para o Estado, para a Igreja e para a sociedade.

A Agência Ecclesia e o Centro de Estudos e História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa publicaram uma obra no contexto das celebrações dos 50 anos do 25 de Abril[1]. Como se diz na Introdução, «no seguimento de projectos editoriais anteriores, esta parceria tem o propósito de aproximar a investigação científica de formatos de apresentação e difusão de conteúdos essenciais da História de Portugal».

É uma bela realização que não fica apenas nas relações entre o Estado e a Igreja Católica. Estuda algumas permanências, rupturas e recomposições acerca da guerra, da descolonização, da democracia e do desenvolvimento.

«A comemoração dos 50 anos do 25 de Abril confirma, de forma incontestável, que o presente reflecte sempre o passado, no caso um passado recente, mesmo que não se descubram os ângulos que o projectam».

Como escreveu o poeta David Mourão-Ferreira (1927-1996), Chega-se a este ponto Arrepiar caminho / Soletrar no passado a imagem do futuro / Abrir uma janela Acender o cachimbo / para deixar no mundo uma herança de fumo[2].

No passado Domingo, o Papa Francisco regressou ao Vaticano, mas ainda em convalescença. Já mostrou que não vive alheado do que acontece na Igreja e no mundo. A Igreja não parece que vá desaparecer nem sequer no original estilo de Bergoglio. Segundo o Anuário Pontifício 2024, do ponto de vista global, aumentaram os católicos batizados, os bispos nos continentes asiático e africano e os diáconos permanentes na África, Ásia e Oceania. Diminuíram as chamadas vocações sacerdotais – os padres –, e os religiosos e as religiosas[3].

2. De há uns anos a esta parte, temos uma pluralidade de diferentes manifestações religiosas e, por isso, se fala do diálogo inter-religioso. Por outro lado, esta pluralidade religiosa é também uma pluralidade cultural e política.

Um grupo de jornalistas católicos criaram o 7MARGENS. Apresentam esta iniciativa da seguinte maneira: «é um jornal digital orientado por critérios jornalísticos profissionais e independente de qualquer instituição, religiosa ou outra. Divulga informação sobre o fenómeno religioso, no sentido mais amplo do termo, não se confinando à actualidade das diversas confissões e crenças estabelecidas. Procura dar conta das diferentes formas de busca espiritual que marcam o nosso tempo, desvendando as questões, interrogações e percursos que alimentam essa indagação. Tem consciência de que a informação sobre o fenómeno religioso assim entendido constitui um importante instrumento a favor da paz, da justiça social, do conhecimento mútuo, da tolerância e da cooperação entre os mais diversos actores das nossas sociedades»[4].

Eduardo Lourenço, um grande pensador da filosofia, da religião, da literatura e da música, afirmou numa entrevista que o religioso é constitutivo da natureza humana, da nossa essência como seres livres. Impede-nos de ser limitados por qualquer obstáculo. Mas a cultura ocidental fez da conquista da liberdade a possibilidade de intervir, de dominar o nosso próprio projecto, uma finalidade, laica, da História humana. Na verdade, a forma mais radical de liberdade é da ordem do poético, do religioso. Permite que a Humanidade inscreva a sua pulsão mais radical numa esfera que não é a do demonstrável. Submetemo-nos a uma espécie de loucura divina, para nos salvarmos da loucura autêntica que é a noção de que a nossa essência é a morte. Penso que é um pouco assim[5].

Por sua vez, Wittgenstein perguntava: Que sei eu sobre Deus e o sentido da vida? Sei que este mundo existe. Que estou nele como o meu olho no seu campo visual. Que algo nele é problemático, a que chamamos o seu sentido. Que este sentido não reside nele, mas fora dele. (…) Ao sentido da vida, i.é, ao sentido do mundo, podemos chamar Deus. E associar-lhe a metáfora de Deus como um pai. A oração é o pensamento do sentido da vida. (…) Crer em Deus significa compreender a pergunta pelo sentido da vida. (…) Crer em Deus significa ver que a vida tem um sentido[6].

3. Um dos povos que se considerava religiosamente privilegiado era Israel, o povo de Deus. Um célebre judeu – Jesus de Nazaré – mostrou que conhecia muito bem a Bíblia, mas não estava sempre de acordo com as práticas que se diziam inspiradas nessa Biblioteca sagrada. Uma das suas tarefas mais constantes era a destruição da interpretação que deixava, quase sempre, a mulher mal vista. Neste Domingo, lê-se uma das passagens mais espantosas a este respeito. Vale a pena ler o texto.

«Jesus foi para o Monte das Oliveiras. Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo e todo o povo se aproximou dele. Então, sentou-se e começou a ensinar. Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus uma mulher surpreendida em adultério, colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres. Tu que dizes? Falavam assim para lhe armarem uma cilada e terem pretexto para o acusar. Mas Jesus inclinou-se e começou a escrever com o dedo no chão. Como persistiam em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Inclinou-se novamente e continuou a escrever no chão. Eles, porém, quando ouviram tais palavras, foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos. Ficou só Jesus e a mulher que estava no meio. Jesus ergueu-se e disse-lhe: Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou? Ela respondeu: Ninguém, Senhor. Disse então Jesus: Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar»[7].

Este texto é uma construção prodigiosa. São os adúlteros que vão denunciar uma mulher apanhada em flagrante adultério, como se ela tivesse sido apanhada a cometer adultério sozinha. Quando a acusam, Jesus tem uma reacção espantosa. Devolve a acusação a todos os homens ali presentes: Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Jesus continua a fazer-se distraído até que todos foram abandonando a acusação, a começar pelos mais velhos. Ao ficar sozinho com a mulher, perguntou-lhe se algum a tinha condenado. Nenhum. Jesus limita-se a dizer: também eu não te condeno, mas não voltes a estragar a tua vida.

Nesta passagem, não seguiu a Bíblia! Se a tivesse seguido, participava na opressão das mulheres que ele veio libertar.

 

 

 

 



[1] Cf. 25 de Abril. Permanências, ruturas e recomposições. Edição CEP, 2024

[2] Do Poema Equinócio

[5] Cf. Revista LER, nº 138. Verão de 2015. Terceira Série, p. 38

[6] Tagebücher 1914-1916, Werkausgabe, Vol. I, Suhrkampf, Francoforte, 1984, pp. 167-8

[7] Jo 8, 1-11

Miséria e Misericórdia - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 

Miséria e Misericórdia

Ano C – Quaresma – 5.º Domingo
João 8,1-11: «Vai e não tornes a pecar»

No nosso itinerário quaresmal, os domingos anteriores colocaram no centro o anúncio da misericórdia de Deus e o convite à conversão. Hoje, este caminho atinge o seu auge com o Evangelho da mulher surpreendida em flagrante adultério.

Este texto (João 8,1-11) teve uma história conturbada: ausente nos manuscritos mais antigos, ignorada pelos Padres latinos até ao século IV e nunca comentada pelos Padres gregos do primeiro milénio. É como uma página arrancada do seu contexto original e depois inserida aqui no Evangelho segundo São João. No entanto, muitos estudiosos acreditam que pode pertencer a São Lucas, o evangelista da misericórdia.
Esta passagem era incómoda, pois chocava com a prática penitencial rigorosa dos primeiros séculos, segundo a qual os pecados mais graves – homicídio, adultério e apostasia – só podiam ser perdoados uma vez na vida. No fundo, ainda hoje custa-nos ultrapassar a lógica da justiça para abraçar plenamente a mentalidade da misericórdia.

E tu, o que pensas?

A cena decorre numa manhã no Templo, onde Jesus ensinava o povo. Os escribas e fariseus trazem-lhe uma mulher apanhada em adultério, colocam-na no meio e dizem-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. Ora, Moisés, na Lei, mandou-nos lapidar tais mulheres. E tu, que dizes?»

O evangelista acrescenta que disseram isto para o pôr à prova. A mulher é apenas um pretexto: o verdadeiro acusado é Jesus e a sua misericórdia. Querem ver como Ele se sai desta situação. De facto, se Ele se desviasse da aplicação da Lei, poderiam acusá-lo diante do Sinédrio; se, pelo contrário, se pronunciasse a favor da condenação, alienar-se-ia do povo, que o considerava um mestre bom e compassivo.

A prática de condenar à morte os adúlteros era comum no antigo Médio Oriente – uma prática bárbara que, infelizmente, ainda subsiste hoje nalguns países islâmicos. Encontramo-la também no livro do Levítico 20,10: «Se um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o adúltero e a adúltera serão punidos com a morte» (cf. Dt 22,22). Era um dissuasor do adultério, mas na prática não era rigidamente aplicada no tempo de Jesus. Reparemos, porém, que aqui só está presente a mulher adúltera. E o adúltero, onde está? A lei, portanto, não é aplicada com imparcialidade.

Jesus, em vez de responder, inclina-se e começa a escrever com o dedo no chão, em silêncio. O que escreve Ele? Os pecados dos acusadores, como afirma São Jerónimo? Quantas conjeturas se fizeram a este respeito! A explicação, provavelmente, é bem mais simples: rabiscar no chão pode ter sido uma forma de ganhar tempo, refletir, preparar uma resposta ou até mesmo digerir a irritação causada pela pergunta.

Encontramos apenas três vezes na Escritura a expressão «escrever com o dedo». A primeira é em Êxodo 31,18: o dedo de Deus que escreve a Lei nas tábuas de pedra; a segunda no trecho paralelo em Deuteronómio 9,10; a terceira no livro do profeta Daniel, capítulo 5, quando um dedo de uma mão escreve três palavras na parede da sala do banquete, onde o rei Baltasar estava a profanar os vasos sagrados roubados do Templo de Jerusalém.

O que escreve Jesus? A nova lei do amor e da misericórdia, escrita no pó de que somos feitos, na fragilidade da nossa carne, na nossa vida marcada pela infidelidade e pelo pecado. É a nova lei que Deus prometeu escrever no coração daquele que acredita (Jeremias 31,31-34).

Quem de entre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra!

Jesus mantinha-se em silêncio. Mas, como insistiam em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de entre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra contra ela». Depois, inclinando-se novamente, escrevia no chão.

Jesus não nega a Lei, mas convida a aplicá-la antes de mais a si mesmo. Todos ficam à espera que alguém, «sem pecado», atire a primeira pedra. Mas em vão. Então, um por um, começam a retirar-se. Tinham chegado juntos, confiantes; partem confusos, um a um, começando pelos mais velhos. No chão, ficam as pedras. E com elas, também as máscaras de quem se apresentava como juiz e justo.

Os acusadores da mulher são forçados a olhar para dentro de si, a confrontar-se também com a Lei de Moisés. E acabam por se encontrar no lugar da mulher. Se olharmos verdadeiramente para dentro de nós, deixamos de conseguir condenar alguém. Muitas vezes, inconscientemente, não conseguindo vencer o mal que habita em nós, tentamos combatê-lo fora – nos outros – e assim acabamos por nos sentirmos em paz. Aqui entra a lógica do rebanho: basta que alguém atire a primeira pedra, e todos os outros seguem. Assim, ninguém assume a responsabilidade pelas pedras lançadas. Se não combatemos o mal dentro de nós, ele será sempre «o outro», o inimigo a eliminar.

Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?

Todos se foram embora. Vencidos ou convencidos, não se sabe. E a mulher ficou ali, sozinha, no meio. De um lado, a miséria; do outro, a misericórdia, comenta Santo Agostinho. Então Jesus ergue-se novamente, dirige o olhar para ela e pergunta: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.»

Jesus ergue-se para olhar a mulher. Segundo o sentido literal do verbo grego, Jesus «se endireita», não «se levanta de pé». Ele permanece sentado, em baixo: não nos olha de cima, mas de baixo, pois veio ocupar o último lugar. 
Nesse momento, os dois olhares cruzam-se: o olhar envergonhado, temeroso e triste da mulher, e o olhar puro, doce e compassivo de Jesus. É um olhar diferente, único, que a mulher nunca antes tinha conhecido.
«O que salva é o olhar», diz Simone Weil. O cristão é chamado a reflectir-se neste olhar, todas as manhãs, para tomar consciência de quanto é amado e para purificar o seu olhar sobre os outros e sobre a realidade.

Jesus chama-lhe «Mulher», como chama também a sua Mãe, segundo o Evangelho de João. Assim, restitui-lhe a sua dignidade. E ela chama-lhe «Senhor» – o Senhor que lhe salvou a vida.
Esta mulher representa todos nós, «adúlteros», infiéis ao Esposo. Também nós fazemos parte da «geração adúltera e pecadora» (Marcos 8,38).

Vai e não tornes a pecar!

Então Jesus disse: «Nem Eu te condeno!» Porque «Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele» (João 3,17).
«Vai e não tornes a pecar!» Estás livre do teu passado. A vida foi-te novamente confiada. Tens uma nova oportunidade. Podes recomeçar uma nova vida!

Esta mesma palavra é-nos dirigida a nós nesta Quaresma. Tantas vezes a nossa vida está amarrada ao passado: aos nossos fracassos, ao arrependimento pelas oportunidades perdidas, aos nossos pecados... Mas o Senhor diz-nos: «Não vos lembreis mais das coisas passadas, não penseis nas coisas antigas! Eis que realizo uma coisa nova: já está a germinar, não a vedes?» (Isaías 43,16-21 – Primeira Leitura).
Façamos então como São Paulo: «Esquecendo o que ficou para trás e avançando para o que está à frente, corro para a meta» (Filipenses 3,8-14 – Segunda Leitura).

Pe. Manuel João Pereira Correia, MCCJ



P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
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domingo, 23 de março de 2025

PEREGRINOS DA ESPERANÇA Frei Bento Domingues, O.P. 23 Março 2025

 

PEREGRINOS DA ESPERANÇA

Frei Bento Domingues, O.P.

23 Março 2025

 

1. No passado dia 13 de Março, o Papa Francisco fez 12 anos de um Pontificado verdadeiramente original. Os católicos, e não só, puderam celebrar esta data numa fase em que foram anunciadas melhorias na sua saúde, embora precárias. Em todo o mundo, foi acompanhado pela oração insistente.

Verificou-se, por outro lado, que antes de ser internado, não só já tinha inaugurado o Ano Jubilar, em Roma, como tinha sido intensificado em todas as dioceses católicas do mundo, de modo verdadeiramente inculturado. As expressões serão necessariamente diferentes, mas todas unidas como o exprime o Logotipo, para indicar a solidariedade e a fraternidade que deve unir todos os povos.

Ao celebrar o Ano Jubilar, confessamos que precisamos de mudar, precisamos de nos converter. Não podemos continuar agarrados às nossas rotinas sociais, económicas e religiosas. Os clássicos gestos que propõe – jejum, esmola e oração – só são verdadeiros se nos fizerem olhar para aqueles que não têm como sustentar a vida. A oração autêntica dá a capacidade de ver, interpretar e agir com misericórdia em tudo o que se passa no mundo. É uma forma de socorro.

O que o profeta Isaías ouviu da parte de Deus reza assim: O jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente, livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os oprimidos, romper com toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não desprezar o teu irmão. Então, a tua luz surgirá como a aurora e as tuas feridas não tardarão a cicatrizar-se. A tua justiça irá à tua frente e a glória do Senhor seguir-te-á[1].

Este foi o apelo que suscitou o Jubileu do Antigo Testamento até aos nossos dias.

A oração é a alma de todo este movimento de peregrinos, mas também ela precisa de ser evangelizada. S. Mateus luta contra a hipocrisia que se infiltra nos próprios actos religiosos: Nas vossas orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos. Não façais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho pedirdes[2].

S. Lucas, como bom narrador, construiu uma longa parábola sobre a insistência no pedido, que não posso reproduzir aqui na íntegra. Parece contrariar S. Mateus, mas de facto não, pois termina assim: se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem![3].

A oração não é uma técnica para informar e convencer a Deus, mas para nós acreditarmos que Deus está sempre connosco, somos nós que nos temos de abrir a esse amor.

S. Paulo já tinha escrito que é de acordo com Deus que o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois nem sequer sabemos o que havemos de pedir, mas é Ele que intercede por nós. Esse mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus e podemos dizer, com toda a ternura, Abbá (papá)[4].

Na Bula de proclamação deste Ano Jubilar, o Papa retoma S. Paulo: A esperança não engana[5], ajuda-nos a resistir à loucura bélica dos nossos dias. É ela que faz de nós peregrinos da esperança. Se Deus é por nós quem será contra nós? Ao dizer isto, estamos em pleno mistério: o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, o coração humano não pressentiu, foi isso que Deus preparou para aqueles que o amam, por meio do Espírito, pois o Espírito tudo penetra, até as profundidades de Deus[6].

2. O Papa Francisco, apesar das dificuldades de saúde, convocou uma Assembleia eclesial de toda a Igreja Católica no Vaticano, a realizar em Outubro de 2028, para avaliar o estado da concretização da sinodalidade nas igrejas locais e em todas as comunidades religiosas.

Quando se pergunta se a Igreja ainda tem futuro, devemos reler a decisão pontifícia que já foi comunicada a todos os bispos e presidentes de conferências episcopais nacionais e internacionais, num comunicado assinado pelo cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo dos Bispos.

Esta decisão significa que, pela primeira vez na história, será realizada uma Assembleia deste género, congregando representantes de todo o mundo, e de todos os sectores eclesiais do catolicismo – clero, consagrados/as e leigos/as.

O comunicado da Secretaria Geral do Sínodo informa que, por ora, não há a intenção de convocar um novo sínodo dos bispos, optando-se, em vez disso, por um pormenorizado processo de consolidação do caminho já percorrido, em torno da construção de uma Igreja sinodal.

A mobilização de toda a Igreja inicia-se com a presente convocatória e desenvolve-se através das seguintes etapas: em Maio 2025 será publicado o Documento de apoio, com orientações para esta fase de implementação; de Junho 2025 até Dezembro 2026 serão apresentados os percursos de implementação nas Igrejas locais e nos seus agrupamentos; de 24 a 26 de Outubro 2025, acontecerá o Jubileu das equipas sinodais e dos órgãos de participação; no primeiro semestre de 2027 realizar-se-ão assembleias de avaliação nas dioceses e eparquias (equivalente das dioceses nas Igrejas orientais); no segundo semestre 2027, serão as Assembleias de avaliação nas conferências episcopais nacionais e internacionais, nas estruturas hierárquicas orientais e em outros agrupamentos de Igrejas; no primeiro semestre 2028, realizar-se-ão as assembleias continentais de avaliação; em Junho 2028, será publicado o Instrumentum laboris para o trabalho da Assembleia Eclesial de Outubro de 2028, no Vaticano.

Alegra-me saber que o Sínodo não foi abandonado ou amortecido. Continua a ser a grande tarefa da Igreja, seja qual for o Bispo de Roma.

3. Segundo o documento apresentado, o caminho a percorrer até à Assembleia Eclesial de 2028 permitirá o intercâmbio de experiências e percursos entre as diferentes Igrejas e a avaliação conjunta das escolhas feitas ao nível local, reconhecendo os progressos realizados em termos de sinodalidade.

O objetivo é tornar concreta a perspectiva do intercâmbio de dons entre as Igrejas e em toda a Igreja. Ao longo do caminho, todos poderão beneficiar da riqueza e da criatividade dos percursos realizados pelas Igrejas locais, colhendo os frutos nos seus agrupamentos territoriais.

Esse percurso será também uma oportunidade para avaliar, conjuntamente, as escolhas feitas a nível local e reconhecer os progressos realizados em termos de sinodalidade. Graças a tal percurso, o Papa poderá escutar e confirmar as orientações consideradas válidas para toda a Igreja em diálogo.

Por fim, esse processo constitui o quadro no qual se situam as diversas iniciativas para a realização das orientações sinodais, em particular os resultados do trabalho dos Grupos de Estudo, que deverão ser apresentados daqui a três meses[7].

A Igreja nunca se pode dar por terminada. Como peregrina da esperança, exige uma incansável imaginação.

 



[1] Is 58, 6-8; cf. Is 1, 16-20

[2] Cf. Mt 6, 5-15

[3] Cf. Lc 11, 5-15

[4] Cf. Rom 8, 26-30

[5] Rm 5, 5

[6] Cf. 1Cor 2, 6-10

[7] Cf. https:/www.vatian.va

sábado, 22 de março de 2025

Cuidado! Cuidar Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia - 22 Março

 Cuidado! Cuidar

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Entre as grandes obras

filosóficas do século XX, figura uma

do filósofo alemão Martin

Heidegger: Sein und Zeit (Ser e

Tempo). Nela, retoma a célebre

fábula sobre o Cuidado, de Higino,

um escravo culto (64 a. C.-16 d.

C.). Fica aí, traduzida literalmente.

“Uma vez, ao atravessar um rio,

‘Cuidado’ viu terra argilosa.

Pensativo, tomou um pedaço de

barro e começou a moldá-lo.

2

Enquanto contemplava o que tinha

feito, apareceu Júpiter. ‘Cuidado’

pediu-lhe que insuflasse espírito

naquela figura, o que Júpiter fez de

bom grado. Mas, quando ‘Cuidado’

quis dar o próprio nome à criatura

que havia formado, Júpiter proibiu-

lho, exigindo que lhe fosse dado o

seu. Enquanto ‘Cuidado’ e Júpiter

discutiam, surgiu também a Terra

(Tellus) e também ela quis conferir

o seu nome à criatura, pois fora ela

a dar-lhe um pedaço do seu corpo.

Os contendentes invocaram

Saturno como juiz. Este tomou a

seguinte decisão, que pareceu

justa: ‘Tu, Júpiter, deste-lhe o

espírito; por isso, receberás de

volta o seu espírito por ocasião da

sua morte. Tu, Terra, deste-lhe o

corpo; por isso, receberás de volta

o seu corpo. Mas, como foi

3

‘Cuidado’ a ter a ideia de moldar a

criatura, ficará ela na sua posse

enquanto viver. E, uma vez que

entre vós há discussão sobre o

nome, chamar-se-á ‘homo’

(Homem), já que foi feita a partir

do húmus (Terra)’.”

Martin Heidegger, um dos

maiores filósofos do século XX,

retoma a fábula e reflecte sobre o

cuidado enquanto estrutura

essencial do ser humano. Cuidar e

ser cuidado são determinantes da

sua constituição. O que seria de

nós, se, ainda dentro do ventre

materno, não houvesse cuidado,

se, ao nascermos e depois do

nascimento, não cuidassem de

nós? O cuidado nunca nos pode

abandonar. Sem o cuidado ao

longo da vida toda, do nascimento

à morte, o ser humano

4

desestrutura-se, sente-se perdido,

só, não encontra sentido e acaba

por morrer, entregue ao abandono.

O cuidado tem uma dupla

vertente. Por um lado, significa

preocupação mais ou menos

ansiosa e a consequente

prevenção. É assim que os pais

dizem aos filhos, ameaçados por

perigos: tem cuidado, filho; tem

cuidado, filha! E prevenimos os

amigos que nos pedem conselho:

eu não iria por aí, tem cuidado,

tenha cuidado, acautele-se! Por

outro lado, e sobretudo, tem a ver

com a entrega abnegada aos

outros, cuidando deles em todas as

dimensões, pois a perfeição do ser

humano na realização das suas

possibilidades mais próprias é

tarefa do cuidado.

Cuidar de quem e de quê?

5

Claro, cuidar de nós, cuidar dos

familiares e amigos, cuidar dos

mais frágeis, cuidar da natureza,

cuidar da espiritualidade, da

transcendência..., de Deus em nós.

Sábado, 22 de Março de 2025

Antes que seja tarde demais! - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

Antes que seja tarde demais!

Ano C – Quaresma – 3º Domingo
Lucas 13,1-9: “Se não vos converterdes, perecereis todos da mesma forma.”

Depois dos dois primeiros domingos da Quaresma, nos quais fazemos memória das tentações de Jesus no deserto e da sua transfiguração no monte, o calendário litúrgico propõe-nos uma temática quaresmal diferente para cada ciclo litúrgico. Neste ano, no ciclo C, em que lemos o Evangelho de Lucas, o tema dominante é a conversão e a misericórdia.

O trecho do Evangelho de hoje pertence a Lucas. A primeira parte contém um forte apelo de Jesus à conversão, tomando como ponto de partida dois episódios de atualidade. A segunda parte é a breve parábola da figueira estéril, que sublinha tanto a urgência da conversão como a paciência misericordiosa de Deus.

Três tipos de morte

"Naquele tempo, vieram algumas pessoas contar a Jesus o caso daqueles galileus, cujo sangue Pilatos misturara com o dos seus sacrifícios." Essas pessoas querem levar Jesus a pronunciar-se sobre o acontecimento: ou politicamente, condenando a repressão sangrenta de Pilatos, ou religiosamente, justificando o ocorrido como consequência da culpa dos galileus. Com efeito, apesar da reflexão contrária do livro de Job, havia a forte convicção de que toda desgraça estava ligada a uma culpa (cf. João 9,1-2). Aliás, essa ligação entre culpa e castigo ainda está presente na mentalidade religiosa de muitos.

"Tomando a palavra, Jesus disse-lhes: 'Julgais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal sorte? Não, digo-vos; mas, se não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo'." E, a este fato trágico, Jesus acrescenta outro, ligado a uma catástrofe: "Ou aquelas dezoito pessoas, sobre as quais caiu a torre de Siloé e as matou, julgais que eram mais culpadas do que todos os habitantes de Jerusalém? Não, digo-vos; mas, se não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo."

À primeira vista, parece que Jesus evita a questão. Mas não é assim. Jesus reage como profeta, levando os seus ouvintes a aprofundarem a interpretação dos acontecimentos. Sem essa releitura da vida, os fatos permanecem mera crónica e não se tornam história de salvação.

Os galileus mortos por Pilatos ou os homens esmagados pela torre poderiam ser qualquer um de nós, diz Jesus. Trata-se de um evento casual. Mas, como profeta, Jesus alerta para uma ameaça bem mais grave que paira sobre todos: "Digo-vos, se não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo." E repete esta afirmação duas vezes!

Portanto, há três tipos de morte: a primeira, causada pela injustiça (os galileus mortos por Pilatos); a segunda, devida a eventos naturais ou à negligência (os dezoito esmagados pela torre); e, finalmente, a terceira, a morte escatológica por falta de conversão, que é sem dúvida a mais temível! As duas primeiras dependem da nossa precariedade; a terceira, da nossa responsabilidade!

Mas o que é a conversão?

Todos temos uma ideia do que é e do que implica a conversão, mas a etimologia da palavra pode ajudar-nos a aprofundá-la.

Em latim, converter-se/conversão (se convertere / conversio) significa mudar de direção, de caminho, de rota. Sublinha a dimensão espacial, a mudança de direção de um corpo: fazer uma inversão de marcha depois de errar o caminho. Se decidi converter-me, pergunto-me: para onde está a ir o meu caminho? Estou a caminhar na direção certa?

Em hebraico, converter-se/conversão (shuv / teshuvá) significa voltar-se, regressar, retornar. É um dos verbos mais usados na Bíblia hebraica (1060 vezes). Converter-se é mudar de rota, sim, mas para voltar para Deus, fonte de vida, de renascimento e de alegria. Converter-se é regressar à casa do Pai e deixar-se abraçar por Ele.

Em grego (metanoein / metánoia), significa mudar de ideia ou mudar a maneira de pensar. Para se converter, é necessário mudar a mentalidade, como afirma São Paulo: "Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa maneira de pensar, para poderdes discernir a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito" (Romanos 12,2).

A conversão toca todas as dimensões da vida e implica a mudança de toda a pessoa: modo de agir (conversio), coração (teshuvá) e mente (metánoia).

A urgência da conversão

Jesus acrescenta a parábola da figueira para sublinhar a urgência da conversão e a paciência misericordiosa de Deus.

"Dizia também esta parábola: 'Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha e foi procurar frutos nela, mas não encontrou nenhum'." A figueira, assim como a vinha, é símbolo do povo de Israel (cf. Oseias 9,10; Jeremias 8,4-13; 24,1-10), mas também da Igreja e de cada um de nós. O que nos torna estéreis? O mal que há dentro de nós!

"Então disse ao vinhateiro: 'Há três anos que venho procurar frutos nesta figueira e não encontro nenhum. Corta-a! Para que há de ocupar inutilmente o terreno?'" Os três anos podem ser uma alusão aos três anos do ministério de Jesus. João tinha anunciado que o Messias viria com o machado na mão: "Toda árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada ao fogo" (Lucas 3,9). No entanto, Jesus adia o julgamento para o fim dos tempos!

"Mas ele respondeu-lhe: 'Senhor, deixa-a ainda este ano; eu cavarei em volta dela e deitarei adubo. Talvez venha a dar fruto no futuro; se não, então cortá-la-ás'." Segundo a legislação do Levítico, os frutos só deveriam ser colhidos a partir do quarto ano (Levítico 19,23-25). Assim, somando os anos, temos 3+3+1, o que perfaz 7 anos: o número perfeito da plenitude da paciência misericordiosa de Deus!

O vinhateiro é Jesus, que intercede por nós e nos "aduba" com o seu sangue e a sua palavra! Também nós somos chamados a ser vinhateiros, não para condenar (cortar), mas para implorar a misericórdia de Deus e "adubar" o mundo com a oração. E, no final, deixar a Deus a última palavra: "Talvez venha a dar fruto no futuro; se não, então cortá-la-ás"… Tu, Senhor, não eu!

Caros amigos, nesta Quaresma, Deus concede-nos ainda um tempo suplementar, o ano da graça que Jesus anunciou na sinagoga de Nazaré (Lucas 4,19). As oportunidades na vida e na graça não se repetem: é preciso aproveitá-las! Antes que seja tarde demais!

P. Manuel João Pereira Correia, mccj



domingo, 16 de março de 2025

Hermenêutica feminista das religiões e seus textos Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

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Crónicas PÁRA E PENSA
Hermenêutica feminista

das religiões e seus textos

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

A religião/religiões só têm sentido se
e na medida em que são factor de
libertação/salvação. Ora, a gente fica
tremendamente impressionado, quando
observa o que de negativo tantas vezes
as religiões e os seus textos dizem sobre
as mulheres.

Que é que isto quer dizer? É essencial
interpretar e não tomar de modo
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nenhum à letra. Aí ficam, pois, alguns
princípios de hermenêutica feminista
das religiões e seus textos.

Pressuposto essencial é,
evidentemente, a compreensão de que
os textos sagrados não são ditados de
Deus, tornando-se, pois, claro que, sem
interpretação, eles se convertem,
inevitavelmente, em textos
fundamentalistas. Os textos sagrados
têm de ser lidos de modo crítico e
situados no seu contexto histórico.

Um livro sagrado, por exemplo, a
Bíblia, tem validade última e
encontra a sua verdade adequada
enquanto todo e na sua dinâmica global.
A argumentação com fragmentos pode
por vezes tornar-se inclusivamente
ridícula. Assim, princípio hermenêutico
essencial e decisivo das religiões e dos
3
seus textos é o do sentido último da
religião, que é a libertação e salvação. O
Sagrado, Deus, referente último do
religioso, apresenta-se como Mistério
plenamente libertador e salvador. É,
pois, à luz desta intenção última que as
religiões e os seus textos têm de ser
lidos, concluindo-se que o têm
autoridade aqueles textos que, de uma
forma ou outra, se apresentam como
opressores e discriminatórios. Então,
não sendo normativos, têm de ser
evitados nas celebrações religiosas.

Portanto, é claro que a hermenêutica
feminista tem de ser uma hermenêutica
da suspeita. Não é de suspeitar que
religiões orientadas por homens e textos
que têm homens como autores
maltratem as mulheres, lhes sejam
pouco favoráveis e as tornem invisíveis,
4
as considerem inferiores e as coloquem
em lugares subordinados?

Ela tem também de ser uma
hermenêutica da memória. Lembra as
vítimas, todas as vítimas. Exige,
portanto, uma leitura da História no seu
reverso, que é a História dos vencidos.
Normalmente, o que aparece, como é
sabido, é a História dos vencedores,
onde, por isso, não cabem as mulheres
nem as vítimas do sistema. Assim, como
escreveu Juan Tamayo, “a memória das
mulheres vítimas do patriarcado é já em
si um acto de reabilitação, de devolução
e reconhecimento da dignidade
negada”. Na reconstrução da História, é
preciso encontrar o papel das mulheres,
activo e criador, mas oculto e silenciado.

A leitura feminista dos textos
sagrados faz-se a partir dos movimentos
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de emancipação da mulher e, portanto,
dentro da luta pelos direitos humanos,
que, sendo indivisíveis, exigem
sociedades que ponham termo a todo o
tipo de discriminação, sem esquecer que
as estruturas discriminatórias da mulher
são múltiplas e multiplicativas, como
bem viu a teóloga E. Schüssler Fiorenza.

A hermenêutica feminista está
particularmente atenta ao
funcionamento sexista da linguagem.
Repare-se, por exemplo, no prurido
auricular de expressões como: a
arcebispa de Setúbal, a cardeal de
Lisboa. Utilizando normalmente o
genérico “homem” e “homens”, nos
textos sagrados, nas celebrações
litúrgicas, na catequese, as mulheres são
inevitavelmente invisibilizadas,
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esquecidas e marginalizadas. Impõe-se,
portanto, estar atento.

Essa hermenêutica é particularmente
crítica com as imagens patriarcais de
Deus. De facto, se Deus é masculino, o
homem-varão acaba por ser divinizado.
Realmente, a maior parte das imagens
usadas nas religiões e nas teologias para
se referirem a Deus são expressão do
domínio patriarcal e acabam por
legitimar religiosamente o poder dos
homens. Entre as mais comuns: Pai, Rei,
Juiz, Senhor, Soberano, Criador do Céu
e da Terra, Omnipotente. Por
conseguinte, a crítica feminista deve
desconstruir estas imagens, porque
estão associadas ao poder dos homens e
geram atitudes de submissão e
dependência, não fomentando uma
relação interpessoal.
A teologia feminista mostra-se
especialmente crítica com a imagem de
Deus “Pai”, por tratar-se de uma
imagem que leva “directamente à
obediência e à submissão, de que a
religião autoritária abusa”. Quer
recuperar imagens que têm a ver com a
vida, a amizade, o amor, a clemência, a
compaixão, a compreensão, a
generosidade, a ternura, a confiança, o
perdão, a solicitude... E o que é que
pode impedir os crentes de se dirigirem
a Deus como Mãe? Deus é Pai/Mãe.
Sábado, 15 de Março de 2025