terça-feira, 22 de julho de 2025

"Andas inquieta e preocupada com muitas coisas!”- P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 "Andas inquieta e preocupada com muitas coisas!”

Ano C – 16.º Domingo do Tempo Comum
Lucas 10,38-42: “Uma mulher, chamada Marta, recebeu-O em sua casa”.

Depois da parábola do bom samaritano, proposta no domingo passado, a liturgia apresenta-nos hoje o episódio da hospitalidade oferecida por duas irmãs, Marta e Maria de Betânia.

O contexto do episódio de Betânia é muito significativo. Por um lado, é precedido pela parábola do “bom samaritano”, que termina com a frase: “Vai e faz tu também o mesmo” (Lucas 10,37). Por outro lado, é imediatamente seguido pelo ensinamento de Jesus sobre o Pai Nosso e sobre a oração (Lucas 11,1-10). Fica claro que Lucas pretende destacar a unidade entre a Ação (“fazer-se próximo” do irmão) e a Escuta da Palavra (“estar próximo” de Deus).

Na primeira leitura, Abraão acolhe Deus, que se manifesta na figura misteriosa de três personagens: “Erguendo os olhos, viu três homens de pé diante dele. Mal os viu, correu da entrada da tenda ao seu encontro e prostrou-se por terra, dizendo: ‘Meu Senhor, se encontrei graça aos teus olhos, não passes adiante sem parar junto do teu servo’” (cf. Génesis 18,1-10).

Podemos afirmar que a hospitalidade constitui o tema central da Palavra deste domingo. A hospitalidade é uma das grandes metáforas da vida. Acolhidos no ventre materno, no seio de uma família e de uma sociedade, somos educados a tornar-nos também nós hospitaleiros/ próximos dos outros e de toda a vida.

A Escritura é uma história de acolhimentos, desde quando fomos acolhidos no paraíso terrestre (Génesis), até sermos acolhidos no Paraíso celeste (Apocalipse 21-22), na nova Jerusalém, cujas portas “nunca se fecharão” (21,25). Aí realizar-se-á a acolhida perfeita e total: “Eis a tenda de Deus com os homens! Ele habitará com eles” (21,3). A meio caminho da história encontramos o Verbo que se fez carne e “veio habitar entre nós” (João 1,14). Rejeitado, não desistiu, mas desde então continua a bater à porta de cada homem (cf. Apocalipse 3,20).

Mas o que significa acolhimento na vida do cristão? É o que São Lucas nos quer transmitir com este episódio que só se encontra no seu Evangelho.

Duas mulheres: um ícone da hospitalidade

Quem são as duas irmãs Marta e Maria? Marta parece ser a mais velha e dona de casa. É uma mulher dinâmica e trabalhadora. Maria, por sua vez, aparece como mais jovem, mais terna e contemplativa.

Segundo Lucas 10,38-42, Marta e Maria acolhem Jesus na sua casa. Não se fala de Lázaro, seu irmão, que no Evangelho de João aparece sempre associado às duas irmãs. Também não se menciona o numeroso grupo que acompanhava Jesus. O evangelista foca propositadamente a atenção nas duas irmãs e na sua atitude para com Jesus. Enquanto Marta está atarefada a preparar a refeição para os convidados, Maria senta-se aos pés de Jesus para escutá-Lo. Irritada, Marta pede a Jesus que a mande ajudá-la. Jesus responde de forma inesperada: “Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas, mas só uma é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”.

Esta afirmação de Jesus tem sido alvo de muitas interpretações, como uma suposta superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa e da oração sobre a ação. O “serviço corporal” seria inferior ao “espiritual”, conclui São Basílio. Esta, no entanto, não é certamente a intenção de Jesus. Oração e ação são inseparáveis. Não se excluem nem se opõem, mas complementam-se. Trata-se de uma valorização das duas dimensões essenciais da vocação do discípulo. Marta e Maria não são figuras antagónicas, mas complementares. Todos somos chamados a encarnar Marta e Maria, a ser servidores e ouvintes da Palavra. Então, o que quer dizer Jesus?

Acolher é escutar

Jesus entrou numa aldeia, e uma mulher, chamada Marta, recebeu-O em sua casa. Ela tinha uma irmã, chamada Maria, que se sentou aos pés do Senhor e escutava a sua palavra”.

Antes de mais, notemos o carácter inédito e provocador da cena. Jesus quebra as regras dos costumes sociais, aceitando o convite de mulheres, algo mal visto no seu tempo. Além disso, Maria assume um papel revolucionário. Estar aos pés de um rabino significava ser seu discípulo. Ora, na época de Jesus, o estudo da Torá (Lei) era uma atividade reservada aos homens. “É melhor queimar a Bíblia do que colocá-la nas mãos de uma mulher”, diziam os rabinos (segundo o biblista F. Armellini). Também São Paulo ainda refletia essa mentalidade cultural, como se vê nas suas fortes recomendações à comunidade de Corinto, hoje inconcebíveis: “As mulheres devem calar-se nas assembleias, pois não lhes é permitido falar” (cf. 1 Cor 14,34-35).

Marta, porém, estava ocupada com muitos serviços. Aproximou-se e disse: ‘Senhor, não Te importas que a minha irmã me tenha deixado sozinha a servir? Diz-lhe que me ajude’”.

Marta e Maria amam ambas Jesus, mas diferem nas prioridades. Maria concentra-se em Jesus e delicia-se com a sua presença. Marta, preocupada com os afazeres, cede à inquietação, à impaciência e ao cansaço. E a presença de Jesus acaba por se tornar para ela um “peso”. Esse é o problema!

Mas o Senhor respondeu-lhe: ‘Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas, mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada’”

O estado de irritação de Marta leva Jesus a “chamá-la” com ternura (tal é a conotação da repetição do nome: “Marta, Marta”) para a reconduzir ao essencial, à conversão ao “único necessário”, à procura do Reino de Deus. Tudo o mais virá por acréscimo (cf. Lucas 12,31).

A multiplicidade de tarefas não é necessariamente sinónimo do “serviço” que Jesus espera de nós. É necessário, portanto, estabelecer prioridades e urgências. Em outras palavras, é preciso discernir. Como diz Paulo: “Peço que o vosso amor cresça cada vez mais em conhecimento e pleno discernimento, para que possais distinguir o que é melhor” (Filipenses 1,9-10).

Quantas vezes também nós caímos na armadilha do ativismo. Enchemos a nossa agenda com uma infinidade de compromissos. E, por vezes, atropelados pelas “urgências”, negligenciamos as prioridades. A nossa satisfação no fim do dia seria a de ter “feito tudo”, algo que raramente acontece, deixando-nos com uma amarga sensação de insatisfação, quando não de frustração.

Seria preciso exercitar o contrário. Nunca fazer “tudo”, mas deixar sempre algo para o dia seguinte, entregando-o ao Senhor que age enquanto dormimos. Assim experimentaríamos como é verdadeiro o que diz o salmista: “Em vão vos levantais cedo e vos deitais tarde, comendo o pão do vosso trabalho: Ele o dá aos seus amados enquanto dormem” (Salmo 127,2).

P. Manuel João Pereira Correia, mccj



P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com

 

segunda-feira, 14 de julho de 2025

REZAR OU BLASFEMAR? Frei Bento Domingues, O.P. 13 Julho 2025

 

REZAR OU BLASFEMAR?

Frei Bento Domingues, O.P.

                                                                     13 Julho 2025

 

Na Liturgia das Horas, predominam os Salmos rezados ou cantados. É a oração que marca o ritmo do tempo. Não teve sempre a mesma configuração. Por isso, periodicamente, fala-se de reforma litúrgica. No entanto, continuamos a rezar os Salmos que mais parecem blasfémias do que verdadeira oração.

Na Europa, o Movimento Litúrgico surgiu há 200 anos com um desenvolvimento, mais ou menos constante, nomeadamente em algumas abadias beneditinas da Alemanha, Bélgica e França. Em Portugal, o seu débil início pode datar-se no I Congresso Litúrgico Português, realizado em Vila Real de 17 a 19 de Junho de 1926.

A Encíclica Mediator Dei de Pio XII (1947) é considerada a Magna Carta do Movimento litúrgico. Sem dúvida, as reformas de Pio XII contribuíram para uma nova teologia litúrgica e podemos até acrescentar que o II Concílio do Vaticano desembocou numa teologia da liturgia, graças às bases destas reformas lentas e amadurecidas. Toda a Igreja se abria, naqueles anos, às riquezas do mistério pascal, centro da vida da Igreja e de cada cristão.

O I Congresso Internacional de Pastoral litúrgica de Assis ficou célebre pelas palavras proferidas pelo Papa Pio XII, no Discurso final (1956): o Movimento Litúrgico apareceu como um sinal das providenciais disposições divinas no nosso tempo, como uma passagem do Espírito Santo na sua Igreja para aproximar ainda mais as pessoas aos mistérios da fé e às riquezas da graça, que provêm pela participação activa dos fiéis na vida litúrgica e, ainda, pelas palavras de J. A. Jungmann, SJ: A chave da história da liturgia é a pastoral[1].

Entre nós, o Movimento da Pastoral Litúrgica teve algumas expressões, sobretudo, do mosteiro de Singeverga e do Seminário dos Olivais com uma das figuras mais influentes, Monsenhor Pereira dos Reis (1879-1960). Não posso esquecer também a influência do Curso de Teologia de Verão (ISTA), em Fátima, e as iniciativas originais de Frei José Augusto Mourão (1947-2011). Em 1965, o Centro de Estudos Sedes Sapientiae, do convento dos Dominicanos (Fátima), realizou – como lhe competia – um Colóquio de Pastoral Litúrgica, com muita participação de leigos e clero. Aliás, para a Ordem dos Pregadores, a verdadeira pregação alimenta-se da liturgia para todos.

Como apontou o Concílio Vaticano II, a Igreja procura «que os cristãos não entrem no mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na acção sagrada, consciente, activa e piedosamente, por meio de uma boa compreensão dos ritos e orações»[2]. Para isso, é necessário que os textos propostos suscitem o louvor a Deus e despertem a consciência de que são momentos de graça e não momentos de vingança.

Por exemplo, o Salmo 149 (vv.6-9), rezado em Laudes, no Domingo de Páscoa e durante toda a semana pascal, diz o seguinte: Na sua garganta estejam as grandezas de Deus,/ nas suas mãos, espadas de dois gumes,/ para realizarem a vingança contra as nações/ e darem o castigo aos povos;/ para prenderem os seus reis com correntes/ e os seus nobres, com algemas de ferro;/ para lhes aplicarem a sentença registada./ Ele é glória para todos os seus fiéis[3].

O Papa Francisco considerava o terrorismo, a vingança em nome de Deus, como uma blasfémia. Não será este salmo blasfemo? Aliás, o AT tem muitos textos deste teor.

  Encontrei, num estudo de Francolino Gonçalves, O.P. (1943-2017)[4], explicações históricas inovadoras. O uso que farei da sua hipótese só me responsabiliza a mim. Passo a transcrever apenas algumas passagens do seu longo texto.

Começa pela opinião comum: «desde há cerca de três quartos de século que o iaveísmo teve como matriz e, durante muito tempo, como único horizonte Israel ou, melhor dito, as relações entre Iavé e Israel. Nesta perspectiva, a eleição de Israel, a sua libertação do Egipto e a aliança que Iavé fez com ele, são os artigos fundamentais da fé iaveísta. Por influência das religiões estrangeiras, em particular da religião cananeia, o iaveísmo ter-se-ia voltado também para o mundo no seu conjunto e teria visto nele a obra de Iavé. No entanto, só teria assimilado plenamente a fé na obra criadora de Iavé, a partir de cerca de meados do séc. VI a.C., sendo Is 40-55[5], o escrito sacerdotal e vários salmos testemunhos e resultados deste processo de assimilação. Dito isso, a fé na obra criadora de Iavé, que tem por quadro e horizonte o cosmos e a humanidade, teria ficado sempre subordinada à fé na sua obra salvífica, que tem por quadro e horizonte a história das relações entre Iavé e Israel.

«A primazia absoluta que se atribui à ideia de história da salvação de Israel, a expensas da solicitude de Deus para com toda a criação, foi alvo de contestações mais ou menos radicais. Os seus autores baseiam-se geralmente numa maior atenção prestada aos escritos sapienciais mais antigos, que a opinião corrente não tem em conta. O AT contém assim duas representações diferentes de Iavé. Segundo uma, ele é o Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o Deus que está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e salva.

«As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram, essencialmente, o resultado dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT que é nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando, poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT».

Eu tiro a minha conclusão: o iaveísmo histórico veicula uma teologia nacionalista, por vezes, de uma extrema violência. Coloca na boca de Deus os interesses de um povo contra os outros povos. Este nacionalismo religioso blasfema[6].

Sendo a pastoral a chave da história da liturgia, ela exige que, nas liturgias cristãs sejam utilizados apenas os textos que nos falam do Deus Criador de toda a humanidade, do Deus cósmico, e não de um Deus de vingança. O tempo do Jubileu, dos 10 anos da Laudato Si’ e da fase de implementação do Sínodo, que vai até 2028, será um tempo excelente para levar a cabo esta tarefa pastoral. De tanto se falar de reforma, uma das mais urgentes é esquecida.

 

 



[1] Cf. D. José Manuel Cordeiro, bispo de Bragança-Miranda, Do Movimento Litúrgico à Reforma Litúrgica, Ecclesia, 29.11.2011.

[2] Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 48

[3] Tradução da Conferência Episcopal Portuguesa

[4] Cf. Iavé, Deus de justiça e de bênção, Deus de amor e de salvação em Cadernos ISTA, nº 22 (2009), p. 107-152, especialmente p. 114-115.

[5] Livro do profeta Isaías

[6] Cf. Frei Bento Domingues, O.P. Será a Bíblia Blasfémia? in Publico, 27.12.2015

Fazer-se próximo! - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 Fazer-se próximo!

Ano C – 15.º Domingo do Tempo Comum
Lucas 10,25-37: “Quem é o meu próximo?”

A passagem evangélica deste domingo (Lucas 10,25-37) narra a parábola do chamado Bom Samaritano. Um doutor da Lei pergunta a Jesus o que deve fazer para alcançar a vida eterna. Jesus convida-o a responder por si próprio, e o escriba faz uma síntese perfeita da Lei: amar a Deus e ao próximo. Mas à sua pergunta: “Quem é o meu próximo?”, Jesus responde com uma parábola.

Um homem, ao descer de Jerusalém para Jericó, é atacado por salteadores. O percurso de 27 km, com um desnível de cerca de mil metros (de Jerusalém, a +750 metros, até Jericó, a -250), era extremamente perigoso, pois atravessava uma zona acidentada e árida do deserto da Judeia, ideal para emboscadas. Por isso, era habitual viajar em caravana.

Na parábola, Jesus apresenta a atitude de três personagens perante o homem ferido: um sacerdote, um levita e um samaritano. O sacerdote e o levita, ambos ligados ao culto no Templo, veem e passam ao largo. Neste ponto, os ouvintes esperariam um terceiro personagem “leigo”, com uma certa crítica velada ao clericalismo — uma crítica que talvez agradasse a eles, e até a nós hoje.

Mas Jesus introduz um samaritano, ou seja, um herege, um estrangeiro, um inimigo. Todos ficam à espera do que ele fará. Pois bem, o samaritano “ao vê-lo, encheu-se de compaixão”. Neste momento, todos terão ficado surpreendidos, imagino. A parábola toma um rumo de denúncia profética, desmascarando uma religiosidade vazia e formal. Hoje, podemos ver-nos representados no sacerdote e no levita: os “crentes”, os praticantes. Enquanto o samaritano representaria aqueles que, mesmo sem invocar Deus ou a sua Lei, agem com generosidade e altruísmo. Neste sentido, a parábola interpela-nos profundamente.

“Que está escrito na Lei? Como lês tu?”

A primeira leitura (Deuteronómio 30,10-14), escolhida em consonância com o Evangelho, e o salmo responsorial (Salmo 18) falam de lei, mandamentos, preceitos, decretos... Usam verbos como: ordenar, obedecer, observar, cumprir... Conceitos que hoje acolhemos com dificuldade. Mesmo sabendo que as leis são necessárias para a convivência social, custa-nos aceitar limitações à nossa liberdade. Quando descobrimos que a “Lei” também regula a nossa relação com Deus, pode surgir desconforto. Com que sinceridade repetimos com o salmista: “Os preceitos do Senhor alegram o coração”?

Devemos então refletir sobre a contra-pergunta que Jesus faz ao doutor da Lei: “Que está escrito na Lei? Como lês tu?”. Como quem diz que não basta conhecer o que está escrito, é preciso também interrogar-se sobre como compreendemos essa Palavra. O “como a lês?” é dirigido também a nós. É necessário colocar-se diante das Escrituras com a intenção de passar do “que está escrito” ao “como o compreendo e o vivo”.

É interessante notar que a primeira leitura, o salmo e o Evangelho envolvem todas as faculdades do ser humano: coração, alma, mente, olhos, mãos... “Converter-te-ás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma” (I leitura); “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua força e com toda a tua mente, e ao teu próximo como a ti mesmo” (evangelho). Se todas estas dimensões não estão envolvidas, a leitura da Palavra permanece abstrata, teórica, parcial ou até mesmo distorcida.

Proximidade e distância

A parábola nasce da pergunta do escriba: “E quem é o meu próximo?”. Era uma questão debatida na época. Na melhor das hipóteses, o próximo era apenas o compatriota judeu praticante. Jesus muda a perspetiva: à pergunta “Quem é o meu próximo?”, responde de facto: “Não perguntes quem merece o teu amor, mas sê tu um próximo para quem precisa”.

Uma chave de leitura deste domingo é precisamente o conceito de proximidade. Na primeira leitura lemos: “Esta palavra está muito próxima de ti, está na tua boca e no teu coração, para a cumprires”. O verdadeiro sinal de que a Palavra está próxima é a compaixão, que nos torna capazes de nos aproximarmos do necessitado, como faz o samaritano: “Ao vê-lo, encheu-se de compaixão”. E fez-se próximo! Esta proximidade traduz-se em gestos concretos: “Ligou-lhe as feridas, derramando nelas azeite e vinho; depois colocou-o sobre a sua montada, levou-o a uma hospedaria e cuidou dele”.

O samaritano “encheu-se de compaixão”. O verbo usado por Lucas é splanchnizomai, que significa comover-se, “ser abalado nas entranhas”. No Evangelho de Lucas aparece apenas três vezes: quando Jesus se comove perante a viúva de Naim (7,13), na nossa passagem (10,33) e na parábola do pai misericordioso (15,20). Em todos os três casos, a compaixão exprime-se num aproximar-se e tocar. Comover-se é um verbo atribuído particularmente a Deus. Não por acaso, o escriba não usa este verbo para descrever a atitude do samaritano, mas a expressão “praticar misericórdia”.

A conclusão da parábola é clara e direta: “Então vai e faz o mesmo!” Faze-te próximo. Pratica misericórdia. E tornar-te-ás filho ou filha do Deus da Compaixão, como Jesus, o verdadeiro “Bom Samaritano”.

Para reflexão pessoal

Eis então que surge a verdade: há pessoas tidas como impuras, não ortodoxas na fé, desprezadas, que sabem ‘praticar misericórdia’, sabem viver um amor inteligente para com o próximo. Não precisam invocar a Lei de Deus, nem a sua fé, nem a sua tradição, mas simplesmente, enquanto ‘humanas’, sabem ver e reconhecer o outro na necessidade e, por isso, colocam-se ao serviço do seu bem, cuidam dele, fazem-lhe o bem necessário. Isso é praticar misericórdia! Pelo contrário, há homens e mulheres crentes e religiosos, que conhecem bem a Lei e são zelosos no seu cumprimento minucioso, que precisamente por olharem mais para o que ‘está escrito’, para o que é tradição, do que para a vida concreta, para o que lhes acontece e para quem têm diante de si, não conseguem observar a intenção de Deus ao dar a Lei: e essa única intenção, ao serviço da qual a Lei se coloca, é a caridade para com os outros! Mas como é possível? Como é possível que justamente as pessoas religiosas, que frequentam diariamente a igreja, rezam e leem a Bíblia, não só omitam o bem, mas até nem cumprimentem os irmãos e irmãs, coisa que até os pagãos fazem? É o mistério da iniquidade que opera também na comunidade cristã! Não devemos espantar-nos, mas apenas interrogar-nos a nós mesmos, perguntando se às vezes não nos encontramos mais do lado do comportamento omissivo desses justos empedernidos, desses legalistas e devotos que não veem o próximo, mas julgam ver a Deus, que não amam o irmão que veem, mas estão certos de amar o Deus que não veem (cf. 1Jo 4,20); desses militantes zelosos para quem a pertença à comunidade ou à igreja é uma garantia que os torna cegos, incapazes de ver o outro necessitado”.
(Enzo Bianchi)

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

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domingo, 6 de julho de 2025

Perigo maior: a agitação paralisante e a paralisia agitante - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 1

Crónicas PÁRA E PENSA
Perigo maior: a agitação paralisante

e a paralisia agitante

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

A questão que o ser humano é para si
mesmo mostra-se paradoxal. Por um lado, é
inevitável: o abismo insuperável entre o
que espera e quer ser e o que realmente
alcança, obriga-o a perguntar: o que sou?
Que ser é esse que é entre ser e não ser e
que nunca é plenamente? Por outro lado, a
questão é insolúvel, porque, para conhecer-
se, ele precisava de saltar para fora de si em
ordem a poder ver-se de fora,
objectivamente. Ora, precisamente este salto
é impossível.
2
Depois, o ser humano vive-se a si mesmo
em processo e em tensão. E são muitas as
suas tensões. Lá está sempre a pulsão e a
lógica, a afectividade e o pensamento, o
inconsciente e o consciente, a emoção e o
cálculo, o impulso e a razão. Aliás, essa
tensão inscreve-se numa base
neurofisiológica o cérebro que
funciona holisticamente, mas com três
níveis: o paleocérebro, o cérebro arcaico,
reptiliano, o mesocéfalo, o cérebro da
afectividade, e o córtex com o neocórtex, em
conexão com as capacidades lógico-
racionais. Não é sabido, até por experiência
própria, que muitas vezes as respostas
emocionais escapam ao controlo racional
por causa do chamado “atalho neuronal” e
do “sequestro emocional”, como mostrou
Paul D. Mac Lean? De repente, demos uma
resposta a alguém de que depois nos
3
arrependemos, a pulsão sobrepôs-se à
razão...

É verdadeiramente paradoxal a
constituição humana. Somos constituídos e
vamo-nos constituindo a partir de uma
herança genética e de uma história, numa
determinada cultura. É próprio do Homem
não ter uma natureza fixa e imóvel, porque
é histórico e cultural.

Somos afectivos e racionais. Ninguém
começa com a inquirição racional do
mundo. Primeiro, o ser humano sentiu o
mundo e foi afectado por ele, positiva ou
negativamente. É muito lentamente que a
razão se vai erguendo no seu uso teórico-
prático.

O Homem é situado, sumamente
concreto: resulta daquele óvulo fecundado
por aquele espermatozóide, naquele
instante, e, sempre, com uma história
concreta esta e não outra. Ao mesmo
4
tempo é aberto: ao presente, ao passado e ao
futuro, a todos os outros seres humanos, à
realidade toda, ao que há e ao que não há,
pois é também o ser da utopia e do sonho e
do ilimitadamente possível. A pergunta vai
até ao infinito...

Por isso, é único. Nunca houve nem
haverá outro como eu. Lá está o grito de
Unamuno: “Cada um de nós é único e
insubstituível. Não há outro eu no mundo!
Não há outro eu! Havê-los-á mais velhos e
mais novos, melhores e piores, mas não
outro eu. Eu sou algo inteiramente novo. Eu
não quero deixar-me classificar, porque eu,
Miguel de Unamuno, como qualquer outro
homem que aspire à consciência plena, sou
espécie única”. Ao mesmo tempo, o
Homem é relacional e, precisamente porque
é relação sem limites, aberto a tudo, vem a
si mesmo como único, pessoal e
comunitário.
5
Na gigantesca História do universo e da
evolução, sabemos que há Homem, quando
aparecem rituais funerários. Como os
outros animais, o Homem também morre,
mas, ao contrário dos outros, sabe que é
mortal e angustia-se com a morte.

O Homem sabe que é finito, mas essa
consciência da finitude é-lhe dada na
abertura ao Infinito. Esta abertura é
condição de possibilidade da consciência do
finito enquanto finito. É nela que se enraíza
a condição da pergunta religiosa enquanto
tal.

O ser humano é festivo e sério,
condicionado e livre, é homo sapiens e
também homo demens sapiens sapiens e
demens demens (sapiente sapiente e demente
demente). E homo dolens (sofredor) e homo
sperans (esperante).

Assim, precisamos de reflectir sobre nós
mesmos. Os fins de semana e as próprias
6
férias não precisam de ser agitação
constante. Também podem ser e deveriam
ser tempo de meditação.

É muito interessante a constatação do
vínculo entre meditação, medicina e
moderação. As três têm como étimo o verbo
latino mederi, que tem o sentido de medir,
pensar, curar, restabelecer o equilíbrio. Cá
está! É sempre a medida e a justeza que
estão em causa. Porque a saúde resulta do
equilíbrio e da harmonia. A moderação tem
a ver com a medida justa. A meditação é
ponderação e pesagem para o equilíbrio
harmónico.

Precisamos de viver
reconciliados/reconciliadas, em harmonia.
Para evitar perigo maior, de que falava D.
António Ferreira Gomes, o famoso bispo do
Porto: a agitação paralisante e a paralisia
agitante.

Sábado, 5 de Julho de 2025