1. Quando
se pretende desqualificar as intervenções e os escritos do Papa Francisco,
diz-se que lhe falta um pensamento estruturado por grandes princípios de
alcance universal. Deixa-se levar pelas urgências da pastoral marcada pelo
tempo, pelo lugar, pelas circunstâncias e pela vida e aflições das comunidades.
Parece-me
uma observação bastante ridícula. Bergoglio não foi eleito para reitor de uma
universidade pontifícia, mas para cuidar, segundo o Espírito e o método do
irmão Jesus de Nazaré, das fraternidades cristãs, de modo que estas sejam o fermento
de um mundo de irmãos[1].
Para
caracterizar a sua tarefa, Jesus usou a palavra pastor porque, na sua cultura,
era a que melhor designava aquele que vai à frente e cuida de todos. João
XXIII, na Mensagem inaugural ao Vaticano II, observou que importa ter em conta,
«medindo tudo nas formas e proporções do magistério de carácter prevalentemente
pastoral». Não opunha Teologia e Pastoral. Ele próprio nomeou alguns dos
teólogos mais famosos pela sua abertura ao devir do mundo concreto. Ele não
desprezava o contributo dos teólogos, antes pelo contrário. O que não lhe
interessava era teólogos descolados do mundo em mudança.
K.
Rahner e E. Schillebbekx, no primeiro número da revista Concilium,
marcaram o que deve ser a nova orientação da Teologia: a necessidade de uma
análise da hodierna experiência da existência humana à luz da revelação. Por
toda a parte onde há vestígios da existência humana, essa existência é atingida
e chamada pelo Deus vivo da salvação. Assim, a experiência existencial do ser
humano, em qualquer parte onde se encontre, é sempre um locus theologicus,
um lugar de descobertas para a convicção vital religiosa. O P. Chenu, o teólogo
dos sinais dos tempos e dos mais influentes no desenrolar do Vaticano
II, caracterizou bem a complementaridade entre teologia e magistério pastoral[2].
O
Papa Francisco dirigiu-se, várias vezes, a algumas Faculdades de Teologia e à
Comissão Teológica Internacional, para que as suas investigações e práticas
cheirassem a “ovelhas”, a “povo”. Não era para diminuir a necessidade de rigor
na investigação, mas para que esta não viva descolada do mundo real em contínua
mudança.
Repetiu-se
que a doutrina social da Igreja não se devia meter com situações concretas,
sujeitas à mudança. Para manter as mãos limpas acabava por não ter mãos. A
Igreja viria do eterno e caminharia para a eternidade, mas sem dizer por onde
passava e com quem caminhava. De facto, o Papa Francisco situa-se num plano
muito diferente: o abstrato
paralisa-nos, mas focar-nos no
concreto abre caminhos de possibilidades. É esta a posição que defende no seu novo livro, Sonhemos Juntos[3]. O 7Margens fez uma pré-publicação do
início do primeiro capítulo: «Tem de se ir às periferias se se quer ver o mundo como ele é». Segue o
conhecido método da Acção Católica: ver, julgar e agir.
2. Jesus
de Nazaré não deixou nada escrito. Os primeiros escritos cristãos, os de S. Paulo,
oferecem a sua experiência do Ressuscitado e as implicações que a sua
experiência teve, para mostrar as superações da Lei antiga e a inclusão do
mundo todo na graça universal de salvação. Esta deixou de ser o exclusivo do
povo de Israel.
Se ficássemos só com os
textos de S. Paulo, não sabíamos nada de concreto acerca do itinerário do
Nazareno. A construção das narrativas dos quatro Evangelhos permite ter imagens
e discursos retrabalhados do seu itinerário: as suas opções, os colaboradores
que escolheu, as atitudes, as intervenções e as parábolas que elaborou para
vencer o mundo das muitas formas de exclusão. De facto, encontrou-se com
a exclusão criada pela religião oficial em que tinha sido formado: cegos,
surdos, leprosos, possessos, publicanos e, mais radicalmente, as mulheres.
Sobre essas situações concretas, não fez declarações abstractas: viu, julgou e agiu.
Como não foi Ele que
escreveu essas narrativas, o que temos são as interpretações dos autores
dos quatro Evangelhos e dos Actos dos Apóstolos e das comunidades em que se
inscreviam, muitos anos depois do que aconteceu a Jesus. Mas todas as
narrativas, ditas canónicas, têm o mesmo assunto e o mesmo propósito,
realizados segundo a significação que revestiam para as comunidades em que
surgiram. Não falam de um mito, mas de alguém muito humano situado numa época e
num mundo que, hoje, pode e é estudado com bastante verosimilhança.
Os escritos tiveram o
cuidado de referir tudo a Jesus Cristo e ao seu Espírito criador. Para Ele, o
Espírito de Deus não era a sua propriedade privada, mas a sua presença criativa
no mundo e na Igreja.
As comunidades, na sua criatividade,
nunca prescindiram dessa referência explícita ao Nazareno e ao seu Espírito.
Eram, no entanto,
conscientes de que o Espírito de Cristo não se esgotou na criatividade da época
apostólica, quer na referência ao número simbólico dos Doze – as 12 tribos de
Israel –, como aos 72 discípulos enviados em missão – número simbólico das nações
gentias.
3. Uma
questão que está sempre em estudo, sem nenhuma conclusão, é o papel das
mulheres na Igreja e nos chamados ministérios ordenados como, por
exemplo, o da presidência da Eucaristia.
O
Papa Francisco acaba de publicar uma Carta Apostólica sob a forma de «Motu
Proprio», Spiritus Domini. É tão breve que se pode chamar um bilhete cheio
de ironia. Diz que «Os leigos que
tiverem a idade e as aptidões determinadas com decreto pela Conferência
Episcopal, podem ser assumidos estavelmente, mediante o rito litúrgico
estabelecido, nos ministérios de leitores e de acólitos; no entanto, tal
concessão não lhes atribui o direito ao sustento ou à remuneração por parte da
Igreja».
Posso estar muito enganado, mas esta Carta
é um exercício magnífico de ironia pastoral. Bergoglio tem-se esforçado por
realçar que o lugar das mulheres na Igreja está muito desfasado em relação ao
papel que desempenham na vida social, cultural, económica e política em muitos
países. Homens e mulheres gozam cada vez mais, ainda com muitas distorções, dos
mesmos direitos e deveres cívicos.
No entanto, o Papa Francisco esbarra com a
Carta Apostólica de João Paulo II, Ordinatio Sacerdotalis (22.05.1994): «A
ordenação sacerdotal, mediante a qual se transmite a função confiada por Cristo
aos apóstolos, de ensinar, santificar e reger os fiéis, foi reservada sempre,
na Igreja Católica, exclusivamente aos homens». Esta Carta precisa de uma
hermenêutica rigorosa que mostre que ela continua com as imagens de um mundo
que está condenado a desaparecer.
Ao publicar um Motu Próprio sobre o
que já não precisava de nenhuma publicação, o Papa Francisco manifesta o
ridículo da situação actual.
Rezemos: Vem Espírito Santo Criador!
17. Janeiro. 2021
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