1. Não
sou historiador do processo da reforma litúrgica desencadeada por Pio XII, em
1946, de forma mais ou menos clandestina para não ter que enfrentar aqueles
que, perante qualquer reforma, levantam o muro da repetição do passado: sempre
assim foi, sempre assim será. Essa tendência ainda não foi completamente
vencida, mas é legítimo dizer que, a partir de 1955, tornou-se irreversível a
chamada Reforma da Semana Santa de Pio XII e continuada por João XXIII (1962).
Não foi por acaso que o primeiro documento aprovado, no Vaticano II, foi o Sacrosanctum
concilium, sobre a Liturgia (04.12.1963). Não sou historiador, mas fui
testemunha entusiasta desta reforma.
Neste momento, a celebração
da Vigília Pascal está assumida nas paróquias e nas grandes comunidades
cristãs, tornando-se habitual o baptismo de adultos convertidos e a renovação
das promessas baptismais de quem foi baptizado em criança. A Quaresma não é um
fim, ajuda a perceber a verdade da fé cristã, um contínuo processo de
ressurreição. Mesmo sob o ponto de vista litúrgico, o tempo pascal é um tempo
largo. Se a Igreja deve estar sempre em processo de reforma (semper
reformanda) implica que também devia ser esse o estilo de vida dos seus
membros: «exorto-vos,
irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como
sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja este o vosso verdadeiro culto, o
espiritual. Não vos acomodeis a este mundo. Pelo
contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para
poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é
agradável, o que é perfeito»[1].
Este Domingo foi também
chamado o Domingo da Pascoela, da Páscoa pequenina. Tempo houve que a
celebração da Eucaristia, deste dia, era a chamada Missa in Albis (Missa
de Branco). As pessoas baptizadas na Vigília Pascal, para significar que
iniciavam uma vida nova, vestiam-se de branco que mantinham durante toda a
semana. Maria Velho da Costa (1938-2020) publicou, em 1988, um dos seus grandes
livros, Missa in Albis.
Nunca podemos esquecer que a
alteração das formas litúrgicas não se destina a construir um belo espectáculo.
Tem de procurar envolver os cristãos todos, vencendo o clericalismo, mas isso
não basta.
As reformas litúrgicas só
têm sentido por criarem um clima, um ambiente de mudança de vida porque a
tentação permanente dos cristãos é de se acomodarem.
Esquece-se que os movimentos
de renovação da arte religiosa[2]
ou arte sacra não estavam desligados dos grandes movimentos de renovação
do catolicismo no século XX em vários países: Movimento bíblico, Movimento
Patrístico, Movimento litúrgico servido pelas redescobertas históricas e pela
renovação musical, diferentes Movimentos culturais que acompanharam a criação
literária, todos os Movimentos e tribulações da Acção Católica, Movimento
social, nas suas várias expressões, sem esquecer as polémicas em torno dos
Padres operários. Tudo isto era acompanhado pelos grandes debates da chamada,
impropriamente, Theologie Nouvelle (a verdade da teologia é o debate)
que encontrou uma grande expressão de liberdade e criatividade no Concílio
Vaticano II (1962-1965). Esse clima de liberdade passou por grandes
dificuldades, depois desse Concílio, até ao advento do admirável Papa
Francisco.
2.
Dir-se-á que alguns desses movimentos foram obra de minorias e, por isso, não
tiveram impacto popular. Parece que não há movimento que comece por ser de
grandes maiorias, mas sem a ousadia de pessoas e grupos minoritários ficava-se
sempre na mesma. O grande horizonte da arquitectura religiosa, assim como do
movimento litúrgico, era formar comunidades vivas e não puramente estéticas.
Os movimentos de resistência
às mudanças das propostas do Vaticano II ajudam a perceber o que era a situação
pré conciliar das celebrações: padre de costas para o povo, recitando um livro
em latim. A forma mais acessível, para as pessoas ocuparem esse tempo de
escuridão, era rezar o terço. O padre encarregava-se da celebração dos
sacramentos, os fiéis diziam, sem entender, o credo mais belo, o Ámen,
que significa o empenhamento pessoal com o que acabava de ser celebrado. Mas,
se não entendiam a celebração em latim, o Ámen só podia ser uma ficção
convencional.
3. Os
temas litúrgicos não podem esquecer as condições pessoais e sociais da sua
verdade ou da sua grande mentira, título desta crónica.
Como é possível que certas
pessoas que se declaram católicas manifestem, por palavras e obras, o ódio e
desprezo por quem tem de abandonar o próprio país e procurar, de todas as
maneiras, um porto de refúgio? As situações de imigrantes pobres ou perseguidos
nos seus países de origem obrigam-nos a recorrer a todos os meios para
encontrar um país de acolhimento. Os traficantes de seres humanos fomentam
caminhos de vida ou morte para um destino de exploração. Para alguém que se diz
católico, participar nessas atitudes é uma declarada mentira.
A denúncia dessa mentira
criminosa obriga-nos a nós, portugueses, a não perdermos a memória da emigração
forçada, e em condições horríveis, para fugir à guerra e à miséria.
Conheci muitas dessas
situações e lembro-me de os dominicanos, em Marselha, pedirem aos dominicanos
portugueses para enviarem alguém que pudesse ajudar os emigrantes até conseguirem
defender-se da exploração a que estavam sujeitos e encontrarem uma inserção
estável e digna.
Portugal, e não só, tem
obrigação de não perder a memória de que muitos portugueses tiveram de
abandonar o país a salto – muitas vezes por várias tentativas e de serem,
frequentemente, abandonados e explorados pelos próprios passadores – para
encontrar um destino de liberdade.
Li, por essa razão e com muita
alegria, a entrevista que a ministra adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana
Catarina Mendes, deu ao Público na passada segunda-feira (dia 10/04). Vai tutelar a Agência Portuguesa para as
Minorias, Migrações e Asilo (APMMA). Esta criação é o último passo para o fim
do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e recolherá os seus funcionários
administrativos. A ministra assume que esta solução representa o «novo
paradigma de olhar as migrações».
Hoje não temos apenas
pessoas a chegar a saber falar ou a perceber alguma coisa de português. Nós
temos outras culturas, outras mentalidades. E para mim, uma boa política de
migração, numa sociedade democrática e numa sociedade decente, faz-se com a
compreensão de quem cá chega e com a certeza de que o nosso quadro
constitucional diz que todos são iguais em direitos e deveres. E todos são os
que aqui nascem, os que aqui decidem viver e fazer a sua vida. Penso que o
papel de Portugal, do ponto de vista da visão mais integradora, no fundo é: nós
somos uma nação de várias identidades e temos de nos saber entender, tendo
sempre por base o respeito pelos direitos humanos.
Um cristão não pode evitar a
interrogação: como posso amar Deus que não vejo e odiar o irmão que vejo?[3].
16 Abril 2023
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