terça-feira, 29 de outubro de 2024

27 outubro O Homem: questão para si mesmo. 12. Donde vem o “eu” - Padre e Professor de Filosofia na U.C., Anselmo Borges

 27 outubro 2024 às 00:00

Leitura: 5 min
O Homem: questão para si mesmo.

12. Donde vem o “eu”

É soberanamente estranho e enigmático o significado de dizer “eu”. Só cada um, cada uma, o
pode dizer de si mesmo, de si mesma, com sentido único e irrepetível. Ninguém pode dizer
“eu” na vez de outro. Precisamente por isso, ninguém sabe o que é exactamente ser outro,
outro eu, ninguém pode viver-se plenamente a partir de dentro de outro, ninguém pode
conceber o mundo visto pelo outro, por outro eu. O outro - outro eu, mas sobretudo e sempre
um eu outro - é irredutível.

É absolutamente fascinante perguntar-se a si próprio: como será o mundo a partir dali, daquele
olhar, daquele olhar do outro - olhar não apenas externo, mas interior? Como é que ele, ela,
me vê? O que se passará nele, nela, dentro dele, dela, quando me vê, quando me observa,
quando pensa em mim, quando diz que me ama? Se nos fosse possível ir lá dentro!... O que é
que aconteceu para que o bebé, que começa por parecer um “embrulhinho” (perdoe-se a
expressão terna), inicie um processo de dizer-se, que vai do neutro - o menino, a menina, o
Kico, a Rita... - até ao soberano eu, donde tudo parece partir para tudo dominar?

Mas não é apenas o eu do outro que é enigmático. O meu próprio eu é enigma para mim.
Quando tentamos ver-nos a nós próprios à distância, em miúdos, quando andávamos na
escola, por exemplo, ao dar connosco, sabemos que somos nós, mas ao mesmo tempo vemo-
nos de fora: somos os mesmos, mas de outro modo.

Até no presente, por mais que objective de mim, há sempre um reduto último - parte da
subjectividade - que resiste à objectivação, não havendo nunca coincidência entre o eu
objectivo e o eu subjectivo. Vejo-me, sem ver-me adequadamente, de tal maneira que, na
medida em que procuro mergulhar até à ultimidade de mim, é como se desaparecesse no
nada.

Também por isso, David Hume negou a existência do eu: quando me vejo por dentro, o que
encontro é apenas uma série de vivências, mas nunca o eu, que não passa precisamente de um
feixe de vivências. Não perguntava Pascal em que parte do corpo é que se encontraria o eu?
Aliás, já certas correntes do budismo se tinham referido ao eu como ilusão, e o exemplo que se
dá é o de uma cebola a que se vai tirando as camadas sucessivas, sem que reste um núcleo
duro: da desconstrução da unidade pessoal não permanece um sujeito.

Mas a interpretação também pode seguir outro caminho. Descendo até ao abismo de mim,
aquele aparente nada com que deparo é o véu de mim enquanto inobjectivável, isto é,
enquanto pessoa e não coisa. Precisamente aí - no eu irredutível - posso encontrar-me com o
mistério do Deus criador.

É com esse milagre do eu enquanto pessoa, fim e não meio para nada, nem para ninguém, que
se defrontam, por exemplo, os pais, no encontro com o filho, como escreveu o filósofo Julián
Marías: “A realidade psicofísica do filho - corpo, funções biológicas, psiquismo, carácter, etc. -
‘deriva’ da dos pais, e neste sentido é ‘redutível’ a ela. Mas o filho que é e diz ‘eu’ é
absolutamente irredutível ao eu do pai, bem como ao da mãe, igualmente irredutíveis, é claro,
entre si. Não tem o menor sentido controlável dizer que ‘vem’ deles, pois eu não posso vir de
outro eu, já que este é um ‘tu’ irredutível.

Neste sentido, a criação pessoal é evidente. Isto é, o aparecimento da pessoa - de uma pessoa -
, enquanto tal, é o modelo daquilo que realmente entendemos por criação: a iluminação de
uma realidade nova e intrinsecamente irredutível”

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

MENDIGOS DE LUZ - Pe. Manuel João - MC

 MENDIGOS DE LUZ 

 

XXX Domingo do Tempo Comum (B) 
Marcos 10,46-52: “Mestre, que eu veja!” 

A cura do cego de Jericó é o último milagre narrado no Evangelho de São Marcos. Este relato segue os três anúncios de Jesus sobre a sua paixão, morte e ressurreição, acompanhados pelas catequeses dirigidas aos discípulos, que constituem a espinha dorsal da parte central do Evangelho de São Marcos. 

Estamos em Jericó, a última etapa para os peregrinos da Galileia que percorriam o caminho ao longo do Jordão, em direção a Jerusalém para a Páscoa. A distância entre Jericó e Jerusalém é de cerca de 27 quilômetros. O percurso atravessa um território desértico e montanhoso, com uma diferença significativa de altitude: Jericó está a 258 metros abaixo do nível do mar, enquanto Jerusalém está a cerca de 750 metros acima do nível do mar. A caminhada, portanto, é íngreme e bastante cansativa. 

O evangelista dá especial atenção à figura de Bartimeu, filho de Timeu, provavelmente uma pessoa conhecida na comunidade primitiva. Além de mencionar o nome do seu pai, o evangelista descreve cuidadosamente as suas ações: “O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus”. O manto, considerado a única posse do pobre, também representava a identidade da pessoa. Portanto, “deitar fora o manto” simboliza despir-se de si mesmo. São Paulo, na Carta aos Efésios (4,22), fala em “despir-se do homem velho”. Bartimeu é o único caso em que se diz que a pessoa curada segue Jesus pelo caminho. Os Padres do Deserto viam nisso uma alusão à liturgia batismal: antes de ser batizado, o catecúmeno despia-se da veste, descia nu na piscina batismal e, ao subir, era revestido com uma túnica branca.

Pontos de reflexão 

1. Bartimeu, figura do discípulo: valor simbólico do milagre 

A parte central do Evangelho de Marcos (capítulos 8-10), chamada “a seção do caminho”, é enquadrada por duas curas de cegos. No início da seção encontramos a cura progressiva do cego de Betsaida (8,22-26), que precede imediatamente a profissão de fé de Pedro em Cesareia de Filipe. Nesse caso, um cego – sem nome – é levado a Jesus por alguns amigos que intercedem por ele. No final da seção, encontramos a cura de outro cego, de nome Bartimeu, que toma a iniciativa de pedir, gritando – apesar da oposição da multidão – a graça de recuperar a visão. 

O relato tem um grande valor simbólico: Bartimeu é o espelho do discípulo. Nos últimos domingos, Marcos conduziu-nos pelo itinerário dos apóstolos. Nesse percurso de formação e de tomada de consciência das exigências do seguimento, o discípulo sente-se como cego. Bartimeu é símbolo do discípulo que está sentado à beira do caminho, incapaz de continuar. Ele representa, por isso, cada um de nós. Todos nós nos damos conta de que somos espiritualmente cegos quando se trata de seguir Jesus no caminho da cruz. Como Bartimeu, pedimos ao Senhor que nos cure da cegueira que nos paralisa. 

2. Bartimeu, nosso irmão: “mestre” de oração 

Bartimeu sabe exatamente o que pedir, ao contrário de Tiago e João, que “não sabiam o que estavam a pedir”. Ele pede o essencial na sua oração: “Filho de David, Jesus, tem piedade de mim!” Nesta súplica, Bartimeu expressa a sua fé em Jesus como Messias, invocando-o como “Filho de David” — ele é a única pessoa no Evangelho de Marcos a conceder-lhe esse título. Ao mesmo tempo, manifesta uma relação de confiança, intimidade e ternura, chamando Jesus pelo nome e invocando-o como “Rabbuni”, que significa “meu mestre”. Este título aparece apenas duas vezes nos Evangelhos: aqui e no relato de Maria Madalena, na manhã da Páscoa (Jo 20,16). 

A vida nasce da luz e se desenvolve graças à luz. O mesmo acontece na vida espiritual: sem a luz interior, a nossa vida espiritual é engolida pela escuridão. Às vezes, experimentamos a alegria da luz, enquanto em outras ocasiões as trevas parecem invadir a nossa existência. Problemas, sofrimentos, dificuldades e fraquezas ofuscam a nossa visão da vida, tornando-nos incapazes de seguir o Senhor. Nesses momentos, a oração de Bartimeu vem em nosso auxílio: “Rabbuni, que eu veja de novo!” Bartimeu é mestre duma oração simples, essencial e confiante. 

3. Companheiros de Bartimeu: mendigos de luz 

Na Igreja antiga, o batismo era considerado como uma “iluminação”. Essa iluminação, que nos salva das trevas da morte, está sempre ameaçada. Ela nos introduz num caminho de busca contínua da luz. Como o girassol, o cristão volta-se diariamente para o Sol de Cristo. Todas as manhãs, enquanto lavamos os nossos olhos físicos, com a alma em oração corramos a lavar-nos na piscina de Siloé do nosso batismo, como o cego de nascença de que fala São João no capítulo 9 do seu Evangelho. E quando nos sentimos cegos, lembremo-nos que há o colírio da Eucaristia. Com as mãos que receberam o Corpo luminoso de Cristo, podemos tocar os nossos olhos e o nosso rosto, lembrando-nos da experiência dos dois discípulos de Emaús, aos quais os olhos se abriram ao “partir o pão”. Não apenas os nossos olhos, mas também o nosso rosto está destinado a brilhar, como o de Moisés (Ex 34,29). O rosto do cristão, com efeito, reflete a glória de Cristo (2Cor 3,18), tornando-se assim testemunha da Luz, colocada sobre o candelabro do mundo.

P. Manuel João Pereira Correia, mccj
Se não desejar receber estas mensagens, por favor informe-me. Obrigado. 
p.mjoao@gmail.com

 

sábado, 19 de outubro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. 11 - Máquinas com consciência? Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 19 Outubro 2024

O Homem: questão para si mesmo.
11 - Máquinas com consciência?

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

19 Outubro 2024

O que diz alguém, quando diz “eu”? Afirma-se a si mesmo como sujeito, autor das suas acções
conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, na abertura e em
contraposição a tudo.

Mas há observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar
para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?

Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nesta
direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da
inexistência do eu, do não-eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge
budista, deu-me, há anos, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o Rio Douro. O que é o
Rio Douro? Onde está o Rio Douro? Ele não existe como substância, pois não há senão uma
corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de
pensamentos fugazes, de vivências? O eu não passa de um nome para designar um continuum,
como nomeamos um rio.

Mas há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em
transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. O que se passa é que, não se tratando
de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível.

É, e será sempre, enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência. É claro
que o eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro
do corpo - o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os
processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que
haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu
Leibniz e é acentuado pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os
conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que
é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos
eléctricos e químicos no cérebro - processos neuronais da ordem da terceira pessoa - para a
experiência subjectiva na primeira pessoa?

Apesar de se não afastar, por princípio, a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão,
o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência
surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz
disse numa entrevista: “Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do
cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu, nem como é que o
cérebro é capaz de gerar significados.”
E sou livre ou não? É claro que, como escreve o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades
espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia
falar em liberdade - “as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis.”
Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? “Como não é a
minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu,
quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu,
quem pensa”, escreveu o filósofo Th. Buchheim.
Neste domínio, nestes tempos de debates fundamentais à volta da Inteligência Artificial, a
questão decisiva é se algum dia teremos uma explicação científica da consciência. Mais: se
haverá máquinas com consciência.
O físico Carlos Fiolhais, apresentou recentemente num dos seus escritos semanais no Correio da
Manhã, precisamente à volta da Inteligência Artificial.uma famosa aposta precisamente sobre a
consciência: “Em 1994, em Tucson, nos Estados Unidos, realizou-se uma conferência intitulada
‘Em direcção a uma base científica da consciência’.” O neurocientista Christof Koch defendeu aí
que a consciência tinha uma base física: dar-se-iam disparos síncronos de neurónios 40 vezes
por segundo. O filósofo David Chalmers retorquiu, dizendo que era impossível descrever a
consciência por um fenómeno físico. Chamou ao entendimento da consciência ‘o problema
difícil’.”

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O Homem: questão para si mesmo 10. Vida boa: bondade e inteligência entrecruzadas Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 12 Outubro 2024

 O Homem: questão para si mesmo

10. Vida boa: bondade e inteligência entrecruzadas
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

12 Outubro 2024

O senhor Elliot fora operado a um tumor. Embora a operação tenha sido considerada um êxito,
depois dela as pessoas começaram a dizer que o senhor Elliot já não era o mesmo sofrera uma
mudança de personalidade drástica. Outrora um advogado de sucesso, o senhor Elliot tornou-se
incapaz de manter um emprego. A mulher deixou-o. Tendo desbaratado as suas poupanças, viu-
se forçado a viver no quarto de hóspedes em casa de um irmão. Havia algo de estranho em todo
este caso. De facto, intelectualmente continuava tão brilhante como antes, mas fazia um
péssimo uso do seu tempo. As censuras não produziam o mínimo efeito. Foi despedido de uma
série de empregos. Embora aturados testes intelectuais nada tivessem encontrado de errado
com as suas faculdades mentais, mesmo assim foi procurar um neurologista. António Damásio, o
neurologista que Elliot consultou, notou a falta de um elemento no reportório mental de Elliot:
ainda que tudo estivesse certo com a sua lógica, memória, atenção e outras faculdades
cognitivas, Elliot parecia não ter praticamente sentimentos em relação a tudo o que lhe
acontecera.

Sobretudo era capaz de narrar os trágicos acontecimentos da sua vida de uma forma
perfeitamente desapaixonada. Damásio ficou mais impressionado do que o próprio Elliot. A
origem desta inconsciência emocional, concluiu Damásio, fora que a cirurgia da remoção do
tumor cortara as ligações entre os centros inferiores do cérebro emocional e as capacidades de
pensamento do neocórtex. O pensamento de Elliot tornara-se igual ao de um computador:
totalmente desapaixonado.

Citei livremente Daniel Goleman em Inteligência Emocional. Afinal, o ser humano não é
redutível à lógica.

No que se refere à moral, Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt,
deixou escrito que não é possível fundamentar a moral de um modo exclusivamente lógico. Isso
foi visto também por Herbert Marcuse. Já no hospital, confessou ao seu amigo Jürgen
Habermas: “Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais
elementares: na compaixão”.

Juntamente com Espinosa, terá sido Hegel que levou mais longe o racionalismo: “O que é
racional é real; e o que é real é racional”, escreveu. Mas Ernst Bloch objectou que o processo do
mundo não pode desenrolar-se a partir do logos puro. Na raiz do mundo tem de estar um
intensivo da ordem do querer. Bloch, como também Nietzsche e Freud, foi beber a
Schopenhauer. Este foi um filósofo que sublinhou do modo mais intenso que, na sua ultimidade,
a realidade não é racional, pois há uma força que tem o predomínio sobre os planos e juízos da
razão: a vontade.

Aí está um dos motivos fundamentais por que, na tentativa da explicação dos fenómenos
humanos, a nível individual e social, temos sempre a sensação de que há uma falha no
encadeamento das razões. No ser humano, há a pulsão e o lógico, o afecto e o pensamento, a
emoção e o cálculo, o impulso e a razão. O próprio cérebro, que forma certamente um todo
holístico, tem três níveis; Paul D. Mac Lean fala dos três cérebros integrados num, mas também
em conflito: o paleocéfalo, o cérebro arcaico, reptiliano, o mesocéfalo, o cérebro da
afectividade, e o córtex com o neo-córtex, em conexão com as capacidades lógicas. A luz
racional é afinal apenas uma ponta num imenso oceano. Por isso, não só não conseguimos uma
harmonia permanente como é necessário estar constantemente de sobreaviso contra a ameaça
de descalabros e catástrofes mortais.

Por outro lado, porque o ser humano não é redutível à lógica computacional, é capaz de criações
artísticas divinas, do amor gratuito, do luxo generoso, da música a música, “arte ‘pura’ por
excelência”, “a mais ‘mística’, a mais ‘espiritual’ das artes é talvez simplesmente a mais corporal”,
como escreveu Pierre Bourdieu, e que não é preciso compreender para ficar emocionado e
extasiado. Perante uma orquestra, com instrumentos de sopro, de percussão, de corda...,
assistimos a uma sinfonia que nos atira para um lugar onde nunca estivemos, mas onde
quereríamos ficar sempre e um tempo sem tempo numa experiência de êxtase de eternidade...

Neste contexto, vem-me à memória uma história de há muitos anos. Naquela manhã, estacionei
o carro. Um jovem encostou-se imediatamente para a moedinha da praxe. À noite, de regresso,
saí do comboio e dirigi-me ao carro. O jovem da manhã apressou-se. Saudei-o:

Como foi o dia, senhor João?
Sabe o meu nome? Como é que sabe o meu nome?
Foi o senhor que mo disse esta manhã.
E não se esqueceu do meu nome? Ainda se lembra do meu nome?
Como vê, senhor João.
Nunca vou deixar que algum filho da p... lhe faça mal ao carro.

Aquele jovem já trôpego e caído teve um assomo de alegria e de quase redenção. Pela razão
simples de ser tratado como gente, de alguém se lembrar dele e o tratar pelo nome.

Mas também, mais uma vez, concluí: Não basta a bondade, uma bondade cega, o sentimento
em bruto. A bondade tem de ser inteligente. Viemos ao mundo por fazer e, livres, a única tarefa
que temos é fazermo-nos: fazendo o que fazemos, uns com os outros, estamos a fazer-nos. E
isso exige a bondade e a inteligência entrecruzadas. De facto, a bondade sem a inteligência não
abre caminhos novos e pode até causar imensos estragos; a inteligência sem a bondade pode
tornar-se cruel e fazer um sem-número de vítimas. Como está à vista.