sábado, 19 de outubro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. 11 - Máquinas com consciência? Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 19 Outubro 2024

O Homem: questão para si mesmo.
11 - Máquinas com consciência?

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

19 Outubro 2024

O que diz alguém, quando diz “eu”? Afirma-se a si mesmo como sujeito, autor das suas acções
conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, na abertura e em
contraposição a tudo.

Mas há observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar
para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?

Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nesta
direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da
inexistência do eu, do não-eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge
budista, deu-me, há anos, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o Rio Douro. O que é o
Rio Douro? Onde está o Rio Douro? Ele não existe como substância, pois não há senão uma
corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de
pensamentos fugazes, de vivências? O eu não passa de um nome para designar um continuum,
como nomeamos um rio.

Mas há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em
transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. O que se passa é que, não se tratando
de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível.

É, e será sempre, enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência. É claro
que o eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro
do corpo - o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os
processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que
haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu
Leibniz e é acentuado pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os
conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que
é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos
eléctricos e químicos no cérebro - processos neuronais da ordem da terceira pessoa - para a
experiência subjectiva na primeira pessoa?

Apesar de se não afastar, por princípio, a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão,
o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência
surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz
disse numa entrevista: “Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do
cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu, nem como é que o
cérebro é capaz de gerar significados.”
E sou livre ou não? É claro que, como escreve o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades
espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia
falar em liberdade - “as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis.”
Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? “Como não é a
minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu,
quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu,
quem pensa”, escreveu o filósofo Th. Buchheim.
Neste domínio, nestes tempos de debates fundamentais à volta da Inteligência Artificial, a
questão decisiva é se algum dia teremos uma explicação científica da consciência. Mais: se
haverá máquinas com consciência.
O físico Carlos Fiolhais, apresentou recentemente num dos seus escritos semanais no Correio da
Manhã, precisamente à volta da Inteligência Artificial.uma famosa aposta precisamente sobre a
consciência: “Em 1994, em Tucson, nos Estados Unidos, realizou-se uma conferência intitulada
‘Em direcção a uma base científica da consciência’.” O neurocientista Christof Koch defendeu aí
que a consciência tinha uma base física: dar-se-iam disparos síncronos de neurónios 40 vezes
por segundo. O filósofo David Chalmers retorquiu, dizendo que era impossível descrever a
consciência por um fenómeno físico. Chamou ao entendimento da consciência ‘o problema
difícil’.”

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