UM PAPA INQUIETO E INQUIETANTE
Frei Bento
Domingues, O.P.
26
Janeiro 2025
Quando me chegou a notícia da
Autobiografia do Papa Francisco não
fiquei muito entusiasmado. Não é uma figura que precise de se dar a conhecer.
É certo que, antes de ser eleito,
Bergoglio, fora da Argentina, não era muito conhecido, a não ser pelos outros
cardeais, com quem tinha de se reunir. Só depois de ser eleito, é que deu
sinais muito simples de que era possível esperar uma nova era no Vaticano.
Antes de dar a bênção, pediu a bênção ao santo povo fiel de Deus. Seguiu à
risca o conselho do cardeal brasileiro, Hummes: não te esqueças dos pobres que, aliás, já era o seu lema e as suas
raízes. Por isso, escolheu o nome de Francisco, o de Assis, e uma forma de
viver e habitar que não continuasse o estilo e a pompa dos seus antecessores.
Hoje, depois de ler e reler a
sua autobiografia, já não posso dizer que era desnecessária. Pelo contrário,
deve ser meditada esta espantosa forma de sabedoria. Nunca esquece as suas
raízes e a sua condição de pobre imigrante italiano.
Destaco o seu capítulo 12,
onde ele próprio narra que vinha de uma família radical. O meu avô materno tinha sido um
radical dos anos 1890, daqueles que deram vida à chamada Revolução do Parque que, no final do século XIX, provocou a queda
do presidente Miguel Juárez Celmán. De certo modo, uma família elitista; também
incongruentemente, dado que, de facto, não éramos ricos. Pobres que tinham
subido na escala social até à classe média e que, em algumas ocasiões, tinham
voltado a descer fragorosamente. Em 1946, enquanto em Itália, para a satisfação
do avô Giovanni, se votava contra a monarquia e era instituída a República, na
Argentina tinha início a longa, complexa e multiforme experiência do peronismo.
E os meus familiares eram antiperonistas, todos. O vice de Juan Domingo Perón
chamava-se Quijano e, nós, crianças, tínhamos aprendido a cantar: Perón, Quijano, dois porcos de mãos dadas!
Depois, com mais alguns anos, rumo à adolescença, comecei a ter curiosidade
acerca das reformas sociais que Perón estava a realizar e achei que tinha uma
certa simpatia por elas. Recordo um Domingo, teria quinze anos, num almoço em
casa dos avós maternos: estava um tio, Guillermo, que era empresário, um homem
bom, o marido da tia Catalina, que falava, dizia mal, falava contra Perón e
nunca mais se calava… Então, fartei-me de ouvir aquele disco riscado e
irritei-me: Mas tu não tens direito,
disse-lhe: Tu és rico, o que sabes tu dos
pobres, dos problemas e dos sofrimentos dos pobres? E depois atacava Evita:
É uma mulher de má reputação, dizia,
porque tinha sido atriz de cinema. Cruzaram-se os insultos, a discussão descontrolou-se.
Até que agarrei no sifão da água com gás e lho pulverizei na cara. A tia
levou-me para fora e, então é mesmo caso para dizê-lo, as águas acalmaram-se.
Depois, pedi descupa, obviamente. Porém, aquilo foi um pouco o baptismo público da minha paixão política,
embora a água não tenha acabado em cima de mim. De resto, na primeira
formulação da doutrina peronista existe uma ligação com a doutrina social da
Igreja. E Perón entregava a monsenhor Nicolás De Carlo, Bispo da resistência, na região de Chaco, os seus discursos para
que os lesse e lhe dissesse se estavam de acordo com aquela doutrina.
Sempre fui um inquieto da política, sempre. Na ex-Jugoslávia
dizia-se que com dois eslovenos se forma
um coro, com dois croatas um parlamento e com dois sérvios um exército. Na
Argentina, que em cada dois se forma um conflito interno.
«Foi sobretudo a minha primeira reacção manifesta em defesa
dos pobres. Uma tensão, um aspecto do social que, em seguida, procurei e
reencontrei cada vez mais na Igreja, na sua doutrina que nos interpela para que
lutemos contra todas as formas de injustiça, sem nos deixarmos
arrastar nem pela colonização ideológica, nem pela cultura da indiferença».
2.
Mário Bergoglio conheceu bem a violência da ditadura argentina. Além de grupos
guerrilheiros, intelectuais, estudantes, religiosos, organizações operárias e
sindicais que resistiram à última ditadura, destacou-se a actuação do movimento
pelos Direitos Humanos denominado Mães da
Praça de Maio, formado em 1977. Era constituído por mulheres que saíam às
ruas de Buenos Aires em busca dos seus filhos desaparecidos. Elas próprias
começaram a desaparecer!
No dia 8 de dezembro de 1977,
Esther – que tinha sido sua antiga professora que o marcou – foi sequestrada
por funcionários da polícia política, diante da igreja de Santa Cruz. Tinha 59
anos. Nunca mais seria vista por nenhum daqueles que a amavam.
Encontrei duas das filhas de
Esther, na nunciatura de Asunción, no Paraguai, no decurso da viagem apostólica
de Julho de 2015.
Abraçámo-nos. Os nossos jovens estão a fazer barulho, e
também você está a fazê-lo, disseram-me. Respondi que para continuar a
fazê-lo precisaria sempre da sua ajuda. Deram-me uma fotografia que retrata
Esther no laboratório Hickethier-Bachmann,
junto dos seus empregados, e entre eles com a minha bata branca, também estava
eu, com a cara de menino, o jovem Jorge.
Alguns testemunhos dos anos
seguintes referiram depois que Esther, juntamente com outras duas mães e as irmãs francesas, viveu dez
dias de torturas inumanas no sector Capucha da ESMA, a Escola de Mecânica da
Armada, o hediondo centro de detenção situado precisamente no coração de Buenos
Aires. No dia 17 ou 18 de Dezembro, as mulheres foram sedadas, embarcadas num
avião da Marinha e lançadas ao mar, vivas, em frente da costa de santa
Teresita, a duzentos quilómetros da capital, num dos muitos voos da morte,
habitual prática criminosa. A morte chegava pelo tormento[1].
3. Quem
julga que o Papa não se devia meter em política e na defesa intransigente dos
direitos humanos, como faz Bergoglio, devia escutar a passagem do Evangelho de
S. Lucas que é proclamado hoje, na Missa: «Jesus veio a Nazaré, onde tinha sido
criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e
levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías
e, desenrolando-o, encontrou a passagem em que está escrito: O
Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos
pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a
recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a
proclamar um ano favorável da parte do Senhor. Depois,
enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na
sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a
dizer-lhes: Cumpriu-se hoje esta passagem
da Escritura, que acabais de ouvir. Todos davam
testemunho em seu favor e admiravam-se com as palavras repletas de graça que
saíam da sua boca e diziam: Este não é filho de José?
(…) Diante destas palavras, todos na sinagoga se
enfureceram. E, levantando-se, expulsaram-no para fora da cidade»[2].
A preocupação
deste Papa são os pobres, os migrantes, os perseguidos, os refugiados, os
marginalizados, as vítimas das guerras. Não esquece a política do Evangelho.
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