segunda-feira, 9 de junho de 2025

Babel e o Pentecostes Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

Babel e o Pentecostes

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Quando, este Domingo, se fala do Espírito

Santo e do Pentecostes, é preciso tomar

consciência de que só se alcança a sua

compreensão adequada, contrapondo o

Pentecostes a Babel e à sua Torre, esse

acontecimento mítico tão conhecido, descrito

no livro primeiro da Bíblia, o Génesis. É um

mito, mas o mito transporta consigo uma

verdade fundamental, "dá que pensar", como

escreveu o grande filósofo do século XX, Paul

Ricoeur.

Diz a Bíblia que Javé, ao ver a maldade dos

homens sobre a Terra, maldade que não

deixava de crescer, se arrependeu de ter criado

o Homen e se sentiu magoado no seu coração.

Por isso, mandou o dilúvio, mas renovou a sua

aliança com Noé e com a criação inteira, aliança

figurada, ainda que de forma ingénua, no arco-

íris, unindo o Céu e a Terra. Mas, um dia,

continua a narrativa do Génesis, os homens

disseram: construamos uma cidade e uma Torre

cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste

projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho

insensatos, aquela hybris – desmesura – que os

gregos também condenavam, porque arrasta

consigo a maldição e a catástrofe, o abismo da

destruição. No meio da arrogância e da

desmesura, os seres humanos, em vez de se

compreenderem e unirem, guerreiam-se e

matam-se nos horrores da barbárie. Aí está o

sentido bíblico da confusão das línguas.

Babel e a sua Torre é um mito de uma

actualidade dramática e mesmo trágica. Note-

se que em capítulos anteriores à narrativa da

Torre de Babel, o livro do Génesis fala do plano

de Deus que quer que a Humanidade cresça e

se multiplique em «povos que de dispersaram

por países e línguas, por famílias e nações».

Assim, o que está em causa neste mito não é de

modo nenhum a dispersão pela Terra nem a

variedade das línguas, que constitui uma

riqueza. O mito põe a nu e denuncia o

imperialismo dominador de uns sobre os

outros, na incapacidade do descentramento de

si para colocar-se no lugar do outro e, no

respeito pela alteridade insuprimível, entrar em

diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é

uma advertência eloquente contra o desígnio

de dominação.

Precisamente em contraponto, noutro livro

da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a

descida do Espírito Santo, no dia do

Pentecostes. «De repente, ressoou, vindo do

céu, um som comparável ao de forte rajada de

vento, que encheu toda a casa. Viram então

aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que

se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um

deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e

começaram a falar outras línguas, conforme o

Espírito lhes inspirava que se exprimissem.» Ao

ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos

ficaram estupefactos, «pois cada um os ouvia

falar na sua própria língua». Atónitos e

maravilhados diziam: «Esses que estão a falar

não são todos galileus? Que se passa então,

para que cada um de nós os ouça falar na nossa

língua materna? Partos, medos, elamitas,

habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da

Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da

Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia

cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos,

cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas

nossas línguas, as maravilhas de Deus!».

No dia de Pentecostes, que deveria ser todos

os dias, na sua intenção mais profunda —, e

cada vez mais tomamos consciência disso — ,

quando se percebeu que o que tem de unir os

seres humanos é a justiça, o amor, a

solidariedade, a fraternidade, o respeito pela

igualdade, os seres humanos, todos, voltaram a

encontrar-se e entenderam-se. No Pentecostes,

restabelece-se a unidade desfeita com a Torre

de Babel. Trata-se, porém, da unidade na

diferença e da diferença na unidade. O amor de

Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E

abre horizontes novos de esperança à

Humanidade solidária.

Na actual situação do mundo globalizado e

mortalmente ameaçado, é urgência maior

pensar numa governança global (não digo um

Governo mundial, mas uma governança global),

para que o império da força da lei ponha limites

ao império da lei da força do mais forte — na

presente situação de crise global, vários pólos

do planeta se perfilam já com intenções de

domínio imperial global — e, neste contexto,

pensar no diálogo multicultural e inter-

religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma

atitude nova de respeito e cuidado da

Natureza, a nossa casa comum, a uma vida

menos centrada no consumo imoderado, no

ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser,

existir e conviver.

Dada a presente crise global, dramática ou

mesmo trágica, quando já sabemos que ou nos

salvamos todos ou nos perdemos todos, penso

que já se devia ter percebido que se impõe um

novo macro-paradigma para o desenvolvimento

e para as relações entre os povos, incluindo a

sua relação com a Natureza. Assim, sejamos

crentes ou não, é claro que isso implica uma

conversão, um espírito novo, que só pode ser o

Espírito Santo, espírito de verdade, de

liberdade, de igualdade, de fraternidade, de

alegria e paz.

Em toda a sua Históra, talvez nunca a

Humanidade tenha estado numa crise tão grave

como aquela que já se vive e se agrava cada vez

mais. É preciso tomar consciência da ameaça

de convulsões em cadeia e inclusivamente da

morte global. A Humanidade pode correr o

risco de cometer um suicídio colectivo.

Relembro uma entrevista recente na qual

um dos intelectuais mais influentes da

atualidade, Yuval Noah Harari, referia o que

qualquer um de nós, se não andar distraído,

constata: «Somos insaciáveis. Não interessa o

que tenhamos conseguido alcançar, queremos

sempre mais. Se temos um milhão, queremos

dois milhões, se temos dois milhões, queremos

dez milhões. O mesmo em relação ao poder:

nunca estamos satisfeitos com o que temos,

porque, na verdade, não sabemos como

traduzir esse poder em felicidade. Somos

milhares de vezes mais poderosos do que

éramos na Idade da Pedra, mas não somos

significativamente mais felizes. Se não

aprendermos a parar, a desacelerar, o mais

provável é que nos destruamos a nós e a todo o

ecossistema.» Concordando com Harari, julgo

que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal

escreveu que a constituição do ser humano

mora ali algures entre o nada e o infinito (le

rien et l´infini). Assim, compreendemos que,

dada a dinâmica humana insaciável, a única

verdadeira tentação, desde o princípio, como se

escreve no Génesis, é querer “ser como Deus”.


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