Homenagem a Francisco:
A dívida para com as vítimas inocentes
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Recordando Francisco, o Papa de uma
Igreja aberta a todos e que até ao fim quis
estar próximo dos últimos, fica aí este meu
texto sobre a dívida incomensurável da
História para com as vítimas inocentes.
Na sua encíclica sobre a esperança — Spe
salvi (Salvos em esperança) —, Bento XVI, o
Papa antecessor de Francisco, debruça-se
sobre uma pergunta decisiva – “a pergunta
2
fundamental da Filosofia” (Max
Horkheimer) : o que podem esperar as
incontáveis vítimas inocentes da História?
Quem lhes fará justiça? As vítimas
inocentes clamam, um grito sem fim e
ensurdecedor percorre a História.
No mundo moderno, conduzido em
grande parte pela ideia de progresso,
ergueu-se, nos séculos XIX e XX, um
ateísmo moral por causa das injustiças do
mundo e da História. “Um mundo no qual
há tanta injustiça, tanto sofrimento dos
inocentes e tanto cinismo do poder, não
pode ser obra de um Deus bom”.
Quase se poderia dizer que se é ateu ad
majorem Dei gloriam, para a maior glória de
Deus, como se, perante o horror do mundo,
a justificação de Deus fosse não existir. É-se
ateu por causa de Deus, que é preciso
recusar por causa da moral.
3
Afastado Deus, deve ser o Homem a
estabelecer a justiça no mundo. Mas não
será esta uma pretensão arrogante e
intrinsecamente falsa? “Um mundo que tem
de criar a sua justiça por si mesmo é um
mundo sem esperança. Ninguém nem nada
responde pelo sofrimento dos séculos”,
escreveu o Papa.
Aqui, Bento XVI apela para a Escola
Crítica de Frankfurt, nomeadamente para
Max Horkheimer e Theodor Adorno, que
viveram filosoficamente a inconsolável
“tristeza metafísica” da impossibilidade de
fazer justiça às vítimas da História. De facto,
mesmo supondo, no quadro do marxismo e
da ideia do progresso moderno, que algum
dia fosse possível a edificação de uma
sociedade finalmente justa, transparente e
reconciliada, ela não poderia ser feliz. A
razão é simples: ou essa sociedade se
lembrava de todas as vítimas do passado,
4
que não participam dela, e então seria
atravessada pela infelicidade, ou não se
interessava por essas vítimas, mas então
não era humana, porque insolidária.
Horkheimer e Adorno exprimiram uma
filosofia em tenaz: por um lado, não podiam
acreditar num Deus justo e bom; por outro,
há uma verdade da religião, apesar de todas
as suas traições no conluio com o poder e os
vencedores: a religião “no bom sentido” é,
segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável,
sustentado contra a realidade fáctica, de que
esta mude, que acabe o desterro e chegue a
justiça”. Não se trata de um desejo egoísta,
mas da esperança contrafáctica de que a
realidade dominante da injustiça não tenha
a última palavra. Daí, o “anelo do
totalmente Outro”, o “anelo da justiça
universal cumprida”, “a esperança de que a
injustiça que atravessa a História não
permaneça, não tenha a última palavra”.
5
Esta esperança tem de traduzir-se numa
práxis solidária tal que “não se possa pensar
que não existe um Além”. Nesta práxis, está
implicado o pensamento do Absoluto, não
para afirmá-lo, mas como anelo de que o
finito e o mundo da injustiça não sejam a
ultimidade e o definitivo.
Também neste sentido, Adorno escreveu
que “o pensamento que se não decapita
desemboca na Transcendência”. Frente às
aporias da razão, neste domínio, a única
filosofia legítima seria “o intento de
contemplar todas as coisas como aparecem
à luz da redenção”. Embora se não possa
afirmar nada para lá da imanência, a
pergunta pela esperança truncada das
vítimas, que acusam o mundo da História
dos vencedores, obriga a pensar para lá dos
limites da imanência, colocando a pergunta
pelo Absoluto enquanto pergunta pela
justiça universal.
6
Em diálogo com a Escola Crítica de
Frankfurt, Bento XVI reconhecia que a
necessidade individual da realização plena
e da imortalidade do amor já é “um motivo
importante para crer que o Homem está
feito para a eternidade”, “mas só o
reconhecimento de que a injustiça da
História não pode de modo nenhum ter a
última palavra” convence da necessidade
da ressurreição dos mortos e da vida eterna.
Na Sexta-Feira Santa, como já aqui
escrevi, lembra-se Cristo na cruz, que
morre, inocente, e gritando uma oração em
pergunta in-finita, que atravessa os séculos:
“Meu Deus, meu Deus, porque é que me
abandonaste?” Os cristãos acreditam que o
Deus do amor, seu Pai — o Papa Francisco
escreveu que “o nome de Deus é
Misericórdia” —, respondeu, ressuscitando-
o dos mortos, dando assim esperança ao
clamor das vítimas da História.
7
Francisco ainda saudou a multidão no
passado Domingo, Festa da Páscoa. Morreu
na manhã de Segunda-Feira, Segunda-Feira
de Páscoa. Adeus, Francisco.
Sábado, 26 de Abril de 2025
Sem comentários:
Enviar um comentário