segunda-feira, 28 de abril de 2025

1 Crónicas PÁRA E PENSA Homenagem a Francisco - Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Homenagem a Francisco:

A dívida para com as vítimas inocentes

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Recordando Francisco, o Papa de uma

Igreja aberta a todos e que até ao fim quis

estar próximo dos últimos, fica aí este meu

texto sobre a dívida incomensurável da

História para com as vítimas inocentes.

Na sua encíclica sobre a esperança — Spe

salvi (Salvos em esperança) —, Bento XVI, o

Papa antecessor de Francisco, debruça-se

sobre uma pergunta decisiva – “a pergunta

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fundamental da Filosofia” (Max

Horkheimer) : o que podem esperar as

incontáveis vítimas inocentes da História?

Quem lhes fará justiça? As vítimas

inocentes clamam, um grito sem fim e

ensurdecedor percorre a História.

No mundo moderno, conduzido em

grande parte pela ideia de progresso,

ergueu-se, nos séculos XIX e XX, um

ateísmo moral por causa das injustiças do

mundo e da História. “Um mundo no qual

há tanta injustiça, tanto sofrimento dos

inocentes e tanto cinismo do poder, não

pode ser obra de um Deus bom”.

Quase se poderia dizer que se é ateu ad

majorem Dei gloriam, para a maior glória de

Deus, como se, perante o horror do mundo,

a justificação de Deus fosse não existir. É-se

ateu por causa de Deus, que é preciso

recusar por causa da moral.

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Afastado Deus, deve ser o Homem a

estabelecer a justiça no mundo. Mas não

será esta uma pretensão arrogante e

intrinsecamente falsa? “Um mundo que tem

de criar a sua justiça por si mesmo é um

mundo sem esperança. Ninguém nem nada

responde pelo sofrimento dos séculos”,

escreveu o Papa.

Aqui, Bento XVI apela para a Escola

Crítica de Frankfurt, nomeadamente para

Max Horkheimer e Theodor Adorno, que

viveram filosoficamente a inconsolável

“tristeza metafísica” da impossibilidade de

fazer justiça às vítimas da História. De facto,

mesmo supondo, no quadro do marxismo e

da ideia do progresso moderno, que algum

dia fosse possível a edificação de uma

sociedade finalmente justa, transparente e

reconciliada, ela não poderia ser feliz. A

razão é simples: ou essa sociedade se

lembrava de todas as vítimas do passado,

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que não participam dela, e então seria

atravessada pela infelicidade, ou não se

interessava por essas vítimas, mas então

não era humana, porque insolidária.

Horkheimer e Adorno exprimiram uma

filosofia em tenaz: por um lado, não podiam

acreditar num Deus justo e bom; por outro,

há uma verdade da religião, apesar de todas

as suas traições no conluio com o poder e os

vencedores: a religião “no bom sentido” é,

segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável,

sustentado contra a realidade fáctica, de que

esta mude, que acabe o desterro e chegue a

justiça”. Não se trata de um desejo egoísta,

mas da esperança contrafáctica de que a

realidade dominante da injustiça não tenha

a última palavra. Daí, o “anelo do

totalmente Outro”, o “anelo da justiça

universal cumprida”, “a esperança de que a

injustiça que atravessa a História não

permaneça, não tenha a última palavra”.

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Esta esperança tem de traduzir-se numa

práxis solidária tal que “não se possa pensar

que não existe um Além”. Nesta práxis, está

implicado o pensamento do Absoluto, não

para afirmá-lo, mas como anelo de que o

finito e o mundo da injustiça não sejam a

ultimidade e o definitivo.

Também neste sentido, Adorno escreveu

que “o pensamento que se não decapita

desemboca na Transcendência”. Frente às

aporias da razão, neste domínio, a única

filosofia legítima seria “o intento de

contemplar todas as coisas como aparecem

à luz da redenção”. Embora se não possa

afirmar nada para lá da imanência, a

pergunta pela esperança truncada das

vítimas, que acusam o mundo da História

dos vencedores, obriga a pensar para lá dos

limites da imanência, colocando a pergunta

pelo Absoluto enquanto pergunta pela

justiça universal.

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Em diálogo com a Escola Crítica de

Frankfurt, Bento XVI reconhecia que a

necessidade individual da realização plena

e da imortalidade do amor já é “um motivo

importante para crer que o Homem está

feito para a eternidade”, “mas só o

reconhecimento de que a injustiça da

História não pode de modo nenhum ter a

última palavra” convence da necessidade

da ressurreição dos mortos e da vida eterna.

Na Sexta-Feira Santa, como já aqui

escrevi, lembra-se Cristo na cruz, que

morre, inocente, e gritando uma oração em

pergunta in-finita, que atravessa os séculos:

“Meu Deus, meu Deus, porque é que me

abandonaste?” Os cristãos acreditam que o

Deus do amor, seu Pai — o Papa Francisco

escreveu que “o nome de Deus é

Misericórdia” —, respondeu, ressuscitando-

o dos mortos, dando assim esperança ao

clamor das vítimas da História.

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Francisco ainda saudou a multidão no

passado Domingo, Festa da Páscoa. Morreu

na manhã de Segunda-Feira, Segunda-Feira

de Páscoa. Adeus, Francisco.

Sábado, 26 de Abril de 2025

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