A PÁSCOA. QUE
PÁSCOA?
Frei Bento Domingues,
O.P.
20 Abril 2025
1. Hoje, em Portugal como em vários outros países, é
dia de Páscoa. A que está reduzida esta festa? Depende da comunidade religiosa
que a celebra. A comunidade judaica e as várias comunidades cristãs – católica,
ortodoxa, protestantes – têm motivações e rituais diferentes. Não podemos esquecer
que o país é cada vez mais diverso sob o ponto de vista religioso ou sem
religião ritual[1].
Também sobrevivem, em várias zonas do país, celebrações populares da Semana
Santa. Para muita gente, a Páscoa é, simplesmente, um tempo de férias, de
viagens, turismo.
O termo páscoa é a transcrição grega e latina do original
hebraico pesah e do aramaico pasha’ que remetem para o verbo pasah,
que significa passar, saltar.
A celebração da festa da Páscoa está no cerne da experiência
bíblica do Antigo Testamento (AT), porque constitui o memorial do acontecimento
fundador da história do chamado povo de Deus – o êxodo e a aliança – e da auto comunicação
do nome do próprio Deus – IAVÉ – como sinal tangível da sua presença no meio do
povo.
A celebração do rito pascal, tal como nos transmite o livro
do Êxodo[2], reúne dois ritos
procedentes, com toda a probabilidade, de épocas distintas: o rito da imolação
do cordeiro primogénito, que constituía uma festa dos pastores, que na
primavera aspergiam com o sangue de um cordeiro as vigas das suas tendas, para
proteger os homens e os animais dos espíritos maus. E o rito dos pães ázimos,
rito agrícola da primavera, em que os camponeses ofereciam os primeiros frutos
das suas colheitas. Estes dois ritos ficam unificados e situados no contexto do
êxodo do Egipto e do estabelecimento da aliança com IAVÉ.
Desta maneira, o antigo rito nómada do sangue do cordeiro converte-se
no sinal e no rito memorial da passagem do Senhor e da passagem do povo para a
liberdade. Com efeito, a série de prescrições que são dadas no livro do
Êxodo é concluída com a solene declaração: É a páscoa do Senhor (…). Este
dia será para vós um memorial. Vós o celebrareis como festa do Senhor, de
geração em geração o celebrareis como rito perene.
A celebração cristã da Páscoa tem raízes judaicas, raízes
bíblicas, mas é um acontecimento radicalmente cristão de superação do judaísmo,
com três momentos significativos, o Tríduo Pascal: a chamada Última Ceia, a
Cruz, Vigília Pascal e Domingo da Ressurreição. O universalismo cristão nasce
da Páscoa, procura fazer de todos os povos um só povo[3]. Jesus veio para
congregar todos os filhos de Deus dispersos[4].
2. A chamada Última Ceia de Jesus[5] com os discípulos era uma
ceia nascida no meio judaico. No entanto, os textos apresentam-na, não como uma
festa familiar judaica, mas como uma despedida de Jesus com os seus 12
discípulos.
Por isso, é vulgar
dizer que, na última ceia, só
estavam homens. Conhecendo, porém, o costume dessa época, (não contar mulheres e
crianças: Mt 14,21; 15, 38) e a natureza da própria Ceia Pascal (uma ceia ritual, mas familiar, onde todos estão
presentes (Ex 12, 1-14), não se poderá, facilmente, “garantir” que estavam só
os homens, quando a família de Jesus era constituída por todos e por todas que O seguiam desde a Galileia. Não
contar mulheres e crianças não significa que elas não estivessem na última
ceia.
Há uma cena espantosa nos Evangelhos sobre as relações
familiares. Estando Jesus em missão, chegaram a sua mãe e os seus irmãos e,
ficando lado de fora, mandaram-no chamar. Jesus responde com uma interrogação: Quem é minha mãe e meus irmãos? E, percorrendo
com o olhar os que estavam sentados à
sua volta, disse: Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de
Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe[6].
Isto significa que a sua família
biológica tem de se converter ao discipulado de Jesus. O que conta no Novo
Testamento não é a condição biológica, mas a opção pelo caminho aberto por
Jesus.
As narrativas da crucifixão mostram que os discípulos não
tiveram atitude de discípulos, fugiram. Quem ficou? Perto da cruz de Jesus[7],
permaneciam de pé sua mãe, a irmã de sua
mãe, Maria, mulher de Clopas e Maria Madalena. Não há nenhum homem nessa
lista, nem sequer a designação de discípulo
amado. Continuando, Jesus, então,
vendo sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem amava, disse à sua mãe: Mulher,
eis o teu filho! Depois disse ao discípulo: Eis a tua mãe! E a partir dessa
hora, o discípulo recebeu-a na sua casa.
Entre as várias narrativas
da Ressurreição, opto por um fragmento do Evangelho de S. João[8].
A originalidade da narrativa deste Evangelho é o facto de ter sido o próprio
Jesus Ressuscitado que constituiu Maria Madalena a evangelizadora dos que
deveriam ser os evangelizadores. É ela a Apóstola dos apóstolos.
Esta expressão recebemo-la de Hipólito, bispo de Roma (século III) e
Santo Agostinho (século V), nada complacente com as mulheres, dirá que «os
apóstolos, futuros evangelistas, receberam das mulheres o anúncio do
Evangelho». Nada mais conforme com os textos sobre a ressurreição: Vai e diz aos meus irmãos… Maria Madalena
foi anunciar aos discípulos: “Vi o Senhor” e as coisas que ele lhe disse.
A confusão em que
ela vive é vencida pelo próprio Jesus que a envia a congregar os discípulos
dispersos que agiram como quem não tem esperança perante a morte.
Este acontecimento
central, que devia afirmar o papel primordial das mulheres na Igreja, foi incompreensivelmente
esquecido[9].
3. Em todos os lugares, seja de que
país for, a tarefa desta Páscoa não deveria ser só celebrar os ritos, mas
alterar o rumo das sociedades, a situação das vítimas da guerra, da fome, da
falta de uma ecologia integral.
A questão que se nos devia impor é esta: este mundo não poderá
ser de outra maneira? A própria noção de criação é a de colocar o mundo sob a
nossa responsabilidade.
Não se pode perder de vista que só nos salvamos através da
salvação dos outros, através da convivialidade, através de tudo o que faz do ser
humano o companheiro do outro, o irmão do outro, porque a expressão máxima
do diálogo com Deus é sempre estender a mão a quem precisa[10].
O Crucificado, o rejeitado por uma coligação de interesses,
abriu, a todos, o caminho e o processo da ressurreição. Jesus, ao perdoar aos
próprios inimigos, ao entregar nas mãos do Deus vivo aqueles que o entregavam à
morte, consumou a sua insurreição contra tudo o que degrada e separa os seres
humanos, isto é, o poder do ódio, o poder da morte. A partir daquele momento
Jesus Cristo era, é e será para sempre uma vida dada.
Que a celebração da Ressurreição de Cristo nos ajude a
procurar os bons caminhos para vencer as raízes dos ódios que ensanguentam a
terra.
A todos uma santa Páscoa!
[1]
Cf. Alfredro Teixeira, Religião na sociedade portuguesa, FFMS, 2019, p. 56.
[2]
Cf. Êxodo 12, 1-13; 16
[3]
Cf. Ef 2
[4]
Jo 11,52
[5]
Mc 14, 12-25 e par. Jo 13 é substituída pelo Lava pés.
[6]
Mc 3, 31ss e par
[7]
Jo 19, 25-27
[8]
Cf. Jo 20, 1-18
[9]
Cf. A. Cunha de Oliveira, Jesus de Nazaré e as Mulheres, Instituto
Açoriano da Cultura, 2011 e Maria Julieta Mendes Dias | Paulo Mendes Pinto, Maria
Madalena, a Apóstola dos Apóstolos, Edições Universitárias Lusófonas, 2023,
67-94
[10]
Cf. Daniele Mencarelli, Tudo Pede Salvação, Paulinas Edirora, 2025
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