domingo, 22 de junho de 2025

Celebrar a Ceia de Jesus e o Reino da Filadélfia Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

Celebrar a Ceia de Jesus

e o Reino da Filadélfia

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Quantos portugueses e portuguesas

saberão que o feriado de anteontem,

Quinta-Feira, é por causa de um banquete: a

festa do Corpo de Deus, precisamente

lembrando a última Ceia de Jesus!

Os primeiros cristãos reuniam-se nas

suas casas, e, recordando essa Ceia e os

banquetes de Jesus na sua vida terrena

enquanto sinal da chegada do Reino da

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Filadélfia (Reino dos amigos e irmãos, que é

isso que quer dizer filadélfia), celebravam

um ágape em sua memória — uma refeição

festiva e fraterna.

Foi só mais tarde que a missa começou a

ser concebida como sacrifício. Com essa

perspectivação cultual sacrificial, apareceu

o sacerdote, e, com a sua celebração diária, a

obrigação do celibato, pois o sacerdote está

separado, à parte: tocando no Corpo do

Senhor não pode tocar a profanidade

impura do corpo da mulher. Na missa,

havia uma imolação e matação de Cristo,

embora se discutisse se essa imolação era

real, moral, mística, ou sacramental.

O sacerdote tinha o poder de "trazer Cristo

à Terra", realizando o milagre da

transubstanciação do pão e do vinho, que

deixavam, por isso mesmo, de ser pão e

vinho.

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Esta concepção arrastou consigo vários

equívocos. Em primeiro lugar, uma

concepção substancialista e coisista da

presença de Cristo. O filósofo Hegel viu

bem o perigo desta coisificação: referindo-se

à celebração da Eucaristia, escreveu que,

segundo a representação católica, "a hóstia

— essa coisa exterior, sensível, não

espiritual — é, mediante a consagração, o

Deus presente — Deus como coisa."

Deste modo, a Eucaristia deixou de ser a

celebração festiva em que todos

participavam activamente, para tornar-se

sacrifício objectivo autónomo, que o padre

até podia celebrar sozinho e que oferecia

pelas almas do purgatório e muitas outras

intenções, com uma remuneração

monetária... De agora em diante, era,

portanto, possível ir à missa — repare-se

nas expressões “ir à missa”, “assistir à

missa” — e não comungar: está-se na missa,

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mas de fora, ignorando que a celebração da

memória de Jesus implica uma real e

autêntica conversão, que consiste na

entrada activa na dinâmica do seu Reino:

Reino da paz, da reconciliação, do amor, da

fraternidade e da verdade. Chegou-se a esta

distorção: é-se convidado para um

banquete, mas é de fora que se assiste à

festa. Por isso é que há o sem-sentido das

"missas oficiais" a que assistem agnósticos,

ateus e indiferentes...

Paradoxalmente, com a interpretação

coisista da presença de Cristo, contra o

sentido profundo do que São Paulo escreve

aos Coríntios — "quem come do pão e bebe

do cálice do Senhor indignamente torna-se

réu do corpo e do sangue do Senhor" —,

muitos cristãos, indo à missa e não

comungando, vêem-se libertos da urgência

da conversão ao projecto da vida de Jesus.

Ora, precisamente nesta não conversão, é

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que, segundo São Paulo, nos tornamos réus

do corpo e do sangue do Senhor, isto é,

culpados da sua morte: de facto, o que São

Paulo condena na comunidade de Corinto

são as suas divisões e que, enquanto uns

comem lautamente, outros passam fome.

É, pois, urgente e necessário ser

consequente: uma vez que se deve partir do

pressuposto de que quem vai à missa — a

própria expressão “ir à missa” diz bem a

passividade do acto — é porque quer

sinceramente entrar no espírito de Jesus,

não se compreende que não comungue.

Nesta mesma dinâmica, a comunhão

também não deveria ser negada às crianças,

que, à sua maneira, participam, com a

família, na celebração da Ceia do Senhor:

nas nossas festividades familiares, também

as não excluímos.

Quando os cristãos se reúnem em

Eucaristia, celebram festivamente o que

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Jesus foi e é, a sua vida, a sua morte, a sua

ressurreição e o seu Reino — o seu Reino já

presente, mas anunciando e esperando a

sua consumação.

P. S.: Amanhã, Domingo, realiza-se o

funeral do bom amigo Padre José Martins

Júnior. Evidentemente, causa sempre

tristeza a partida de um amigo. Mas o

cristão crê com confiança radical racional

que, na morte, ele não caiu no nada mas

entrou na plenitude da vida em Deus e que

havemos de reencontrar-nos.

As celebrações eucarísticas a que presidia

ficam na memória pela alegria e a

participação viva, activa, de todos,

incluindo os mais jovens. Cristão convicto,

Martins Júnior combateu sempre pela

promoção das pessoas, a justiça social e a

fraternidade.

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Tenho muita satisfação em ter

contribuído para a revogação em 2019 pelo

bispo da Diocese do Funchal, Nuno Brás, da

sua suspensão ‘a divinis’ (proibição de

exercer funções sacerdotais).

Continuará a ecoar aquela sua palavra:

“Servi o Povo de Deus e não a Igreja

Católica”.

Sábado, 21 de Junho de 2025

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