segunda-feira, 11 de junho de 2018

Os abafadores - Paulo Fafe, D Minho

Muita gente se espantou pelo PCP, pela voz de Jerónimo
de Sousa, ter votado contra os projetos
de lei sobre a eutanásia. O bispo de Leiria Fátima,
sua eminência D. António Marto, afirmou:
“a posição do PCP na eutanásia surpreende mas
é humanista”. Claro que é um partido humanista
na estrita ideia de que o homem é o centro principal de toda a
existência. É um humanismo sem Deus ou, se quisermos, coloca
o homem no centro de todas as coisas sem necessidade de interferência
divina. Para os que se apressam a tirar paralelismo entre
o humanismo cristão e humanismo ateu, aqui fica o alerta e a reflexão.
Na discussão parlamentar sobre a legalização da eutanásia,
um dos deputados, referiu-se a uma personagem de Miguel Torga
em Novos Contos da Montanha, o Alma Grande. Nesse conto,
o Alma Grande tem o nome de abafador; era chamado pelos familiares
para esganar os doentes que, estando na hora da morte,
demoravam a morrer. No conto, o moribundo chamava-se Isaac.
O médico tinha recomendado à sua mulher que lhe fosse encomendando
o caixão. Quando o abafador entrou no quarto, o Isaac
gritou-lhe, “não… não… ainda não”. Hesitou o abafador e desistiu.
O Isaac “vinte dias depois comia o caldo ao lume como se nada
tivesse sido”. O conto não acaba assim, mas assim fica em suspenso,
pela minha parte. Daqui se conclui que Miguel Torga, que era
médico de profissão, disse-nos, com a sua sensibilidade de escritor,
que a luta pela vida vale a pena, mesmo depois de desenganado
pela ciência médica. Os quatro projectos de legalização da
eutanásia, são abafadores como o Alma Grande. As razões para o
abafamento pressupõem causas piedosas para com o sujeito e respeito
pelo seu livre arbítrio. Que livre arbítrio há nos dementes,
nos catatónicos, nos em coma profunda? Qual a diferença entre
a eutanásia e este abafador de Miguel Torga? Também ele matava
depois da desistência da ciência; também ele matava com o consentimento
de familiares e da própria mulher, também ele matava
por consentimento social. Esta questão de quem determina
a hora da morte, é tão assustadora em seus contornos morais
e existenciais, que não sei como alguém tem uma convicção tão
forte assim, que possa arriscar ser juiz. Juiz ou carrasco? “ser ou
não ser”, diria o dramaturgo Shakespear. Aliviar um sofrimento
sem cura é um ato de misericórdia ou um egoísmo de quem não
quer sofrer por ver sofrer? Mas ser capaz de chamar um matador
para eliminar um familiar em sofrimento, só porque o seu sofrimento
é o meu sofrimento, é de um egoísmo sem limite; não pode
deixar de acrescentar sentimentos de culpa para quem disser,
«desligue a máquina, mate o meu filho». E este debate prosseguirá
dentro da próxima legislatura. Para que o debate tenha o contributo
de todos nós, torna-se honesto e sincero e democrático
que cada partido diga, em seus programas, se sim se não à legalização
da eutanásia, suicídio ou morte assistida. Assim, os votantes,
ao escolherem o partido em que vão votar, saberão que estão
a dar ou não autorização para a morte legal. O Alma Grande
era um abafador oficial, legalizado pelos usos e costumes daquelas
gentes, socialmente aceite como um bem; nós teremos de saber
se queremos um abafador legal ou não. “Eis a questão”. Para
esclarecimento duma possível controvérsia: não coloco nesta discussão,
sentimentos religiosos, filosóficos, ideológicos, agnósticos
ou ateus; nem criacionismo, nem evolucionismo; o meu pensamento
emerge puro, límpido e inocente da sensibilidade e respeito
que tenho pela vida. Para mim ela é uma essência e não apenas
um percurso. Quebrar o frasco não mata a essência.

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