domingo, 7 de novembro de 2021

PAPA FRANCISCO, CIDADÃO DO MUNDO (1) Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Disseram-me, há dias, com ar de censura, que eu estava sempre a denunciar a papolatria, quando pontificavam outros Papas, mesmo os mais recentes. Agora, pelo contrário, manifesto uma devoção desmedida pelo Papa Francisco.

 Esse meu leitor tem razão, mas só até certo ponto. Já me tinha acontecido com João XXIII. Quando eu estava em Roma, não perdia nenhuma das suas audiências públicas porque via nele uma aparição divina em carne e osso, na mais profunda e ilimitada fraternidade. Era dele que Eduardo Lourenço dizia, com toda a razão: santo subito. Muito antes dessa expressão ser usada a propósito e a despropósito. Para mim, João XXIII era o pároco que abraçava o mundo inteiro com amor e humor.

Quando Bergoglio foi eleito Papa, escrevi um artigo, no meio da euforia geral, a dizer que não acreditava nele. Provocou um alarido porque parecia dar a ideia de que eu não alinhava nem com as suas ideias nem com o estilo da sua prática pastoral. Nada mais falso. Tive de explicar que o terminal da virtude teologal da fé é o mistério insondável de Deus e não uma criatura por mais santa que se apresente. Aliás, como cristãos não acreditamos nos enunciados do Credo, mas naquele para quem eles apontam. Continuo a rejeitar a papolatria e o Papa Francisco é quem a tem fustigado com mais veemência.

S. Tomás de Aquino observou que não era correcto dizer, creio na santa Igreja Católica, como se reza no Credo, por uma razão simples: a Igreja não é divina, não é Deus. Só é possível aceitar essa afirmação do Credo, interpretando-a como habitada pelo Espírito Santo que santifica a Igreja. Com este pressuposto, pode usar-se a expressão corrente sem erro[1].

Joe Biden, católico, é presidente dos EUA, mas não é o presidente apenas dos católicos. É o segundo caso na história dos presidentes dos EUA. O outro foi John Kennedy. Acontece que certos católicos, padres e bispos, queriam que lhe fosse negada a Comunhão Eucarística por causa das suas posições em relação à lei da despenalização do aborto. Ele   próprio já declarou que, pessoalmente, se opõe ao aborto, mas não deve impor as suas opiniões como presidente dos EUA. 

A indignação de um conjunto de bispos contra o Papa Francisco cresceu com o atrevimento de, não só ter recebido Joe Biden, mas sobretudo por o reconhecer como verdadeiro católico e de lhe dizer para continuar a comungar. Segundo os meios de comunicação, Biden agradeceu ao Papa a sua defesa dos mais pobres e daqueles que lutam contra a perseguição, a fome e o conflito, além da liderança na luta contra a mudança climática e o fim da pandemia por meio da vacinação e de uma recuperação económica igualitária.

De qualquer modo, a Comunhão Eucarística não é um prémio, como várias vezes disse o Papa Francisco. A celebração da Missa não é realizada por santos canonizados, mas por pecadores. Do princípio ao fim, os cristãos confessam que precisam da misericórdia de Deus, isto é, não querem continuar na mesma. Desejam receber força e coragem para viverem os dias bons, os dias maus e os dias cinzentos. Recebem a realidade viva de Cristo, que passou fazendo o bem, para poderem seguir o caminho de conversão permanente. A comunhão é um viático, a melhor das companhias.

2. Bergoglio foi eleito Papa a 13 de Março de 2013. Já existem alguns balanços do que foram estes oito anos. Começou o seu pontificado a partir da base da pirâmide para a inverter. Por isso, centrou-se nas periferias existenciais e geográficas do mundo, para que a originalidade da alegria do Evangelho chegasse realmente a todos. A Igreja, pela qual Bergoglio iria continuar a lutar, é uma Igreja em saída, de portas abertas, um hospital de campanha, sem temer a revolução da ternura e o milagre da delicadeza.

A Vatican News[2] tentou enunciar e caracterizar as intervenções do percurso pastoral do Papa, ano a ano. Nos limites desta crónica, só podemos destacar alguns passos dessa longa caminhada que muitos julgavam que seria muito curta, devido à idade e à saúde precária. O que sempre o acompanhou e acompanha, como uma obsessão, é o cuidado do outro, sobretudo dos mais esquecidos e descartáveis.

Começou (2013) por trocar a Residência Apostólica pela Casa de Santa Marta, onde passou a morar e onde podia encontrar as pessoas mais diversas para partilhar a mesa e a Eucaristia. Publicou logo o manifesto do seu pontificado, Evangelii gaudium: o movimento cristão só tem sentido se for a procura da alegria para todos. Foi também, nesse ano, que partiu para a reforma da Cúria Romana, revendo a sua Constituição.

Ainda em 2013, realizou quatro viagens apostólicas com a marca que seria a de todo o pontificado: a Lampedusa, Rio de Janeiro (JMJ), Ilha da Sardenha e Assis.

Desencadeou, no ano de 2014, um movimento em torno da problemática das famílias que culminou na Exortação Apostólica Amoris Laetitia (Alegria do Amor) e provocou muita polémica. Criou a importante Comissão Pontifícia para a Tutela de Menores.

A acção diplomática levou-o à iniciativa de realizar o Encontro com Shimon Peres (Israel) e Mahmoud Abbas (Palestina), nos Jardins do Vaticano. Promoveu o restabelecimento das relações diplomáticas entre os EUA e Cuba.

Em 2015, o grande acontecimento foi a publicação da Encíclica Laudato Si’ sobre a ecologia integral para que todos cuidemos da Casa Comum, em que a preocupação com a natureza, a equidade com os pobres e o compromisso da sociedade são inseparáveis: é São Francisco a falar no século XXI e Bergoglio, o cidadão de todos os mundos, levou à ONU a mensagem central desta Encíclica.

2016 é o ano dedicado a descobrir que Deus manifesta o seu poder, perdoando: Deus é Misericórdia, não é o deus dos exércitos. Aconteceu também algo de inédito: o Papa encontrou-se, em Cuba, com o Patriarca de Moscovo e de toda a Rússia, Kirill e assinaram uma Declaração conjunta sobre as questões mais prementes da actualidade.

Em 2017, na sede da ONU, a Santa Sé foi um dos primeiros países a assinar e ratificar o Tratado sobre proibição das Armas nucleares. Foi também instituído o Dia Mundial dos Pobres contra a pobreza.

2018 ficou marcado por dois acontecimentos: a nível pastoral, foi o Sínodo dos Jovens, que provocou a Exortação Apostólica, Christus vivit (2019); a nível diplomático, destaca-se o Acordo Provisório entre a Santa Sé e a República Popular da China, assinado em Pequim, a 22 de Setembro, sobre a nomeação dos Bispos. Em 2020, o acordo foi renovado por dois anos.

2018 foi também o ano das denúncias sobre os abusos sexuais de menores na Igreja Católica. A luta contra os abusos continuou, em 2019, com um Encontro de Cúpula, no Vaticano, sobre a tutela de menores, do qual nasceu o Motu próprio, Vos estis lux mundi, que obriga os clérigos e religiosos a denunciar os abusos: cada diocese deve ter um sistema, facilmente acessível ao público, para acolher as denúncias. Além do mais, em Dezembro, com um Rescrito, o Papa aboliu o Segredo pontifício para os casos de abuso sexual.

Neste imperfeito registo, ficaram em branco os anos de 2019 a 2021. Fica a promessa de que não ficarão, assim, eternamente.

 

 

 

07. Novembro. 2021



[1] Cf. Suma Teológica, II-II q. 1 a. 2 e a. 9

[2] Vatican News, 13. O3. 2021

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