1. Faz parte da diferença humana a capacidade de
perguntar, de investigar, de receber e criar as mais diversas formas de
expressão cultural alimentadas pelo sentido do humor. Da consciência da nossa
infinita ignorância brota a sabedoria do sorriso perante as vazias promoções do
carreirismo, seja em que domínio for. A realidade
será sempre mais vasta do que todas as nossas ciências, filosofias e religiões.
É verdade que também faz parte da diferença
humana a possibilidade de desenvolver cada vez mais ciências, técnicas e
ideologias que destroem as suas melhores criações. Verificamos, a toda a hora,
que a chamada globalização não é garantia da universal solidariedade entre os povos.
Mas é possível.
O Papa Francisco, durante os
seus dez anos de pontificado, não desistiu nem desiste de associar pessoas,
movimentos cívicos, políticos e religiosos, para fazer deste mundo a casa de
todos e para todos.
Continuamos a perguntar: com
tantas capacidades para reduzir os males no mundo e aumentar as condições do
gosto de viver, porque regressamos à guerra, uma das mais velhas formas de
estupidez?
Em vez de investir em universalizar os meios
de uma vida mais feliz para todos, aumentamos e sofisticamos os meios de fazer
mal, de destruir, de provocar milhões de deslocados, de refugiados e a quem se
nega um lugar neste mundo.
Por essa razão, Bergoglio acaba
de ir à Hungria, um país de maioria católica e protestante para lembrar o
essencial. A esta grande maioria falta-lhe praticar um humanismo inspirado no
Evangelho e enraizado em duas pistas fundamentais: reconhecer-se como filhos
amados do Pai e amar cada um como irmão.
Perante tantos desesperados
que fogem dos conflitos, da pobreza e das alterações climáticas, é urgente que
nós, enquanto Europa, trabalhemos em vias seguras e legais, em mecanismos
partilhados face a um desafio que não pode ser travado pela rejeição, mas que
deve ser abraçado para preparar um futuro que, se não for em conjunto, não
será.
Neste tempo pascal, confrontamo-nos
de forma mais viva com as contradições que podem acompanhar as próprias
celebrações litúrgicas, com os seus textos, gestos e músicas admiráveis, nas
diversas dimensões da vida cristã: vida pessoal, familiar, profissional,
cívica, política e económica. Diante destas e outras incongruências, foi-se
criando um ambiente, ora de indiferença ora de abandono efectivo da prática
religiosa. Não são a única alternativa.
Para que seja realizado o
enlace dessas diversas dimensões, a melhor alternativa é a nossa conversão
nunca acabada. Só com esse enlace é possível saborear o movimento suscitado por
Jesus de Nazaré, para que todos tinham vida e vida em abundância.
Não estou a inventar. A
Primeira Carta de S. João começa desta maneira: O que existia desde o princípio, o que
ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos
tocaram a Palavra da Vida, porque a Vida manifestou-se: nós vimos
e damos testemunho e vos anunciamos esta Vida eterna que estava com o Pai e que
se manifestou a nós.
O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos, para que estejais
também em comunhão connosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho,
Jesus Cristo. Escrevemos isto para que a nossa alegria seja completa.
O evangelista João também não inventou nada. Foi
da boca de Cristo que ouviu esta declaração solene: Digo-vos isto para que a
minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena e ninguém vo-la possa
tirar[1].
2. Isto foi dito há dois mil anos. Não é evidente
na nossa sociedade e talvez nunca tenha sido evidente, mas é para nós, e para
sempre, que foi dito. Essa alegria é preciso procurá-la no mundo da nossa
experiência. O mundo na sua complexidade – não a fuga do mundo – será sempre o nosso
verdadeiro lugar teológico. A mística da fuga do mundo desenvolve-se numa falsa
teologia.
Como é sabido, na Bíblia, a palavra mundo
tem vários significados. Uma das narrativas poéticas da criação termina com a
exclamação: Deus viu que tudo era muito bom! No entanto, o ser humano
pode usar a sua liberdade para fazer o pior, tornar este mundo inabitável, mas
também o pode transformar num novo jardim. É esse o sentido incarnacionista da
esperança cristã. Deus não fez só a dança da criação. Tornou-se nosso aliado,
um de nós, para relançar a tarefa nunca acabada da nossa conversão.
Como diz Auden, poeta católico, «eu não sei nada
que cada um de vós já não saiba. Se estivermos lá, onde a Graça de Deus dança,
também nós dançaremos». Tolentino de Mendonça lembra a ronda maravilhosa dos
eleitos que Frei Angélico pintou no meio de anjos músicos todos de mãos dadas. É
uma imagem muito mais próxima da tradição bíblica do que se poderia imaginar,
como canta o Salmo 33: Alegrai-vos no Senhor, louvai o Senhor com cítaras e
poemas, com a harpa das dez cordas louvai o Senhor; cantai-lhe um cântico novo,
tocai e dançai com arte por entre aclamações[2].
3. O cristianismo não é propriamente conhecido por
ser a religião da alegria e é uma pena. Como escreveu Nietzsche, o cristianismo
seria muito mais credível se os cristãos vivessem em alegria.
É preciso não perder a leitura do texto do
Evangelho deste Domingo. É uma narrativa de despedida. Jesus notou que os seus
discípulos estavam perturbados com o pressentimento de uma triste separação.
Jesus apressa-se a apaziguá-los com expressões altamente teológicas e
enigmáticas.
Quem escreveu o texto captou bem o humor no
diálogo de despedida entre o Mestre e os discípulos. Não se perturbe o vosso
coração. Para onde eu vou, conheceis o caminho.
Reacção de Tomé: Senhor, não sabemos para onde
vais, como podemos conhecer o caminho? Jesus respondeu-lhe:
Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por
mim. Se me conheceis, também conhecereis o meu Pai. Desde
agora o conheceis e o vistes.
Esta resposta só aumentou a confusão dos
discípulos que Filipe tenta resolver de forma prática: mostra-nos o Pai e
isso nos basta!
Jesus suspira fundo: Há tanto tempo que estou
convosco e tu não me conheceste, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como podes dizer,
mostra-nos o Pai? Não crês que estou no Pai e o Pai está em
mim? As palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo, mas o Pai, que permanece
em mim, realiza as suas obras. Acreditai, ao menos, por
causa destas obras. Em verdade, em verdade vos digo: quem
crê em mim fará as obras que eu realizo e fará até maiores, porque vou para o
Pai[3].
Este diálogo, situado no passado, não é só do
passado que fala. É um texto sobre o futuro da Igreja, sobre o futuro das suas
tarefas de evangelização, em cada época, segundo o ritmo dos problemas que vão
surgindo. Houve épocas muito criativas e outras que sufocaram a criatividade.
Interessava mais assegurar a permanência do passado do que o carisma da
inovação.
Tudo no cristianismo é por causa da alegria.
Sempre ameaçada. Não podemos, no entanto, desistir deste caminho de Deus,
caminho de irmãos.
07 Maio 2023
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