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Crónicas PÁRA E PENSA
Hermenêutica feminista
das religiões e seus textos
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
A religião/religiões só têm sentido se
e na medida em que são factor de
libertação/salvação. Ora, a gente fica
tremendamente impressionado, quando
observa o que de negativo tantas vezes
as religiões e os seus textos dizem sobre
as mulheres.
Que é que isto quer dizer? É essencial
interpretar e não tomar de modo
Hermenêutica feminista
das religiões e seus textos
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
A religião/religiões só têm sentido se
e na medida em que são factor de
libertação/salvação. Ora, a gente fica
tremendamente impressionado, quando
observa o que de negativo tantas vezes
as religiões e os seus textos dizem sobre
as mulheres.
Que é que isto quer dizer? É essencial
interpretar e não tomar de modo
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nenhum à letra. Aí ficam, pois, alguns
princípios de hermenêutica feminista
das religiões e seus textos.
Pressuposto essencial é,
evidentemente, a compreensão de que
os textos sagrados não são ditados de
Deus, tornando-se, pois, claro que, sem
interpretação, eles se convertem,
inevitavelmente, em textos
fundamentalistas. Os textos sagrados
têm de ser lidos de modo crítico e
situados no seu contexto histórico.
Um livro sagrado, por exemplo, a
Bíblia, só tem validade última e só
encontra a sua verdade adequada
enquanto todo e na sua dinâmica global.
A argumentação com fragmentos pode
por vezes tornar-se inclusivamente
ridícula. Assim, princípio hermenêutico
essencial e decisivo das religiões e dos
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seus textos é o do sentido último da
religião, que é a libertação e salvação. O
Sagrado, Deus, referente último do
religioso, apresenta-se como Mistério
plenamente libertador e salvador. É,
pois, à luz desta intenção última que as
religiões e os seus textos têm de ser
lidos, concluindo-se que não têm
autoridade aqueles textos que, de uma
forma ou outra, se apresentam como
opressores e discriminatórios. Então,
não sendo normativos, têm de ser
evitados nas celebrações religiosas.
Portanto, é claro que a hermenêutica
feminista tem de ser uma hermenêutica
da suspeita. Não é de suspeitar que
religiões orientadas por homens e textos
que têm homens como autores
maltratem as mulheres, lhes sejam
pouco favoráveis e as tornem invisíveis,
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as considerem inferiores e as coloquem
em lugares subordinados?
Ela tem também de ser uma
hermenêutica da memória. Lembra as
vítimas, todas as vítimas. Exige,
portanto, uma leitura da História no seu
reverso, que é a História dos vencidos.
Normalmente, o que aparece, como é
sabido, é a História dos vencedores,
onde, por isso, não cabem as mulheres
nem as vítimas do sistema. Assim, como
escreveu Juan Tamayo, “a memória das
mulheres vítimas do patriarcado é já em
si um acto de reabilitação, de devolução
e reconhecimento da dignidade
negada”. Na reconstrução da História, é
preciso encontrar o papel das mulheres,
activo e criador, mas oculto e silenciado.
A leitura feminista dos textos
sagrados faz-se a partir dos movimentos
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de emancipação da mulher e, portanto,
dentro da luta pelos direitos humanos,
que, sendo indivisíveis, exigem
sociedades que ponham termo a todo o
tipo de discriminação, sem esquecer que
as estruturas discriminatórias da mulher
são múltiplas e multiplicativas, como
bem viu a teóloga E. Schüssler Fiorenza.
A hermenêutica feminista está
particularmente atenta ao
funcionamento sexista da linguagem.
Repare-se, por exemplo, no prurido
auricular de expressões como: a
arcebispa de Setúbal, a cardeal de
Lisboa. Utilizando normalmente o
genérico “homem” e “homens”, nos
textos sagrados, nas celebrações
litúrgicas, na catequese, as mulheres são
inevitavelmente invisibilizadas,
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esquecidas e marginalizadas. Impõe-se,
portanto, estar atento.
Essa hermenêutica é particularmente
crítica com as imagens patriarcais de
Deus. De facto, se Deus é masculino, o
homem-varão acaba por ser divinizado.
Realmente, a maior parte das imagens
usadas nas religiões e nas teologias para
se referirem a Deus são expressão do
domínio patriarcal e acabam por
legitimar religiosamente o poder dos
homens. Entre as mais comuns: Pai, Rei,
Juiz, Senhor, Soberano, Criador do Céu
e da Terra, Omnipotente. Por
conseguinte, a crítica feminista deve
desconstruir estas imagens, porque
estão associadas ao poder dos homens e
geram atitudes de submissão e
dependência, não fomentando uma
relação interpessoal.
A teologia feminista mostra-se
especialmente crítica com a imagem de
Deus “Pai”, por tratar-se de uma
imagem que leva “directamente à
obediência e à submissão, de que a
religião autoritária abusa”. Quer
recuperar imagens que têm a ver com a
vida, a amizade, o amor, a clemência, a
compaixão, a compreensão, a
generosidade, a ternura, a confiança, o
perdão, a solicitude... E o que é que
pode impedir os crentes de se dirigirem
a Deus como Mãe? Deus é Pai/Mãe.
Sábado, 15 de Março de 2025
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