sábado, 15 de março de 2025

Do Rosto aos rostos - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 Do Rosto aos rostos

Ano C – Quaresma – 2º domingo
Lucas 9,28-36: “É bom estarmos aqui”

O nosso caminho quaresmal prevê várias etapas, seis para ser exato, tantas quantos são os domingos da Santa Quaresma. Todos os anos, a Quaresma apresenta-nos, no primeiro domingo, a passagem das Tentações e, no segundo, a da Transfiguração. Estes dois Evangelhos são fundamentais no caminho quaresmal, quase como um lembrete de que a vida cristã não existe sem tentação, mas também não sem momentos de luz e transfiguração.

Este ano lemos São Lucas. A versão da Transfiguração de Jesus no Evangelho de Lucas (9,28-36) apresenta algumas características peculiares em relação aos relatos paralelos de Mateus (17,1-8) e Marcos (9,2-8). Três são as principais particularidades do relato de Lucas:

  • O contexto da oração. Lucas sublinha que a Transfiguração acontece durante a oração: “Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago e subiu ao monte para orar. Enquanto orava, o seu rosto mudou de aspeto” (Lc 9,28-29). Este é um tema típico de Lucas, que frequentemente apresenta Jesus em oração antes de eventos importantes.
  • O tema do diálogo. Só Lucas especifica o conteúdo da conversa entre Jesus, Moisés e Elias: “Falavam do seu êxodo, que estava para se cumprir em Jerusalém” (Lc 9,31). O uso do termo "êxodo" é muito significativo: evoca a libertação de Israel do Egito e antecipa a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus como uma nova libertação.
  • O sono dos discípulos. Apenas Lucas refere que Pedro, João e Tiago adormecem: “Pedro e os seus companheiros estavam dominados pelo sono, mas, despertando, viram a sua glória” (Lc 9,32). Este episódio antecipa o seu sono no Jardim das Oliveiras (Lc 22,45), criando um paralelo entre a Transfiguração e a Paixão.

Uma experiência de beleza e de luz

Ouvimos no Evangelho o relato do que aconteceu no monte. Trata-se de uma experiência exaltante de beleza e de luz; de epifania trinitária (Jesus, a Voz do Pai e a Nuvem e a Sombra, símbolos do Espírito Santo); de encontro entre o humano e o divino; de diálogo entre a Palavra (Cristo), a Torá (Moisés) e os Profetas (Elias); de temor sagrado ao entrar na nuvem luminosa; de escuta da Voz que proclama: “Este é o meu Filho, o eleito; escutai-O!”. Aqui nos é oferecido um vislumbre da experiência da ressurreição de Jesus e da nossa bem-aventurança!

A fonte desta luz e beleza é o rosto de Cristo. “O seu rosto mudou de aspeto”, diz Lucas. “O seu rosto brilhou como o sol”, diz Mateus (17,2). Todos procuramos esse rosto, como diz o salmista: “O teu rosto, Senhor, eu procuro!” (Salmo 26,8). Esse rosto revela-nos a nossa identidade profunda, o nosso verdadeiro rosto, por detrás das muitas máscaras e artifícios. Do encontro com Cristo saímos transfigurados, com o rosto radiante como Moisés quando saía da presença de Deus (Êxodo 34,35).

Só quem contemplou a beleza desse Rosto pode reconhecê-Lo também no “Ecce Homo” e em todos os rostos desfigurados pelo sofrimento e pela injustiça.

Espelho da glória do Senhor

A Transfiguração não é apenas o mistério da metamorfose de Jesus, mas também da nossa própria transformação e de toda a realidade que nos rodeia. Aquilo que é investido pela sua luz responde revelando a sua própria beleza interior e a sua harmonia profunda. A própria vida cristã é uma experiência de transfiguração contínua até à transfiguração final da ressurreição, como nos anuncia Paulo na segunda leitura de hoje: “O Senhor Jesus Cristo... transfigurará o nosso pobre corpo para o conformar ao seu corpo glorioso” (Filipenses 3,20).

O verbo grego aqui usado para 'transfiguração' ou 'metamorfose', 'metamorphein', é muito raro no Novo Testamento. Aparece apenas aqui, no relato evangélico da Transfiguração (Mateus 17,2; Marcos 9,2), e duas vezes nos escritos de Paulo (Romanos 12,1-2; 2Coríntios 3,18), sempre na forma passiva.

Particularmente interessante é a afirmação do apóstolo Paulo em 2Coríntios 3,18: “E todos nós, com o rosto descoberto, refletindo como num espelho a glória do Senhor, somos transformados nessa mesma imagem, de glória em glória, segundo a ação do Espírito do Senhor”. É um texto belíssimo, para conservar na memória do coração. Aqui é o rosto do cristão que é investido pela luz do rosto de Cristo e reflete a sua glória como num espelho. Esta luz não é um evento transitório, mas opera em nós uma metamorfose. Tornamo-nos naquilo que contemplamos. Se alimentarmos o nosso olhar, a fantasia e a alma com imagens de beleza aparente e efémera, descobrimo-nos nus e até desfigurados. Se alimentarmos o coração com a verdadeira beleza, refletimo-la em nós mesmos.

O mistério do Rosto e dos rostos

O monte da Transfiguração tem duas vertentes: a da subida ao monte, para contemplar o Senhor (experiências luminosas de oração), e a da descida ao vale, para o nosso quotidiano, com o seu cinzento e as suas fealdades. São os dois rostos da vida, que somos chamados a reconciliar. O rosto de Cristo, “O mais belo entre os filhos dos homens” (Salmo 45,3), é o da Transfiguração e do Ressuscitado, mas também o do Servo de Javé que “não tinha aparência nem beleza para atrair os nossos olhares, nem esplendor para nos seduzir” (Isaías 53,2).

É fácil dizer com Pedro: “Senhor, é bom estarmos aqui!”. Mais difícil é chegar a dizer como o escritor católico britânico Chesterton, ao lado de um amigo moribundo, contemplando o seu rosto pálido da morte: “Foi bom para mim estar ali!”. Recordo um episódio contado pelo meu confrade P. Alex Zanotelli, ocorrido no bairro de lata de Korogocho, em Nairobi. Quando perguntou a uma jovem mulher, que estava a morrer de SIDA, quem era Deus para ela, depois de um momento de silêncio, ela respondeu: “Deus sou eu!”.

Esta é a meta e a missão do cristão: reconhecer e testemunhar a Beleza de Deus nas realidades, mesmo dramáticas, da vida.

Para a reflexão pessoal da semana: refletir sobre como cultivar momentos de exposição à luz do rosto de Cristo.

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

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