domingo, 9 de março de 2025

ABRIR O CAMINHO À ESPERANÇA Frei Bento Domingues, O.P. 09 Março 2025

 

ABRIR O CAMINHO À ESPERANÇA

Frei Bento Domingues, O.P.

09 Março 2025

 

1. Os cenários históricos e geográficos das celebrações cristãs, entre o carnaval e a Páscoa, são diferentes de ano para ano, segundo os acontecimentos e as culturas de cada povo. Passar do riso para a tristeza e da tristeza para a exultação são cenários que podem não coincidir com a situação concreta de cada pessoa ou de cada grupo. Por outro lado, antes das narrativas bíblicas, já existia o mundo com outros povos e religiões.

É frequente dizer que o Cristianismo é a religião da tristeza. O símbolo cristão é a cruz, é Jesus crucificado. Creio que foi o poeta brasileiro, Manuel Bandeira (1886-1968) que, ao passar todos os dias, em frente do crucifixo que tinha em casa, pensava que um dia tinha de acabar com aquela imagem. Mas, ao meditar no sofrimento de tantos seres humanos, desistiu. Aquela cruz falava de todos os crucificados do mundo. Viu que a sua tentação angelista era anti-humana, anti-cristã.

Os cristãos só podem mandar queimar a cruz, quando desaparecerem da terra as mil formas de humilhação humana que a percorrem. Descrucificar o cristianismo sem descrucificar a sorte dos ofendidos é roubar ao mundo o último grito do infinito amor solidário.

A ira de Jesus Cristo era contra a justificação teológica de qualquer forma de exclusão. Apontou os responsáveis desse crime e mudou-se para a periferia, morada de Deus. É daí que nos convida a participar na libertação da sufocada esperança dos oprimidos, a multiplicar e a unir redes de solidariedade por todo o Planeta.

É nesse santo exercício que a Igreja precisa de viver este tempo de Quaresma. Nós pecamos por pensamentos, palavras, actos e omissões contra as várias dimensões do ser humano: tornamos a vida verdadeira, neste mundo, um sonho quase impossível. Por nossa culpa, na terra da alegria do corpo e da alma, há muitos vales de lágrimas mascarados de carnaval.[1]

Repete-se, muitas vezes, que o Cristianismo é contra a alegria, contra o riso, contra o carnaval. Se os Evangelhos nunca dizem que Jesus riu ou sorriu, é porque não era preciso. Seria mesmo ridículo deter-se nessa questão. Jesus era humano, não podia deixar de rir. Muitas das parábolas revelam um incomparável sentido de humor. Está escrito que chorou. Esta era a excepção, era uma situação humana que não devia existir.

Para Voltaire, o riso humano é, na sua forma primitiva, um cerimonial de salvação. Cria a distância perante as ameaças do poder intocável. A religião que não saiba cultivar o riso afoga-se na intolerância. Através dele resiste-se ao livro único, à letra que mata, às fórmulas dogmatizadas, à sacralização de banalidades, à ignorância dos canonistas, à sisudez dos ditadores.

O Papa Francisco, um grande humorista, no primeiro documento do seu pontificado, A Alegria do Evangelho, realçou essa condição humana e cristã. Tem chorado muitas vezes, mas não perdeu o sentido de humor. Confessou que reza, todos os dias, uma oração atribuída a Tomás Moro: «Dai-me, Senhor, o sentido de humor. Dai-me, Senhor, a capacidade de uma piada, de uma boa piada». Aconselhou muito essa oração aos cardeais e aos bispos para desanuviarem um pouco e tornarem a vida mais leve, a eles e sobretudo aos outros[2].

O judeu Woody Allen dizia: «Eu não tenho medo da morte, mas preferia não estar lá quando ela chegar».

2. A esperança teologal é a virtude da aliança permanente com o Futuro Absoluto, no combate ao infortúnio e à morte. O tempo que vivemos está marcado pelo cepticismo perante a possibilidade de mudanças profundas, mas Jesus convida-nos a nunca desistir da esperança. Parece uma utopia, mas na utopia há esperança de outra sociedade. Na esperança vive a utopia de outro mundo. Ambas são habitadas pela estratégia da mudança. Segundo o sociólogo, H. Desroches, é ténue a demarcação entre uma e outra: a sociedade utópica tem os seus transes religiosos; o mundo da esperança tem implicações terrestres – «assim na terra como no céu»[3].

Na Missa deste Domingo, S. Lucas descreve as tentações messiânicas de Jesus. São apresentadas como tentações diabólicas, isto é, como solicitações para Jesus trair a sua missão de fazer um mundo de paz, um mundo de fraternidade universal. A proposta do diabo era outra: deixar-se dominar pelo poder económico, político e religioso. Nesta parábola, o diabo até é figurado como muito religioso. Se fosse adorado, aconteceria, automaticamente, a sacralização da economia, da política e da religião.

Para muitas pessoas, a narrativa das tentações é um faz de conta. Jesus era divino, não lhe custou nada sacudir essas solicitações. Seria só para nos dar exemplo.

Se fosse só para nos dar exemplo, não nos dava exemplo nenhum, pois nós somos humanos, falíveis e muitas vezes falidos. Se Cristo fosse apenas uma aparência humana, as suas tentações também não passariam de mau teatro. S. Lucas, para mostrar que em toda a sua vida foi tentado a trair a missão que livremente assumira, termina: o diabo deixou-o até nova ocasião.

Se esta Quaresma nos ajudar a descobrir a condição humana e divina de Jesus, nosso irmão, participaremos na verdadeira condição da história cristã.

Neste momento, está a realizar-se a tragédia que o Papa queria evitar, chamando, muitas vezes, a atenção para uma guerra mundial aos bocados. De facto, as grandes potências, de inimigas estão a tornar-se colaboradoras para dominarem o mundo todo. A Europa parece ter acordado tarde.

3. Descobrir que somos humanos vale bem uma Quaresma. Somos seres tentados. Tentados a trair a nossa condição. Temos dias em que somos capazes de tudo e outros em que julgamos tudo perdido.

Hoje, na Igreja, seja qual for a tendência das pessoas e dos grupos, vamos descobrindo que fazer a vontade de Deus é a melhor coisa que nos pode acontecer. Porque, se for o Deus de Jesus Cristo, só pode querer e trabalhar pela nossa alegria, sem nunca nos dispensar. Quando a Palavra Deus suscitar a imagem ou a ideia de uma ameaça à nossa liberdade e à nossa criatividade, esse deus é o diabo, aquele que nos desvia de nós mesmos. A partir de Jesus, descobrimos que a única coisa que Deus quer é o nosso renascimento todos os dias, com ritmos diferentes para a nossa Páscoa eterna.

A nossa Quaresma só pode ser verdadeira se tiver como horizonte a conversão dos nossos desejos do poder de dominar. Uma pessoa só deve ser considerada católica porque deseja a sua vida ao serviço de quem precisa de ajuda, seja crente ou não. Uma Igreja só pode ser católica, isto é, universal, quando é uma escola de aprender a servir, sem olhar a quem.

O Papa Francisco procurou mostrar que todos os seres humanos estão chamados a desenvolver todas as suas capacidades, não para dominar, mas para melhor servir, para abrir o caminho à esperança.

 

 

 

 



[1] Cf. Frei Bento Domingues, O.P., A insurreição de Jesus, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2014,

[2] Cf. Anselmo Borges, Conversas com Anselmo Borges. A Vida, as Religiões, Deus, Gradiva, 2019

[3] La Société de Confiance, Paris, Odile Jacob, 1996

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