sábado, 12 de abril de 2025

 O Senhor precisa do jumentinho! - P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ

 

O Senhor precisa do jumentinho!

Ano C – Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor
Lucas 19,28-40 (Bênção dos ramos)
Lucas 22,14-23,56 (Paixão do Senhor)

Com o Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, iniciamos a Semana Santa, também chamada de Grande Semana. O rito da bênção e da procissão com os ramos de oliveira e palmas marca o fim da Quaresma, enquanto a liturgia da Palavra – especialmente com a leitura da Paixão – abre o tempo de preparação imediata para a celebração do mistério da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, ou seja, o Tríduo Pascal, coração do ano litúrgico. A Igreja e os seus filhos vivem esta semana como um “retiro espiritual”, em recolhimento e oração, em comunhão íntima e profunda com o seu Senhor.

Este domingo tem dois rostos, dois momentos bem distintos. O primeiro: o rito dos Ramos, seguido da procissão, caracterizado pela alegria e entusiasmo. O segundo: a Eucaristia, com a proclamação da Paixão, marcada por tristeza, fracasso e morte. Glória e Paixão, alegria e dor, luz e trevas, bem e mal... estão misteriosamente unidos neste domingo. As duas dimensões revelam que a glória de Deus se manifesta na Paixão de Jesus Crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios, segundo as palavras de São Paulo.

Sigamos também nós “Jesus que caminha à frente de todos, subindo para Jerusalém”, aclamando-o com a multidão festiva: “Bendito o que vem, o rei, em nome do Senhor. Paz no céu e glória nas alturas!”

A) Domingo de Ramos, sem ramos!

1. Domingo do jumentinho. No relato de hoje, Jesus, para revelar a sua soberania e realeza, diz que precisa de um jumentinho! (Mt 21,3; Mc 11,3; Lc 19,31). É a única vez nos Evangelhos em que Jesus afirma “precisar” de algo. Este jumentinho remete a Zacarias 9,9-10: “Eis que vem a ti o teu rei. Ele é justo e vitorioso, humilde, montado num jumento, num jumentinho, filho de jumenta. Ele eliminará os carros de guerra de Efraim e os cavalos de Jerusalém, o arco de guerra será quebrado, e ele proclamará a paz às nações.”

Este jumento, símbolo de humildade, serviço e pobreza, torna-se uma das imagens mais belas e desconcertantes de Deus. O Senhor precisa de “jumentinhos” que sejam testemunhas de Cristo, que na cruz carregou o fardo do pecado de toda a humanidade. Como escreve São Paulo: “Levai as cargas uns dos outros: assim cumprireis a lei de Cristo” (Gálatas 6,2).

2. Domingo dos mantos. “Lançando os seus mantos sobre o jumentinho, fizeram Jesus montar nele. Enquanto ele avançava, estendiam os seus mantos pelo caminho” (Lc 19,35-36). É interessante notar que, enquanto Mateus e Marcos falam de mantos e ramos estendidos no caminho como sinal de aclamação, São Lucas menciona apenas os mantos. Estender os mantos, símbolo da própria vida, era um gesto de submissão ao rei (cf. 2 Re 9,13).

Onde temos nós estendido os nossos mantos? Sobre os lombos dos cavalos dos poderosos? Ou sobre a estrada do sucesso, da riqueza ou do bem-estar? A Páscoa é uma ocasião para despertarmos de enganos ilusórios e nos colocarmos de novo na esteira de Cristo e da sua realeza de paz, humildade e serviço.

3. Domingo do pranto. “Quando se aproximou e viu a cidade, chorou sobre ela, dizendo: Se ao menos neste dia também tu compreendesses o que conduz à paz! Mas agora isso está oculto aos teus olhos.” (Lc 19,41-42). Como há uma primeira vez, haverá também uma última, além da qual será tarde demais. Então haverá “pranto e ranger de dentes” (Lc 13,28). Mas também Deus chora pelas suas visitas perdidas!

B) A sacralidade do relato da Paixão

O relato da Paixão é a parte mais antiga, mais desenvolvida e mais sagrada dos Evangelhos. “Estes últimos capítulos SÃO O EVANGELHO. Os outros capítulos são um comentário. O restante da Bíblia revela-nos Deus de costas: diz-nos o que ele fez por nós. Aqui, porém, vemo-lo face a face, naquilo que ele se fez por nós. Deus já não tem véus: ‘Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que EU-SOU’ (Jo 8,28), ou seja, conhecereis JaHWeH.” (Augusto Fontana)

Os apóstolos eram as “testemunhas da ressurreição”. Como é possível, então, que os cristãos da primeira geração atribuíssem tanta importância à memória da Paixão? Porque reconheceram que o perigo de ignorar a cruz de Cristo era muito real: seria uma traição da mensagem cristã. Este risco, ainda hoje, representa uma grave tentação para muitos cristãos. O querigma, ou seja, o anúncio cristão, é um tríptico que une indissoluvelmente a paixão, a morte e a ressurreição do Senhor!

C) Propostas para interiorizar o relato da Paixão

1. Uma forma de abordar o longo relato é fixar a atenção em cada personagemque intervém neste drama, e perguntar-nos em qual – ou quais – nos vemos refletidos. Cada um de nós tem o seu papel neste drama. Cada personagem interpreta um papel no qual se cumpre a Escritura. Que palavra se cumpre em mim?

2. Uma segunda forma consiste em deter-se na bondade e mansidão de Jesusdurante a Paixão. O Evangelho de Lucas apresenta um Jesus cheio de bondade e mansidão. Mesmo nos momentos mais dramáticos, Lucas destaca a delicadeza e a misericórdia do Senhor: acolhe Judas com doçura, cura o servo ferido, olha para Pedro com amor, consola as mulheres de Jerusalém, perdoa os seus algozes e promete o paraíso ao ladrão arrependido. Mesmo quem o condena ou assiste à sua morte – Pilatos, o povo, o centurião – reconhece a sua inocência e justiça. As suas últimas palavras não são de dor, mas de confiável entrega a Deus: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.”

Acolhamos este olhar de Jesus, que nos cura das nossas fraquezas e infidelidades, renova-nos a sua amizade e confiança, e desperta em nós a alegria e o entusiasmo em segui-lo.
Dirijamos-lhe, por nossa vez, um olhar cheio de ternura, amor e gratidão, com o deslumbramento e o amor apaixonado de São Paulo: Jesus, o Filho de Deus, “amou-me e entregou-se por mim!” (Gálatas 2,20)

3. Uma terceira forma poderá ser simplesmente sentar-se diante do Crucificado, para escutar o que ele nos diz da cátedra da cruz.

Boa entrada na Semana Santa!
P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ


P. Manuel João Pereira Correia mccj
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domingo, 6 de abril de 2025

O ENVIADO, FREI GUALTER - MISSÃO EM GUIMARÃES - Alfredo Monteiro (AAAFranciscanos)

 Quando em Junho de 2017 a Família Franciscana Portuguesa iniciou as comemorações dos Oitocentos Anos da presença da Ordem dos Frades Menores(OFM) em Portugal fui convidado a apresentar uma comunicação sobre Frei Gualter e as Festas Gualterianas de Guimarães. E assim aconteceu nas jornadas realizadas, mais tarde, na Universidade Católica do Porto. Proponho-me, agora, retomar o mesmo tema, mas, naturalmente, com a elaboração de um texto mais curto. Como antigo aluno da Escola Franciscana procuro acompanhar os frades Menores de todo o mundo que, neste ano de 2025, comemoram o “Oitavo Centenário do Cântico das Criaturas”, o mais belo poema sobre a Criação, escrito por Francisco de Assis, amigo da Natureza e Irmão de todas as criaturas. E, também,  porque me inspirei na leitura do livro “Santos e Amigos de Deus”, da OFM em Portugal, de Frei Henrique Rema, padre franciscano, académico brilhante da Academia Portuguesa de História, autor de numerosa bibliografia sobre o franciscanismo em Portugal e nas Missões.

Francisco de Assis, na peregrinação a Santiago de Compostela, terá passado pela vila de Guimarães e no contacto com os seus habitantes prometeu-lhes enviar alguns dos seus frades. Cumpriu a promessa, por 1216, enviando para Portugal Frei Zacarias e Frei Gualter. “….Filhos, eu vos tenho destinados para pregardes no Reino de Portugal. Mas sejam as vossas palavras acompanhadas de obras, porque o exemplo monta mais que a doutrina”. Vindos de Itália, separam-se dos seus companheiros de viagem e resistem ao calor abrasador de Agosto das terras de Castela e da Estremadura. Aqui chegados, Frei Zacarias rumou a Alenquer e Frei Gualter a Guimarães.

Antes da partida, Francisco advertiu Frei Gualter que construísse um pequeno convento na vila medieval de Guimarães, como prometera ao seu povo. E assim aconteceu. Enquanto construíam o modesto eremitério da Fonte Santa no monte de Santa Catarina, diríamos, hoje, no sopé da encosta da Penha, os frades alojaram-se no hospital. Dedicavam-se, no seu dia a dia, à pregação pelas ruas da vila, cuidando dos doentes hospitalizados e ajudando os lavradores nas lides do campo. Frei Gualter,  “…Com tanto espírito falava, que os seus ouvintes pediam perdão a Deus e se desfaziam em lágrimas”. A pedido dos fiéis, porque queriam os frades mais próximos, mudaram-se para São Francisco-O-Velho. A maneira austera e contemplativa como viviam atraiu numerosos discípulos à vida religiosa e franciscana.

Após a morte de Frei Gualter, pelo ano de 1259, já os frades menores povoavam várias terras de Portugal: Guimarães, Bragança, Alenquer, Porto e Lisboa. Se em vida era venerado pelos fiéis, a devoção pelo frade cresceu ainda mais. Quando, por 1271, os restos mortais foram trasladados da terra nua para sepulcro de pedra, dentro do Convento, mais aumentou a fama de taumaturgo com os sucessos milagrosos operados por intercessão deste servo de Deus. Posteriormente, em Agosto de 1577, foram novamente trasladados para um sepulcro mais sumptuoso e os prodígios multiplicaram-se! Nesse ano, São Gualter foi declarado padroeiro de Guimarães. A festa, uma das maiores romarias do Norte, celebra-se a 2 de Agosto com imensa participação popular.

O Rei D. Filipe III, por diploma de 20 de Janeiro de 1622, concede que Guimarães celebre, com a maior solenidade, a procissão do Santo. E o Papa Gregório XIII, pela Bula de 17 de Dezembro de 1577, aprovou o seu culto, ampliado pelo Breve de Gregório XV, de 15 de Abril de 1621. E pelo povo foi “canonizado”.

Alfredo Monteiro (AAAFranciscanos)

PRIMEIRA CRÓNICA DE ABRIL Frei Bento Domingues, O.P. 06 Abril 2025

 

PRIMEIRA CRÓNICA DE ABRIL

Frei Bento Domingues, O.P.

06 Abril 2025

 

1. A 25 de Abril de 1974, a chamada revolução dos cravos pôs fim ao regime de Salazar/Marcello Caetano. Este acontecimento continua a provocar abundantes estudos de diversa orientação e com vários significados para o Estado, para a Igreja e para a sociedade.

A Agência Ecclesia e o Centro de Estudos e História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa publicaram uma obra no contexto das celebrações dos 50 anos do 25 de Abril[1]. Como se diz na Introdução, «no seguimento de projectos editoriais anteriores, esta parceria tem o propósito de aproximar a investigação científica de formatos de apresentação e difusão de conteúdos essenciais da História de Portugal».

É uma bela realização que não fica apenas nas relações entre o Estado e a Igreja Católica. Estuda algumas permanências, rupturas e recomposições acerca da guerra, da descolonização, da democracia e do desenvolvimento.

«A comemoração dos 50 anos do 25 de Abril confirma, de forma incontestável, que o presente reflecte sempre o passado, no caso um passado recente, mesmo que não se descubram os ângulos que o projectam».

Como escreveu o poeta David Mourão-Ferreira (1927-1996), Chega-se a este ponto Arrepiar caminho / Soletrar no passado a imagem do futuro / Abrir uma janela Acender o cachimbo / para deixar no mundo uma herança de fumo[2].

No passado Domingo, o Papa Francisco regressou ao Vaticano, mas ainda em convalescença. Já mostrou que não vive alheado do que acontece na Igreja e no mundo. A Igreja não parece que vá desaparecer nem sequer no original estilo de Bergoglio. Segundo o Anuário Pontifício 2024, do ponto de vista global, aumentaram os católicos batizados, os bispos nos continentes asiático e africano e os diáconos permanentes na África, Ásia e Oceania. Diminuíram as chamadas vocações sacerdotais – os padres –, e os religiosos e as religiosas[3].

2. De há uns anos a esta parte, temos uma pluralidade de diferentes manifestações religiosas e, por isso, se fala do diálogo inter-religioso. Por outro lado, esta pluralidade religiosa é também uma pluralidade cultural e política.

Um grupo de jornalistas católicos criaram o 7MARGENS. Apresentam esta iniciativa da seguinte maneira: «é um jornal digital orientado por critérios jornalísticos profissionais e independente de qualquer instituição, religiosa ou outra. Divulga informação sobre o fenómeno religioso, no sentido mais amplo do termo, não se confinando à actualidade das diversas confissões e crenças estabelecidas. Procura dar conta das diferentes formas de busca espiritual que marcam o nosso tempo, desvendando as questões, interrogações e percursos que alimentam essa indagação. Tem consciência de que a informação sobre o fenómeno religioso assim entendido constitui um importante instrumento a favor da paz, da justiça social, do conhecimento mútuo, da tolerância e da cooperação entre os mais diversos actores das nossas sociedades»[4].

Eduardo Lourenço, um grande pensador da filosofia, da religião, da literatura e da música, afirmou numa entrevista que o religioso é constitutivo da natureza humana, da nossa essência como seres livres. Impede-nos de ser limitados por qualquer obstáculo. Mas a cultura ocidental fez da conquista da liberdade a possibilidade de intervir, de dominar o nosso próprio projecto, uma finalidade, laica, da História humana. Na verdade, a forma mais radical de liberdade é da ordem do poético, do religioso. Permite que a Humanidade inscreva a sua pulsão mais radical numa esfera que não é a do demonstrável. Submetemo-nos a uma espécie de loucura divina, para nos salvarmos da loucura autêntica que é a noção de que a nossa essência é a morte. Penso que é um pouco assim[5].

Por sua vez, Wittgenstein perguntava: Que sei eu sobre Deus e o sentido da vida? Sei que este mundo existe. Que estou nele como o meu olho no seu campo visual. Que algo nele é problemático, a que chamamos o seu sentido. Que este sentido não reside nele, mas fora dele. (…) Ao sentido da vida, i.é, ao sentido do mundo, podemos chamar Deus. E associar-lhe a metáfora de Deus como um pai. A oração é o pensamento do sentido da vida. (…) Crer em Deus significa compreender a pergunta pelo sentido da vida. (…) Crer em Deus significa ver que a vida tem um sentido[6].

3. Um dos povos que se considerava religiosamente privilegiado era Israel, o povo de Deus. Um célebre judeu – Jesus de Nazaré – mostrou que conhecia muito bem a Bíblia, mas não estava sempre de acordo com as práticas que se diziam inspiradas nessa Biblioteca sagrada. Uma das suas tarefas mais constantes era a destruição da interpretação que deixava, quase sempre, a mulher mal vista. Neste Domingo, lê-se uma das passagens mais espantosas a este respeito. Vale a pena ler o texto.

«Jesus foi para o Monte das Oliveiras. Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo e todo o povo se aproximou dele. Então, sentou-se e começou a ensinar. Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus uma mulher surpreendida em adultério, colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres. Tu que dizes? Falavam assim para lhe armarem uma cilada e terem pretexto para o acusar. Mas Jesus inclinou-se e começou a escrever com o dedo no chão. Como persistiam em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Inclinou-se novamente e continuou a escrever no chão. Eles, porém, quando ouviram tais palavras, foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos. Ficou só Jesus e a mulher que estava no meio. Jesus ergueu-se e disse-lhe: Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou? Ela respondeu: Ninguém, Senhor. Disse então Jesus: Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar»[7].

Este texto é uma construção prodigiosa. São os adúlteros que vão denunciar uma mulher apanhada em flagrante adultério, como se ela tivesse sido apanhada a cometer adultério sozinha. Quando a acusam, Jesus tem uma reacção espantosa. Devolve a acusação a todos os homens ali presentes: Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Jesus continua a fazer-se distraído até que todos foram abandonando a acusação, a começar pelos mais velhos. Ao ficar sozinho com a mulher, perguntou-lhe se algum a tinha condenado. Nenhum. Jesus limita-se a dizer: também eu não te condeno, mas não voltes a estragar a tua vida.

Nesta passagem, não seguiu a Bíblia! Se a tivesse seguido, participava na opressão das mulheres que ele veio libertar.

 

 

 

 



[1] Cf. 25 de Abril. Permanências, ruturas e recomposições. Edição CEP, 2024

[2] Do Poema Equinócio

[5] Cf. Revista LER, nº 138. Verão de 2015. Terceira Série, p. 38

[6] Tagebücher 1914-1916, Werkausgabe, Vol. I, Suhrkampf, Francoforte, 1984, pp. 167-8

[7] Jo 8, 1-11

Miséria e Misericórdia - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 

Miséria e Misericórdia

Ano C – Quaresma – 5.º Domingo
João 8,1-11: «Vai e não tornes a pecar»

No nosso itinerário quaresmal, os domingos anteriores colocaram no centro o anúncio da misericórdia de Deus e o convite à conversão. Hoje, este caminho atinge o seu auge com o Evangelho da mulher surpreendida em flagrante adultério.

Este texto (João 8,1-11) teve uma história conturbada: ausente nos manuscritos mais antigos, ignorada pelos Padres latinos até ao século IV e nunca comentada pelos Padres gregos do primeiro milénio. É como uma página arrancada do seu contexto original e depois inserida aqui no Evangelho segundo São João. No entanto, muitos estudiosos acreditam que pode pertencer a São Lucas, o evangelista da misericórdia.
Esta passagem era incómoda, pois chocava com a prática penitencial rigorosa dos primeiros séculos, segundo a qual os pecados mais graves – homicídio, adultério e apostasia – só podiam ser perdoados uma vez na vida. No fundo, ainda hoje custa-nos ultrapassar a lógica da justiça para abraçar plenamente a mentalidade da misericórdia.

E tu, o que pensas?

A cena decorre numa manhã no Templo, onde Jesus ensinava o povo. Os escribas e fariseus trazem-lhe uma mulher apanhada em adultério, colocam-na no meio e dizem-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. Ora, Moisés, na Lei, mandou-nos lapidar tais mulheres. E tu, que dizes?»

O evangelista acrescenta que disseram isto para o pôr à prova. A mulher é apenas um pretexto: o verdadeiro acusado é Jesus e a sua misericórdia. Querem ver como Ele se sai desta situação. De facto, se Ele se desviasse da aplicação da Lei, poderiam acusá-lo diante do Sinédrio; se, pelo contrário, se pronunciasse a favor da condenação, alienar-se-ia do povo, que o considerava um mestre bom e compassivo.

A prática de condenar à morte os adúlteros era comum no antigo Médio Oriente – uma prática bárbara que, infelizmente, ainda subsiste hoje nalguns países islâmicos. Encontramo-la também no livro do Levítico 20,10: «Se um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o adúltero e a adúltera serão punidos com a morte» (cf. Dt 22,22). Era um dissuasor do adultério, mas na prática não era rigidamente aplicada no tempo de Jesus. Reparemos, porém, que aqui só está presente a mulher adúltera. E o adúltero, onde está? A lei, portanto, não é aplicada com imparcialidade.

Jesus, em vez de responder, inclina-se e começa a escrever com o dedo no chão, em silêncio. O que escreve Ele? Os pecados dos acusadores, como afirma São Jerónimo? Quantas conjeturas se fizeram a este respeito! A explicação, provavelmente, é bem mais simples: rabiscar no chão pode ter sido uma forma de ganhar tempo, refletir, preparar uma resposta ou até mesmo digerir a irritação causada pela pergunta.

Encontramos apenas três vezes na Escritura a expressão «escrever com o dedo». A primeira é em Êxodo 31,18: o dedo de Deus que escreve a Lei nas tábuas de pedra; a segunda no trecho paralelo em Deuteronómio 9,10; a terceira no livro do profeta Daniel, capítulo 5, quando um dedo de uma mão escreve três palavras na parede da sala do banquete, onde o rei Baltasar estava a profanar os vasos sagrados roubados do Templo de Jerusalém.

O que escreve Jesus? A nova lei do amor e da misericórdia, escrita no pó de que somos feitos, na fragilidade da nossa carne, na nossa vida marcada pela infidelidade e pelo pecado. É a nova lei que Deus prometeu escrever no coração daquele que acredita (Jeremias 31,31-34).

Quem de entre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra!

Jesus mantinha-se em silêncio. Mas, como insistiam em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de entre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra contra ela». Depois, inclinando-se novamente, escrevia no chão.

Jesus não nega a Lei, mas convida a aplicá-la antes de mais a si mesmo. Todos ficam à espera que alguém, «sem pecado», atire a primeira pedra. Mas em vão. Então, um por um, começam a retirar-se. Tinham chegado juntos, confiantes; partem confusos, um a um, começando pelos mais velhos. No chão, ficam as pedras. E com elas, também as máscaras de quem se apresentava como juiz e justo.

Os acusadores da mulher são forçados a olhar para dentro de si, a confrontar-se também com a Lei de Moisés. E acabam por se encontrar no lugar da mulher. Se olharmos verdadeiramente para dentro de nós, deixamos de conseguir condenar alguém. Muitas vezes, inconscientemente, não conseguindo vencer o mal que habita em nós, tentamos combatê-lo fora – nos outros – e assim acabamos por nos sentirmos em paz. Aqui entra a lógica do rebanho: basta que alguém atire a primeira pedra, e todos os outros seguem. Assim, ninguém assume a responsabilidade pelas pedras lançadas. Se não combatemos o mal dentro de nós, ele será sempre «o outro», o inimigo a eliminar.

Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?

Todos se foram embora. Vencidos ou convencidos, não se sabe. E a mulher ficou ali, sozinha, no meio. De um lado, a miséria; do outro, a misericórdia, comenta Santo Agostinho. Então Jesus ergue-se novamente, dirige o olhar para ela e pergunta: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.»

Jesus ergue-se para olhar a mulher. Segundo o sentido literal do verbo grego, Jesus «se endireita», não «se levanta de pé». Ele permanece sentado, em baixo: não nos olha de cima, mas de baixo, pois veio ocupar o último lugar. 
Nesse momento, os dois olhares cruzam-se: o olhar envergonhado, temeroso e triste da mulher, e o olhar puro, doce e compassivo de Jesus. É um olhar diferente, único, que a mulher nunca antes tinha conhecido.
«O que salva é o olhar», diz Simone Weil. O cristão é chamado a reflectir-se neste olhar, todas as manhãs, para tomar consciência de quanto é amado e para purificar o seu olhar sobre os outros e sobre a realidade.

Jesus chama-lhe «Mulher», como chama também a sua Mãe, segundo o Evangelho de João. Assim, restitui-lhe a sua dignidade. E ela chama-lhe «Senhor» – o Senhor que lhe salvou a vida.
Esta mulher representa todos nós, «adúlteros», infiéis ao Esposo. Também nós fazemos parte da «geração adúltera e pecadora» (Marcos 8,38).

Vai e não tornes a pecar!

Então Jesus disse: «Nem Eu te condeno!» Porque «Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele» (João 3,17).
«Vai e não tornes a pecar!» Estás livre do teu passado. A vida foi-te novamente confiada. Tens uma nova oportunidade. Podes recomeçar uma nova vida!

Esta mesma palavra é-nos dirigida a nós nesta Quaresma. Tantas vezes a nossa vida está amarrada ao passado: aos nossos fracassos, ao arrependimento pelas oportunidades perdidas, aos nossos pecados... Mas o Senhor diz-nos: «Não vos lembreis mais das coisas passadas, não penseis nas coisas antigas! Eis que realizo uma coisa nova: já está a germinar, não a vedes?» (Isaías 43,16-21 – Primeira Leitura).
Façamos então como São Paulo: «Esquecendo o que ficou para trás e avançando para o que está à frente, corro para a meta» (Filipenses 3,8-14 – Segunda Leitura).

Pe. Manuel João Pereira Correia, MCCJ



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