segunda-feira, 28 de abril de 2025

A Páscoa de Tomé - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

A Páscoa de Tomé

Ano C - Páscoa - 2.º domingo
João 20,19-31: “Meu Senhor e meu Deus!”

Hoje, segundo domingo da Páscoa, celebramos... a “Páscoa de São Tomé”, o apóstolo que estava ausente da comunidade apostólica no domingo passado! Este domingo é também chamado “Domingo da Divina Misericórdia”, desde 30 de abril de 2011, dia da canonização da Irmã Faustina, pelo Papa João Paulo II. Enquanto louvamos o Senhor pela sua misericórdia, agradecemos-lhe de modo muito especial o dom do Papa Francisco, que fez da misericórdia um dos “leitmotiv” do seu pontificado.

Os temas que o evangelho nos propõe são, no entanto, numerosos: o domingo (“o primeiro dia da semana”); a Paz do Ressuscitado e a alegria dos apóstolos; o Pentecostes e a Missão dos apóstolos (segundo o evangelho de João); o dom e a missão confiada aos apóstolos de perdoar os pecados (razão pela qual hoje celebramos o “Domingo da Divina Misericórdia”); o tema da comunidade (da qual Tomé se tinha ausentado!); mas sobretudo o tema da fé! Limitar-me-ei a deter-me na figura de Tomé.

Tomé, nosso gémeo

O seu nome significa “duplo” ou “gémeo”. Tomé tem um lugar de relevo entre os apóstolos: talvez por isso lhe tenham sido atribuídos os Atos e o Evangelho de Tomé, apócrifos do século IV, “importantes para o estudo das origens cristãs” (Bento XVI).

Gostaríamos de saber de quem Tomé é gémeo. Poderia ser de Natanael (Bartolomeu). Com efeito, esta última profissão de fé, feita por Tomé, corresponde à primeira, feita por Natanael, no início do evangelho de João (1,45-51). Além disso, o carácter e comporta­mento de ambos são surpreendentemente semelhantes. Por fim, os dois nomes aparecem relativamente próximos na lista dos Doze (ver Mateus 10,3; Atos 1,13; João 21,2).

Esta incógnita abre espaço para afirmar que Tomé é “gémeo de cada um de nós”(Dom Tonino Bello). Tomé conforta-nos nas nossas dúvidas de crentes. Nele nos espelhamos e, através dos seus olhos e das suas mãos, também nós “vemos” e “tocamos” o corpo do Ressuscitado. Uma interpretação que tem o seu encanto!...

Tomé, um “duplo”?

Na Bíblia, o par de gémeos mais famoso é o de Esaú e Jacó (Génesis 25,24-28), eternos antagonistas, expressão da dicotomia e polaridade da condição humana. Não será que Tomé (o “duplo”!) traz dentro de si o antagonismo dessa dualidade? Capaz, por vezes, de gestos de grande generosidade e coragem, enquanto noutras ocasiões se revela incrédulo e obstinado. Mas, confrontado com o Mestre, volta a emergir a sua identidade profunda de crente que proclama a fé com prontidão e convicção.

Tomé carrega dentro de si o seu “gémeo”. O evangelho apócrifo de Tomé sublinha esta duplicidade: “Antes éreis um, mas tornaram-se dois” (n.º 11); “Jesus disse: Quando de dois fizerdes um, então tornar-vos-eis filhos de Adão” (n.º 105). Tomé é imagem de todos nós. Também nós transportamos dentro de nós esse “gémeo”, inflexível e fervoroso defensor das suas ideias, teimoso e caprichoso nas suas atitudes.
Estas duas realidades ou “criaturas” (o velho e o novo Adão) convivem mal, em contraste, por vezes em guerra aberta, no nosso coração. Quem nunca experimentou o sofrimento desta laceração interior?

Pois bem, Tomé tem a coragem de enfrentar essa realidade. Ele permite que se manifeste o seu lado obscuro, adverso e incrédulo, e leva-o a confrontar-se com Jesus. Aceita o desafio lançado pela sua interioridade “rebelde” que pede para ver e tocar… Leva-o até Jesus e, diante da evidência, o “milagre” acontece. Os dois “Tomé” tornam-se um só e proclamam a mesma fé: “Meu Senhor e meu Deus!”

Infelizmente, não é isso que acontece connosco. As nossas comunidades cristãs são frequentadas quase exclusivamente por “gémeos bons” e submissos, mas também… passivos e amorfos! A verdade é que não estão lá na sua “totalidade”. A parte enérgica, instintiva, o outro gémeo, aquela que precisaria de ser evangelizada, não comparece ao “encontro” com Cristo.

Jesus disse que veio para os pecadores, mas as nossas igrejas, muitas vezes, são frequentadas por “justos” que… não sentem necessidade de se converter! Aquele que deveria converter-se, o outro gémeo, o “pecador”, deixamo-lo tranquilamente em casa. É domingo, aproveita para “descansar” e entrega o dia ao “gémeo bom”. Na segunda-feira, então, o gémeo dos instintos e das paixões estará em plena forma para retomar o comando.

Jesus à procura de Tomé

Oxalá tivesse Jesus muitos Tomés! Na celebração dominical, é sobretudo deles que o Senhor vem à procura… Serão eles os seus “gémeos”! Deus procura homens e mulheres “reais”, que se relacionem com Ele como são: pecadores que sofrem na sua própria carne a tirania dos instintos. Crentes que não se envergonham de aparecer com essa parte incrédula e resistente à graça. Que não vêm para fazer boa figura na “assembleia dos crentes”, mas para se encontrarem com o Médico da Divina Misericórdia e serem curados. É com estes que Jesus se faz irmão!

O mundo precisa do testemunho de crentes honestos, capazes de reconhecer os próprios erros, dúvidas e dificuldades e que não escondem a sua “duplicidade” por detrás de uma fachada de “respeitabilidade” farisaica. A missão necessita verdadeiramente de discípulos que sejam pessoas autênticas e não “de pescoço torto”! De cristãos que encarem de frente a realidade do sofrimento e que toquem com as suas mãos as chagas dos crucificados de hoje!...

Tomé convida-nos a reconciliar a nossa duplicidade para fazermos a Páscoa!
Palavra de Jesus, segundo o Evangelho de Tomé (n.º 22 e n.º 27): “Quando fizerdes com que dois sejam um, e fizerdes com que o interior seja como o exterior e o exterior como o interior, e o alto como o baixo, e quando fizerdes do masculino e do feminino uma só coisa (...) então entrareis no Reino!”

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

1 Crónicas PÁRA E PENSA Homenagem a Francisco - Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Homenagem a Francisco:

A dívida para com as vítimas inocentes

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Recordando Francisco, o Papa de uma

Igreja aberta a todos e que até ao fim quis

estar próximo dos últimos, fica aí este meu

texto sobre a dívida incomensurável da

História para com as vítimas inocentes.

Na sua encíclica sobre a esperança — Spe

salvi (Salvos em esperança) —, Bento XVI, o

Papa antecessor de Francisco, debruça-se

sobre uma pergunta decisiva – “a pergunta

2

fundamental da Filosofia” (Max

Horkheimer) : o que podem esperar as

incontáveis vítimas inocentes da História?

Quem lhes fará justiça? As vítimas

inocentes clamam, um grito sem fim e

ensurdecedor percorre a História.

No mundo moderno, conduzido em

grande parte pela ideia de progresso,

ergueu-se, nos séculos XIX e XX, um

ateísmo moral por causa das injustiças do

mundo e da História. “Um mundo no qual

há tanta injustiça, tanto sofrimento dos

inocentes e tanto cinismo do poder, não

pode ser obra de um Deus bom”.

Quase se poderia dizer que se é ateu ad

majorem Dei gloriam, para a maior glória de

Deus, como se, perante o horror do mundo,

a justificação de Deus fosse não existir. É-se

ateu por causa de Deus, que é preciso

recusar por causa da moral.

3

Afastado Deus, deve ser o Homem a

estabelecer a justiça no mundo. Mas não

será esta uma pretensão arrogante e

intrinsecamente falsa? “Um mundo que tem

de criar a sua justiça por si mesmo é um

mundo sem esperança. Ninguém nem nada

responde pelo sofrimento dos séculos”,

escreveu o Papa.

Aqui, Bento XVI apela para a Escola

Crítica de Frankfurt, nomeadamente para

Max Horkheimer e Theodor Adorno, que

viveram filosoficamente a inconsolável

“tristeza metafísica” da impossibilidade de

fazer justiça às vítimas da História. De facto,

mesmo supondo, no quadro do marxismo e

da ideia do progresso moderno, que algum

dia fosse possível a edificação de uma

sociedade finalmente justa, transparente e

reconciliada, ela não poderia ser feliz. A

razão é simples: ou essa sociedade se

lembrava de todas as vítimas do passado,

4

que não participam dela, e então seria

atravessada pela infelicidade, ou não se

interessava por essas vítimas, mas então

não era humana, porque insolidária.

Horkheimer e Adorno exprimiram uma

filosofia em tenaz: por um lado, não podiam

acreditar num Deus justo e bom; por outro,

há uma verdade da religião, apesar de todas

as suas traições no conluio com o poder e os

vencedores: a religião “no bom sentido” é,

segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável,

sustentado contra a realidade fáctica, de que

esta mude, que acabe o desterro e chegue a

justiça”. Não se trata de um desejo egoísta,

mas da esperança contrafáctica de que a

realidade dominante da injustiça não tenha

a última palavra. Daí, o “anelo do

totalmente Outro”, o “anelo da justiça

universal cumprida”, “a esperança de que a

injustiça que atravessa a História não

permaneça, não tenha a última palavra”.

5

Esta esperança tem de traduzir-se numa

práxis solidária tal que “não se possa pensar

que não existe um Além”. Nesta práxis, está

implicado o pensamento do Absoluto, não

para afirmá-lo, mas como anelo de que o

finito e o mundo da injustiça não sejam a

ultimidade e o definitivo.

Também neste sentido, Adorno escreveu

que “o pensamento que se não decapita

desemboca na Transcendência”. Frente às

aporias da razão, neste domínio, a única

filosofia legítima seria “o intento de

contemplar todas as coisas como aparecem

à luz da redenção”. Embora se não possa

afirmar nada para lá da imanência, a

pergunta pela esperança truncada das

vítimas, que acusam o mundo da História

dos vencedores, obriga a pensar para lá dos

limites da imanência, colocando a pergunta

pelo Absoluto enquanto pergunta pela

justiça universal.

6

Em diálogo com a Escola Crítica de

Frankfurt, Bento XVI reconhecia que a

necessidade individual da realização plena

e da imortalidade do amor já é “um motivo

importante para crer que o Homem está

feito para a eternidade”, “mas só o

reconhecimento de que a injustiça da

História não pode de modo nenhum ter a

última palavra” convence da necessidade

da ressurreição dos mortos e da vida eterna.

Na Sexta-Feira Santa, como já aqui

escrevi, lembra-se Cristo na cruz, que

morre, inocente, e gritando uma oração em

pergunta in-finita, que atravessa os séculos:

“Meu Deus, meu Deus, porque é que me

abandonaste?” Os cristãos acreditam que o

Deus do amor, seu Pai — o Papa Francisco

escreveu que “o nome de Deus é

Misericórdia” —, respondeu, ressuscitando-

o dos mortos, dando assim esperança ao

clamor das vítimas da História.

7

Francisco ainda saudou a multidão no

passado Domingo, Festa da Páscoa. Morreu

na manhã de Segunda-Feira, Segunda-Feira

de Páscoa. Adeus, Francisco.

Sábado, 26 de Abril de 2025

domingo, 20 de abril de 2025

Conta-nos, Maria: o que viste no caminho?” - P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ

 Conta-nos, Maria: o que viste no caminho?”

Ano C – Domingo de Páscoa
João 20,1-9: “Ele devia ressuscitar dos mortos”

A Morte e a Vida enfrentaram-se
num prodigioso duelo.
O Senhor da Vida estava morto;
mas agora, vivo, triunfa”.
(Sequência Pascal)

Chegámos à Páscoa do Senhor, percorrendo o caminho proposto pela Igreja, nossa mãe. Após a Quaresma, entrámos no Tríduo Pascal. O que vivemos nestes três dias ficou impresso no nosso coração. Vimos o Amor ajoelhado aos nossos pés. Assistimos ao Amor escarnecido, cuspido, pregado na cruz. Por fim, acolhemos o Amor, morto, nos nossos braços e, chorando e batendo no peito, sepultámos o Amor. Parecia que tudo tinha acabado. Esquecemo-nos, no entanto, que o amor nunca morre. É uma semente carregada de potência de vida que, caída em terra, dá muito fruto. E hoje, dia de Páscoa, a vida irrompe do sepulcro!

A Páscoa é o triunfo inesperado da Vida que faz renascer a Esperança certa. A Páscoa é a estrela da manhã que ilumina a noite profunda e abre o caminho para o sol do meio-dia. A Páscoa é a explosão da primavera que inaugura o tempo da beleza, a estação das cores, do canto e das flores. A Páscoa é o início da nova criação!

Maria, a mulher da alvorada

Mas deixemos que seja Maria Madalena a contar-nos a Páscoa. Ela, a mulher da alvorada gloriosa, a primeira anunciadora da ressurreição de Cristo. Maria Madalena - como concordam todos os evangelistas - é detentora de um testamento de primeira mão, primícia feminina, “apóstola dos apóstolos”, como a chamam os antigos Padres da Igreja. Ela é a imagem perfeita da Igreja, esposa apaixonada que passa a noite à procura do seu Amado. O seu amor apaixonado pelo Mestre manteve o seu coração acordado durante toda a noite da grande “passagem”; “Eu durmo, mas o meu coração vigia” (Cântico dos Cânticos 5,2). E, porque o amor a fez vigiar, o Amado se mostrou primeiro a ela.

É a ela que queremos perguntar: “Conta-nos, Maria: o que viste no caminho?”. Conta-nos com o ardor da tua paixão. Deixa-nos contemplar nos teus olhos o que o teu coração viu! Porque o testemunho de um apóstolo não tem valor, se não for vivido com a tua mesma paixão!

Conta-nos, Maria: o que viste no caminho?
«O sepulcro do Cristo vivo, a glória do Cristo ressuscitado, e os seus anjos testemunhas, o sudário e as suas vestes. Cristo, minha esperança, ressuscitou: precede os seus em Galileia».
Sim, estamos certos: Cristo ressuscitou de verdade.”
(Sequência do Domingo de Páscoa).

Maria, a “amante”

O que caracteriza Maria Madalena? Um grande amor! Ela é uma mulher apaixonada por Jesus, que não se conforma com a perspectiva de perdê-lo e se agarra a aquele corpo inerte como última oportunidade de poder tocar “aquele que o seu coração ama” (Cântico dos Cânticos 3,1-4). Se o “discípulo amado” (talvez o próprio apóstolo São João, segundo a tradição) é o protótipo do discípulo, Maria Madalena é, de certa forma, o seu correspondente feminino (sem, com isso, ofuscar a figura da Virgem Maria). Maria Madalena é a “discípula preferida” e a “primeira apóstola” de Cristo Ressuscitado. Ela, chamada duas vezes pelo nome genérico de “mulher”, representa a nova humanidade sofredora e redimida, a Eva convertida pelo Amor do Esposo, aquele amor perdido no jardim do Éden e agora recuperado no novo jardim (João 19,41) onde tinha descido o seu Amado (Cântico dos Cânticos 5,1).

Ficar e chorar

A vocação de Maria Madalena é animada pelo amor e, ao mesmo tempo, pela fé. Fé e amor são ambos necessários: a fé dá força para caminhar, o amor dá-lhe asas para voar. A fé sem amor não arrisca, mas o amor sem fé pode perder-se em muitos cruzamentos. A esperança é filha de ambos.

São o amor e a fé que fazem Maria Madalena ficar perto do sepulcro, chorar e esperar. Mesmo sem saber bem o porquê. Ao contrário dos dois apóstolos Pedro (figura da fé) e João (figura do amor), que se afastam do sepulcro, a mulher, que reúne em si ambas as dimensões, “fica” e “chora”. O seu ficar é fruto da fé, o seu chorar é fruto do amor. “Ficar” porque a sua fé persevera na busca, não se desanima diante do insucesso, interroga (os anjos e o jardineiro), como a Amada do Cântico dos Cânticos. Espera contra toda a esperança! Até que, ao encontrar o Amado, se atira aos seus pés, abraçando-os na tentativa infrutífera de não o deixar partir (Cântico dos Cânticos 3,1-4).

Hoje nós, discípulos e amigos de Jesus, ao contrário, capitulamos facilmente diante do “sepulcro”, afastando-nos. Falta-nos a fé para esperar que da situação de morte, de vazio e de derrota, possa renascer a vida. Já não temos “fé nos milagres”, não há mais espaço em nós para esperar num Deus capaz de ressuscitar os mortos. Apressamo-nos a fechar esses “sepulcros” com a “grande pedra” (Marcos 16,4) da nossa incredulidade. A nossa missão torna-se então uma luta desesperada contra a morte. Tarefa condenada ao insucesso, porque a morte reina desde o início do mundo. Acabamos por nos contentar com a obra de misericórdia de “sepultar os mortos”, esquecendo-nos de que fomos enviados para os ressuscitar (Mateus 10,8).

Enfrentar o sepulcro é a passagem do Rubicão do apóstolo, a sua travessia do Mar Vermelho (Êxodo 14-15). Sem remover a pedra da nossa incredulidade, para enfrentar e vencer esse terrível inimigo, não veremos a glória de Deus: “Não te disse que, se creres, verás a glória de Deus?” (João 11,40).

Nós não gostamos de chorar, sem dúvida porque amamos pouco. “Chorar é próprio do génio feminino”, dizia João Paulo II. Talvez as mulheres sejam mais capazes de amar. “Onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (Mateus 6,21). O coração de Maria Madalena está sempre naquele jardim, onde deu o adeus ao Mestre, e é por isso que ela está lá e chora. O nosso coração esquece-se demasiado depressa dos seus mortos; preocupado com as “muitas coisas a fazer”, não tem tempo para ficar e chorar com os que sofrem!

A ousadia de ficar e chorar não é estéril. Às lágrimas de Maria Madalena respondem os anjos, que não lhe devolvem o cadáver que ela pede, mas anunciam-lhe que “Aquele que o seu coração ama” está vivo! Mas os seus olhos precisam ver e as suas mãos de tocar o Amado, e Jesus cede finalmente à insistência do coração de Maria e vai ao seu encontro. Quando a chama pelo nome de “Mariam”, o seu coração estremece de emoção ao reconhecer a voz do Mestre.

Ser chamado pelo próprio nome: eis o desejo mais profundo (não confessado) que levamos dentro de nós. Só então a “pessoa” alcançará a plenitude do seu ser e a consciência da sua identidade; até aquele momento terá andado às apalpadelas! Só então poderá dizer, com o fogo de um coração apaixonado, “vi o Senhor” e, nesse dia, como Maria, também nós nos tornaremos testemunhas do Ressuscitado.

“Sim, estamos certos: Cristo ressuscitou de verdade!”
Votos de uma Santa e Alegre Páscoa!

P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ

 

A PÁSCOA. QUE PÁSCOA? Frei Bento Domingues, O.P. 20 Abril 2025

 

A PÁSCOA. QUE PÁSCOA?

Frei Bento Domingues, O.P.

20 Abril 2025

 

1. Hoje, em Portugal como em vários outros países, é dia de Páscoa. A que está reduzida esta festa? Depende da comunidade religiosa que a celebra. A comunidade judaica e as várias comunidades cristãs – católica, ortodoxa, protestantes – têm motivações e rituais diferentes. Não podemos esquecer que o país é cada vez mais diverso sob o ponto de vista religioso ou sem religião ritual[1]. Também sobrevivem, em várias zonas do país, celebrações populares da Semana Santa. Para muita gente, a Páscoa é, simplesmente, um tempo de férias, de viagens, turismo.

O termo páscoa é a transcrição grega e latina do original hebraico pesah e do aramaico pasha’ que remetem para o verbo pasah, que significa passar, saltar.

A celebração da festa da Páscoa está no cerne da experiência bíblica do Antigo Testamento (AT), porque constitui o memorial do acontecimento fundador da história do chamado povo de Deus – o êxodo e a aliança – e da auto comunicação do nome do próprio Deus – IAVÉ – como sinal tangível da sua presença no meio do povo.

A celebração do rito pascal, tal como nos transmite o livro do Êxodo[2], reúne dois ritos procedentes, com toda a probabilidade, de épocas distintas: o rito da imolação do cordeiro primogénito, que constituía uma festa dos pastores, que na primavera aspergiam com o sangue de um cordeiro as vigas das suas tendas, para proteger os homens e os animais dos espíritos maus. E o rito dos pães ázimos, rito agrícola da primavera, em que os camponeses ofereciam os primeiros frutos das suas colheitas. Estes dois ritos ficam unificados e situados no contexto do êxodo do Egipto e do estabelecimento da aliança com IAVÉ.

Desta maneira, o antigo rito nómada do sangue do cordeiro converte-se no sinal e no rito memorial da passagem do Senhor e da passagem do povo para a liberdade. Com efeito, a série de prescrições que são dadas no livro do Êxodo é concluída com a solene declaração: É a páscoa do Senhor (…). Este dia será para vós um memorial. Vós o celebrareis como festa do Senhor, de geração em geração o celebrareis como rito perene.

A celebração cristã da Páscoa tem raízes judaicas, raízes bíblicas, mas é um acontecimento radicalmente cristão de superação do judaísmo, com três momentos significativos, o Tríduo Pascal: a chamada Última Ceia, a Cruz, Vigília Pascal e Domingo da Ressurreição. O universalismo cristão nasce da Páscoa, procura fazer de todos os povos um só povo[3]. Jesus veio para congregar todos os filhos de Deus dispersos[4].

2. A chamada Última Ceia de Jesus[5] com os discípulos era uma ceia nascida no meio judaico. No entanto, os textos apresentam-na, não como uma festa familiar judaica, mas como uma despedida de Jesus com os seus 12 discípulos.

Por isso, é vulgar dizer que, na última ceia, só estavam homens. Conhecendo, porém, o costume dessa época, (não contar mulheres e crianças: Mt 14,21; 15, 38) e a natureza da própria Ceia Pascal (uma ceia ritual, mas familiar, onde todos estão presentes (Ex 12, 1-14), não se poderá, facilmente, “garantir” que estavam só os homens, quando a família de Jesus era constituída por todos e por todas que O seguiam desde a Galileia. Não contar mulheres e crianças não significa que elas não estivessem na última ceia.

Há uma cena espantosa nos Evangelhos sobre as relações familiares. Estando Jesus em missão, chegaram a sua mãe e os seus irmãos e, ficando lado de fora, mandaram-no chamar. Jesus responde com uma interrogação: Quem é minha mãe e meus irmãos? E, percorrendo com o olhar os que estavam sentados à sua volta, disse: Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe[6]. Isto significa que a sua família biológica tem de se converter ao discipulado de Jesus. O que conta no Novo Testamento não é a condição biológica, mas a opção pelo caminho aberto por Jesus.

As narrativas da crucifixão mostram que os discípulos não tiveram atitude de discípulos, fugiram. Quem ficou? Perto da cruz de Jesus[7], permaneciam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas e Maria Madalena. Não há nenhum homem nessa lista, nem sequer a designação de discípulo amado. Continuando, Jesus, então, vendo sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem amava, disse à sua mãe: Mulher, eis o teu filho! Depois disse ao discípulo: Eis a tua mãe! E a partir dessa hora, o discípulo recebeu-a na sua casa.

Entre as várias narrativas da Ressurreição, opto por um fragmento do Evangelho de S. João[8]. A originalidade da narrativa deste Evangelho é o facto de ter sido o próprio Jesus Ressuscitado que constituiu Maria Madalena a evangelizadora dos que deveriam ser os evangelizadores. É ela a Apóstola dos apóstolos. Esta expressão recebemo-la de Hipólito, bispo de Roma (século III) e Santo Agostinho (século V), nada complacente com as mulheres, dirá que «os apóstolos, futuros evangelistas, receberam das mulheres o anúncio do Evangelho». Nada mais conforme com os textos sobre a ressurreição: Vai e diz aos meus irmãos… Maria Madalena foi anunciar aos discípulos: “Vi o Senhor” e as coisas que ele lhe disse.

A confusão em que ela vive é vencida pelo próprio Jesus que a envia a congregar os discípulos dispersos que agiram como quem não tem esperança perante a morte.

Este acontecimento central, que devia afirmar o papel primordial das mulheres na Igreja, foi incompreensivelmente esquecido[9].

3. Em todos os lugares, seja de que país for, a tarefa desta Páscoa não deveria ser só celebrar os ritos, mas alterar o rumo das sociedades, a situação das vítimas da guerra, da fome, da falta de uma ecologia integral.

A questão que se nos devia impor é esta: este mundo não poderá ser de outra maneira? A própria noção de criação é a de colocar o mundo sob a nossa responsabilidade.

Não se pode perder de vista que só nos salvamos através da salvação dos outros, através da convivialidade, através de tudo o que faz do ser humano o companheiro do outro, o irmão do outro, porque a expressão máxima do diálogo com Deus é sempre estender a mão a quem precisa[10].

O Crucificado, o rejeitado por uma coligação de interesses, abriu, a todos, o caminho e o processo da ressurreição. Jesus, ao perdoar aos próprios inimigos, ao entregar nas mãos do Deus vivo aqueles que o entregavam à morte, consumou a sua insurreição contra tudo o que degrada e separa os seres humanos, isto é, o poder do ódio, o poder da morte. A partir daquele momento Jesus Cristo era, é e será para sempre uma vida dada.

Que a celebração da Ressurreição de Cristo nos ajude a procurar os bons caminhos para vencer as raízes dos ódios que ensanguentam a terra.

A todos uma santa Páscoa!

 



[1] Cf. Alfredro Teixeira, Religião na sociedade  portuguesa, FFMS, 2019, p. 56.

[2] Cf. Êxodo 12, 1-13; 16

[3] Cf. Ef 2

[4] Jo 11,52

[5] Mc 14, 12-25 e par. Jo 13 é substituída pelo Lava pés.

[6] Mc 3, 31ss e par

[7] Jo 19, 25-27

[8] Cf. Jo 20, 1-18

[9] Cf. A. Cunha de Oliveira, Jesus de Nazaré e as Mulheres, Instituto Açoriano da Cultura, 2011 e Maria Julieta Mendes Dias | Paulo Mendes Pinto, Maria Madalena, a Apóstola dos Apóstolos, Edições Universitárias Lusófonas, 2023, 67-94

[10] Cf. Daniele Mencarelli, Tudo Pede Salvação, Paulinas Edirora, 2025

sábado, 12 de abril de 2025

 O Senhor precisa do jumentinho! - P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ

 

O Senhor precisa do jumentinho!

Ano C – Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor
Lucas 19,28-40 (Bênção dos ramos)
Lucas 22,14-23,56 (Paixão do Senhor)

Com o Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, iniciamos a Semana Santa, também chamada de Grande Semana. O rito da bênção e da procissão com os ramos de oliveira e palmas marca o fim da Quaresma, enquanto a liturgia da Palavra – especialmente com a leitura da Paixão – abre o tempo de preparação imediata para a celebração do mistério da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, ou seja, o Tríduo Pascal, coração do ano litúrgico. A Igreja e os seus filhos vivem esta semana como um “retiro espiritual”, em recolhimento e oração, em comunhão íntima e profunda com o seu Senhor.

Este domingo tem dois rostos, dois momentos bem distintos. O primeiro: o rito dos Ramos, seguido da procissão, caracterizado pela alegria e entusiasmo. O segundo: a Eucaristia, com a proclamação da Paixão, marcada por tristeza, fracasso e morte. Glória e Paixão, alegria e dor, luz e trevas, bem e mal... estão misteriosamente unidos neste domingo. As duas dimensões revelam que a glória de Deus se manifesta na Paixão de Jesus Crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios, segundo as palavras de São Paulo.

Sigamos também nós “Jesus que caminha à frente de todos, subindo para Jerusalém”, aclamando-o com a multidão festiva: “Bendito o que vem, o rei, em nome do Senhor. Paz no céu e glória nas alturas!”

A) Domingo de Ramos, sem ramos!

1. Domingo do jumentinho. No relato de hoje, Jesus, para revelar a sua soberania e realeza, diz que precisa de um jumentinho! (Mt 21,3; Mc 11,3; Lc 19,31). É a única vez nos Evangelhos em que Jesus afirma “precisar” de algo. Este jumentinho remete a Zacarias 9,9-10: “Eis que vem a ti o teu rei. Ele é justo e vitorioso, humilde, montado num jumento, num jumentinho, filho de jumenta. Ele eliminará os carros de guerra de Efraim e os cavalos de Jerusalém, o arco de guerra será quebrado, e ele proclamará a paz às nações.”

Este jumento, símbolo de humildade, serviço e pobreza, torna-se uma das imagens mais belas e desconcertantes de Deus. O Senhor precisa de “jumentinhos” que sejam testemunhas de Cristo, que na cruz carregou o fardo do pecado de toda a humanidade. Como escreve São Paulo: “Levai as cargas uns dos outros: assim cumprireis a lei de Cristo” (Gálatas 6,2).

2. Domingo dos mantos. “Lançando os seus mantos sobre o jumentinho, fizeram Jesus montar nele. Enquanto ele avançava, estendiam os seus mantos pelo caminho” (Lc 19,35-36). É interessante notar que, enquanto Mateus e Marcos falam de mantos e ramos estendidos no caminho como sinal de aclamação, São Lucas menciona apenas os mantos. Estender os mantos, símbolo da própria vida, era um gesto de submissão ao rei (cf. 2 Re 9,13).

Onde temos nós estendido os nossos mantos? Sobre os lombos dos cavalos dos poderosos? Ou sobre a estrada do sucesso, da riqueza ou do bem-estar? A Páscoa é uma ocasião para despertarmos de enganos ilusórios e nos colocarmos de novo na esteira de Cristo e da sua realeza de paz, humildade e serviço.

3. Domingo do pranto. “Quando se aproximou e viu a cidade, chorou sobre ela, dizendo: Se ao menos neste dia também tu compreendesses o que conduz à paz! Mas agora isso está oculto aos teus olhos.” (Lc 19,41-42). Como há uma primeira vez, haverá também uma última, além da qual será tarde demais. Então haverá “pranto e ranger de dentes” (Lc 13,28). Mas também Deus chora pelas suas visitas perdidas!

B) A sacralidade do relato da Paixão

O relato da Paixão é a parte mais antiga, mais desenvolvida e mais sagrada dos Evangelhos. “Estes últimos capítulos SÃO O EVANGELHO. Os outros capítulos são um comentário. O restante da Bíblia revela-nos Deus de costas: diz-nos o que ele fez por nós. Aqui, porém, vemo-lo face a face, naquilo que ele se fez por nós. Deus já não tem véus: ‘Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que EU-SOU’ (Jo 8,28), ou seja, conhecereis JaHWeH.” (Augusto Fontana)

Os apóstolos eram as “testemunhas da ressurreição”. Como é possível, então, que os cristãos da primeira geração atribuíssem tanta importância à memória da Paixão? Porque reconheceram que o perigo de ignorar a cruz de Cristo era muito real: seria uma traição da mensagem cristã. Este risco, ainda hoje, representa uma grave tentação para muitos cristãos. O querigma, ou seja, o anúncio cristão, é um tríptico que une indissoluvelmente a paixão, a morte e a ressurreição do Senhor!

C) Propostas para interiorizar o relato da Paixão

1. Uma forma de abordar o longo relato é fixar a atenção em cada personagemque intervém neste drama, e perguntar-nos em qual – ou quais – nos vemos refletidos. Cada um de nós tem o seu papel neste drama. Cada personagem interpreta um papel no qual se cumpre a Escritura. Que palavra se cumpre em mim?

2. Uma segunda forma consiste em deter-se na bondade e mansidão de Jesusdurante a Paixão. O Evangelho de Lucas apresenta um Jesus cheio de bondade e mansidão. Mesmo nos momentos mais dramáticos, Lucas destaca a delicadeza e a misericórdia do Senhor: acolhe Judas com doçura, cura o servo ferido, olha para Pedro com amor, consola as mulheres de Jerusalém, perdoa os seus algozes e promete o paraíso ao ladrão arrependido. Mesmo quem o condena ou assiste à sua morte – Pilatos, o povo, o centurião – reconhece a sua inocência e justiça. As suas últimas palavras não são de dor, mas de confiável entrega a Deus: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.”

Acolhamos este olhar de Jesus, que nos cura das nossas fraquezas e infidelidades, renova-nos a sua amizade e confiança, e desperta em nós a alegria e o entusiasmo em segui-lo.
Dirijamos-lhe, por nossa vez, um olhar cheio de ternura, amor e gratidão, com o deslumbramento e o amor apaixonado de São Paulo: Jesus, o Filho de Deus, “amou-me e entregou-se por mim!” (Gálatas 2,20)

3. Uma terceira forma poderá ser simplesmente sentar-se diante do Crucificado, para escutar o que ele nos diz da cátedra da cruz.

Boa entrada na Semana Santa!
P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ


P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

domingo, 6 de abril de 2025

O ENVIADO, FREI GUALTER - MISSÃO EM GUIMARÃES - Alfredo Monteiro (AAAFranciscanos)

 Quando em Junho de 2017 a Família Franciscana Portuguesa iniciou as comemorações dos Oitocentos Anos da presença da Ordem dos Frades Menores(OFM) em Portugal fui convidado a apresentar uma comunicação sobre Frei Gualter e as Festas Gualterianas de Guimarães. E assim aconteceu nas jornadas realizadas, mais tarde, na Universidade Católica do Porto. Proponho-me, agora, retomar o mesmo tema, mas, naturalmente, com a elaboração de um texto mais curto. Como antigo aluno da Escola Franciscana procuro acompanhar os frades Menores de todo o mundo que, neste ano de 2025, comemoram o “Oitavo Centenário do Cântico das Criaturas”, o mais belo poema sobre a Criação, escrito por Francisco de Assis, amigo da Natureza e Irmão de todas as criaturas. E, também,  porque me inspirei na leitura do livro “Santos e Amigos de Deus”, da OFM em Portugal, de Frei Henrique Rema, padre franciscano, académico brilhante da Academia Portuguesa de História, autor de numerosa bibliografia sobre o franciscanismo em Portugal e nas Missões.

Francisco de Assis, na peregrinação a Santiago de Compostela, terá passado pela vila de Guimarães e no contacto com os seus habitantes prometeu-lhes enviar alguns dos seus frades. Cumpriu a promessa, por 1216, enviando para Portugal Frei Zacarias e Frei Gualter. “….Filhos, eu vos tenho destinados para pregardes no Reino de Portugal. Mas sejam as vossas palavras acompanhadas de obras, porque o exemplo monta mais que a doutrina”. Vindos de Itália, separam-se dos seus companheiros de viagem e resistem ao calor abrasador de Agosto das terras de Castela e da Estremadura. Aqui chegados, Frei Zacarias rumou a Alenquer e Frei Gualter a Guimarães.

Antes da partida, Francisco advertiu Frei Gualter que construísse um pequeno convento na vila medieval de Guimarães, como prometera ao seu povo. E assim aconteceu. Enquanto construíam o modesto eremitério da Fonte Santa no monte de Santa Catarina, diríamos, hoje, no sopé da encosta da Penha, os frades alojaram-se no hospital. Dedicavam-se, no seu dia a dia, à pregação pelas ruas da vila, cuidando dos doentes hospitalizados e ajudando os lavradores nas lides do campo. Frei Gualter,  “…Com tanto espírito falava, que os seus ouvintes pediam perdão a Deus e se desfaziam em lágrimas”. A pedido dos fiéis, porque queriam os frades mais próximos, mudaram-se para São Francisco-O-Velho. A maneira austera e contemplativa como viviam atraiu numerosos discípulos à vida religiosa e franciscana.

Após a morte de Frei Gualter, pelo ano de 1259, já os frades menores povoavam várias terras de Portugal: Guimarães, Bragança, Alenquer, Porto e Lisboa. Se em vida era venerado pelos fiéis, a devoção pelo frade cresceu ainda mais. Quando, por 1271, os restos mortais foram trasladados da terra nua para sepulcro de pedra, dentro do Convento, mais aumentou a fama de taumaturgo com os sucessos milagrosos operados por intercessão deste servo de Deus. Posteriormente, em Agosto de 1577, foram novamente trasladados para um sepulcro mais sumptuoso e os prodígios multiplicaram-se! Nesse ano, São Gualter foi declarado padroeiro de Guimarães. A festa, uma das maiores romarias do Norte, celebra-se a 2 de Agosto com imensa participação popular.

O Rei D. Filipe III, por diploma de 20 de Janeiro de 1622, concede que Guimarães celebre, com a maior solenidade, a procissão do Santo. E o Papa Gregório XIII, pela Bula de 17 de Dezembro de 1577, aprovou o seu culto, ampliado pelo Breve de Gregório XV, de 15 de Abril de 1621. E pelo povo foi “canonizado”.

Alfredo Monteiro (AAAFranciscanos)

PRIMEIRA CRÓNICA DE ABRIL Frei Bento Domingues, O.P. 06 Abril 2025

 

PRIMEIRA CRÓNICA DE ABRIL

Frei Bento Domingues, O.P.

06 Abril 2025

 

1. A 25 de Abril de 1974, a chamada revolução dos cravos pôs fim ao regime de Salazar/Marcello Caetano. Este acontecimento continua a provocar abundantes estudos de diversa orientação e com vários significados para o Estado, para a Igreja e para a sociedade.

A Agência Ecclesia e o Centro de Estudos e História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa publicaram uma obra no contexto das celebrações dos 50 anos do 25 de Abril[1]. Como se diz na Introdução, «no seguimento de projectos editoriais anteriores, esta parceria tem o propósito de aproximar a investigação científica de formatos de apresentação e difusão de conteúdos essenciais da História de Portugal».

É uma bela realização que não fica apenas nas relações entre o Estado e a Igreja Católica. Estuda algumas permanências, rupturas e recomposições acerca da guerra, da descolonização, da democracia e do desenvolvimento.

«A comemoração dos 50 anos do 25 de Abril confirma, de forma incontestável, que o presente reflecte sempre o passado, no caso um passado recente, mesmo que não se descubram os ângulos que o projectam».

Como escreveu o poeta David Mourão-Ferreira (1927-1996), Chega-se a este ponto Arrepiar caminho / Soletrar no passado a imagem do futuro / Abrir uma janela Acender o cachimbo / para deixar no mundo uma herança de fumo[2].

No passado Domingo, o Papa Francisco regressou ao Vaticano, mas ainda em convalescença. Já mostrou que não vive alheado do que acontece na Igreja e no mundo. A Igreja não parece que vá desaparecer nem sequer no original estilo de Bergoglio. Segundo o Anuário Pontifício 2024, do ponto de vista global, aumentaram os católicos batizados, os bispos nos continentes asiático e africano e os diáconos permanentes na África, Ásia e Oceania. Diminuíram as chamadas vocações sacerdotais – os padres –, e os religiosos e as religiosas[3].

2. De há uns anos a esta parte, temos uma pluralidade de diferentes manifestações religiosas e, por isso, se fala do diálogo inter-religioso. Por outro lado, esta pluralidade religiosa é também uma pluralidade cultural e política.

Um grupo de jornalistas católicos criaram o 7MARGENS. Apresentam esta iniciativa da seguinte maneira: «é um jornal digital orientado por critérios jornalísticos profissionais e independente de qualquer instituição, religiosa ou outra. Divulga informação sobre o fenómeno religioso, no sentido mais amplo do termo, não se confinando à actualidade das diversas confissões e crenças estabelecidas. Procura dar conta das diferentes formas de busca espiritual que marcam o nosso tempo, desvendando as questões, interrogações e percursos que alimentam essa indagação. Tem consciência de que a informação sobre o fenómeno religioso assim entendido constitui um importante instrumento a favor da paz, da justiça social, do conhecimento mútuo, da tolerância e da cooperação entre os mais diversos actores das nossas sociedades»[4].

Eduardo Lourenço, um grande pensador da filosofia, da religião, da literatura e da música, afirmou numa entrevista que o religioso é constitutivo da natureza humana, da nossa essência como seres livres. Impede-nos de ser limitados por qualquer obstáculo. Mas a cultura ocidental fez da conquista da liberdade a possibilidade de intervir, de dominar o nosso próprio projecto, uma finalidade, laica, da História humana. Na verdade, a forma mais radical de liberdade é da ordem do poético, do religioso. Permite que a Humanidade inscreva a sua pulsão mais radical numa esfera que não é a do demonstrável. Submetemo-nos a uma espécie de loucura divina, para nos salvarmos da loucura autêntica que é a noção de que a nossa essência é a morte. Penso que é um pouco assim[5].

Por sua vez, Wittgenstein perguntava: Que sei eu sobre Deus e o sentido da vida? Sei que este mundo existe. Que estou nele como o meu olho no seu campo visual. Que algo nele é problemático, a que chamamos o seu sentido. Que este sentido não reside nele, mas fora dele. (…) Ao sentido da vida, i.é, ao sentido do mundo, podemos chamar Deus. E associar-lhe a metáfora de Deus como um pai. A oração é o pensamento do sentido da vida. (…) Crer em Deus significa compreender a pergunta pelo sentido da vida. (…) Crer em Deus significa ver que a vida tem um sentido[6].

3. Um dos povos que se considerava religiosamente privilegiado era Israel, o povo de Deus. Um célebre judeu – Jesus de Nazaré – mostrou que conhecia muito bem a Bíblia, mas não estava sempre de acordo com as práticas que se diziam inspiradas nessa Biblioteca sagrada. Uma das suas tarefas mais constantes era a destruição da interpretação que deixava, quase sempre, a mulher mal vista. Neste Domingo, lê-se uma das passagens mais espantosas a este respeito. Vale a pena ler o texto.

«Jesus foi para o Monte das Oliveiras. Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo e todo o povo se aproximou dele. Então, sentou-se e começou a ensinar. Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus uma mulher surpreendida em adultério, colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres. Tu que dizes? Falavam assim para lhe armarem uma cilada e terem pretexto para o acusar. Mas Jesus inclinou-se e começou a escrever com o dedo no chão. Como persistiam em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Inclinou-se novamente e continuou a escrever no chão. Eles, porém, quando ouviram tais palavras, foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos. Ficou só Jesus e a mulher que estava no meio. Jesus ergueu-se e disse-lhe: Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou? Ela respondeu: Ninguém, Senhor. Disse então Jesus: Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar»[7].

Este texto é uma construção prodigiosa. São os adúlteros que vão denunciar uma mulher apanhada em flagrante adultério, como se ela tivesse sido apanhada a cometer adultério sozinha. Quando a acusam, Jesus tem uma reacção espantosa. Devolve a acusação a todos os homens ali presentes: Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Jesus continua a fazer-se distraído até que todos foram abandonando a acusação, a começar pelos mais velhos. Ao ficar sozinho com a mulher, perguntou-lhe se algum a tinha condenado. Nenhum. Jesus limita-se a dizer: também eu não te condeno, mas não voltes a estragar a tua vida.

Nesta passagem, não seguiu a Bíblia! Se a tivesse seguido, participava na opressão das mulheres que ele veio libertar.

 

 

 

 



[1] Cf. 25 de Abril. Permanências, ruturas e recomposições. Edição CEP, 2024

[2] Do Poema Equinócio

[5] Cf. Revista LER, nº 138. Verão de 2015. Terceira Série, p. 38

[6] Tagebücher 1914-1916, Werkausgabe, Vol. I, Suhrkampf, Francoforte, 1984, pp. 167-8

[7] Jo 8, 1-11

Miséria e Misericórdia - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 

Miséria e Misericórdia

Ano C – Quaresma – 5.º Domingo
João 8,1-11: «Vai e não tornes a pecar»

No nosso itinerário quaresmal, os domingos anteriores colocaram no centro o anúncio da misericórdia de Deus e o convite à conversão. Hoje, este caminho atinge o seu auge com o Evangelho da mulher surpreendida em flagrante adultério.

Este texto (João 8,1-11) teve uma história conturbada: ausente nos manuscritos mais antigos, ignorada pelos Padres latinos até ao século IV e nunca comentada pelos Padres gregos do primeiro milénio. É como uma página arrancada do seu contexto original e depois inserida aqui no Evangelho segundo São João. No entanto, muitos estudiosos acreditam que pode pertencer a São Lucas, o evangelista da misericórdia.
Esta passagem era incómoda, pois chocava com a prática penitencial rigorosa dos primeiros séculos, segundo a qual os pecados mais graves – homicídio, adultério e apostasia – só podiam ser perdoados uma vez na vida. No fundo, ainda hoje custa-nos ultrapassar a lógica da justiça para abraçar plenamente a mentalidade da misericórdia.

E tu, o que pensas?

A cena decorre numa manhã no Templo, onde Jesus ensinava o povo. Os escribas e fariseus trazem-lhe uma mulher apanhada em adultério, colocam-na no meio e dizem-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. Ora, Moisés, na Lei, mandou-nos lapidar tais mulheres. E tu, que dizes?»

O evangelista acrescenta que disseram isto para o pôr à prova. A mulher é apenas um pretexto: o verdadeiro acusado é Jesus e a sua misericórdia. Querem ver como Ele se sai desta situação. De facto, se Ele se desviasse da aplicação da Lei, poderiam acusá-lo diante do Sinédrio; se, pelo contrário, se pronunciasse a favor da condenação, alienar-se-ia do povo, que o considerava um mestre bom e compassivo.

A prática de condenar à morte os adúlteros era comum no antigo Médio Oriente – uma prática bárbara que, infelizmente, ainda subsiste hoje nalguns países islâmicos. Encontramo-la também no livro do Levítico 20,10: «Se um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o adúltero e a adúltera serão punidos com a morte» (cf. Dt 22,22). Era um dissuasor do adultério, mas na prática não era rigidamente aplicada no tempo de Jesus. Reparemos, porém, que aqui só está presente a mulher adúltera. E o adúltero, onde está? A lei, portanto, não é aplicada com imparcialidade.

Jesus, em vez de responder, inclina-se e começa a escrever com o dedo no chão, em silêncio. O que escreve Ele? Os pecados dos acusadores, como afirma São Jerónimo? Quantas conjeturas se fizeram a este respeito! A explicação, provavelmente, é bem mais simples: rabiscar no chão pode ter sido uma forma de ganhar tempo, refletir, preparar uma resposta ou até mesmo digerir a irritação causada pela pergunta.

Encontramos apenas três vezes na Escritura a expressão «escrever com o dedo». A primeira é em Êxodo 31,18: o dedo de Deus que escreve a Lei nas tábuas de pedra; a segunda no trecho paralelo em Deuteronómio 9,10; a terceira no livro do profeta Daniel, capítulo 5, quando um dedo de uma mão escreve três palavras na parede da sala do banquete, onde o rei Baltasar estava a profanar os vasos sagrados roubados do Templo de Jerusalém.

O que escreve Jesus? A nova lei do amor e da misericórdia, escrita no pó de que somos feitos, na fragilidade da nossa carne, na nossa vida marcada pela infidelidade e pelo pecado. É a nova lei que Deus prometeu escrever no coração daquele que acredita (Jeremias 31,31-34).

Quem de entre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra!

Jesus mantinha-se em silêncio. Mas, como insistiam em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de entre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra contra ela». Depois, inclinando-se novamente, escrevia no chão.

Jesus não nega a Lei, mas convida a aplicá-la antes de mais a si mesmo. Todos ficam à espera que alguém, «sem pecado», atire a primeira pedra. Mas em vão. Então, um por um, começam a retirar-se. Tinham chegado juntos, confiantes; partem confusos, um a um, começando pelos mais velhos. No chão, ficam as pedras. E com elas, também as máscaras de quem se apresentava como juiz e justo.

Os acusadores da mulher são forçados a olhar para dentro de si, a confrontar-se também com a Lei de Moisés. E acabam por se encontrar no lugar da mulher. Se olharmos verdadeiramente para dentro de nós, deixamos de conseguir condenar alguém. Muitas vezes, inconscientemente, não conseguindo vencer o mal que habita em nós, tentamos combatê-lo fora – nos outros – e assim acabamos por nos sentirmos em paz. Aqui entra a lógica do rebanho: basta que alguém atire a primeira pedra, e todos os outros seguem. Assim, ninguém assume a responsabilidade pelas pedras lançadas. Se não combatemos o mal dentro de nós, ele será sempre «o outro», o inimigo a eliminar.

Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?

Todos se foram embora. Vencidos ou convencidos, não se sabe. E a mulher ficou ali, sozinha, no meio. De um lado, a miséria; do outro, a misericórdia, comenta Santo Agostinho. Então Jesus ergue-se novamente, dirige o olhar para ela e pergunta: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.»

Jesus ergue-se para olhar a mulher. Segundo o sentido literal do verbo grego, Jesus «se endireita», não «se levanta de pé». Ele permanece sentado, em baixo: não nos olha de cima, mas de baixo, pois veio ocupar o último lugar. 
Nesse momento, os dois olhares cruzam-se: o olhar envergonhado, temeroso e triste da mulher, e o olhar puro, doce e compassivo de Jesus. É um olhar diferente, único, que a mulher nunca antes tinha conhecido.
«O que salva é o olhar», diz Simone Weil. O cristão é chamado a reflectir-se neste olhar, todas as manhãs, para tomar consciência de quanto é amado e para purificar o seu olhar sobre os outros e sobre a realidade.

Jesus chama-lhe «Mulher», como chama também a sua Mãe, segundo o Evangelho de João. Assim, restitui-lhe a sua dignidade. E ela chama-lhe «Senhor» – o Senhor que lhe salvou a vida.
Esta mulher representa todos nós, «adúlteros», infiéis ao Esposo. Também nós fazemos parte da «geração adúltera e pecadora» (Marcos 8,38).

Vai e não tornes a pecar!

Então Jesus disse: «Nem Eu te condeno!» Porque «Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele» (João 3,17).
«Vai e não tornes a pecar!» Estás livre do teu passado. A vida foi-te novamente confiada. Tens uma nova oportunidade. Podes recomeçar uma nova vida!

Esta mesma palavra é-nos dirigida a nós nesta Quaresma. Tantas vezes a nossa vida está amarrada ao passado: aos nossos fracassos, ao arrependimento pelas oportunidades perdidas, aos nossos pecados... Mas o Senhor diz-nos: «Não vos lembreis mais das coisas passadas, não penseis nas coisas antigas! Eis que realizo uma coisa nova: já está a germinar, não a vedes?» (Isaías 43,16-21 – Primeira Leitura).
Façamos então como São Paulo: «Esquecendo o que ficou para trás e avançando para o que está à frente, corro para a meta» (Filipenses 3,8-14 – Segunda Leitura).

Pe. Manuel João Pereira Correia, MCCJ



P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org