Crónicas PÁRA E PENSA
Celebrar a Ceia de Jesus
e o Reino da Filadélfia
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Quantos portugueses e portuguesas
saberão que o feriado de anteontem,
Quinta-Feira, é por causa de um banquete: a
festa do Corpo de Deus, precisamente
lembrando a última Ceia de Jesus!
Os primeiros cristãos reuniam-se nas
suas casas, e, recordando essa Ceia e os
banquetes de Jesus na sua vida terrena
enquanto sinal da chegada do Reino da
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Filadélfia (Reino dos amigos e irmãos, que é
isso que quer dizer filadélfia), celebravam
um ágape em sua memória — uma refeição
festiva e fraterna.
Foi só mais tarde que a missa começou a
ser concebida como sacrifício. Com essa
perspectivação cultual sacrificial, apareceu
o sacerdote, e, com a sua celebração diária, a
obrigação do celibato, pois o sacerdote está
separado, à parte: tocando no Corpo do
Senhor não pode tocar a profanidade
impura do corpo da mulher. Na missa,
havia uma imolação e matação de Cristo,
embora se discutisse se essa imolação era
real, moral, mística, ou sacramental.
O sacerdote tinha o poder de "trazer Cristo
à Terra", realizando o milagre da
transubstanciação do pão e do vinho, que
deixavam, por isso mesmo, de ser pão e
vinho.
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Esta concepção arrastou consigo vários
equívocos. Em primeiro lugar, uma
concepção substancialista e coisista da
presença de Cristo. O filósofo Hegel viu
bem o perigo desta coisificação: referindo-se
à celebração da Eucaristia, escreveu que,
segundo a representação católica, "a hóstia
— essa coisa exterior, sensível, não
espiritual — é, mediante a consagração, o
Deus presente — Deus como coisa."
Deste modo, a Eucaristia deixou de ser a
celebração festiva em que todos
participavam activamente, para tornar-se
sacrifício objectivo autónomo, que o padre
até podia celebrar sozinho e que oferecia
pelas almas do purgatório e muitas outras
intenções, com uma remuneração
monetária... De agora em diante, era,
portanto, possível ir à missa — repare-se
nas expressões “ir à missa”, “assistir à
missa” — e não comungar: está-se na missa,
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mas de fora, ignorando que a celebração da
memória de Jesus implica uma real e
autêntica conversão, que consiste na
entrada activa na dinâmica do seu Reino:
Reino da paz, da reconciliação, do amor, da
fraternidade e da verdade. Chegou-se a esta
distorção: é-se convidado para um
banquete, mas é de fora que se assiste à
festa. Por isso é que há o sem-sentido das
"missas oficiais" a que assistem agnósticos,
ateus e indiferentes...
Paradoxalmente, com a interpretação
coisista da presença de Cristo, contra o
sentido profundo do que São Paulo escreve
aos Coríntios — "quem come do pão e bebe
do cálice do Senhor indignamente torna-se
réu do corpo e do sangue do Senhor" —,
muitos cristãos, indo à missa e não
comungando, vêem-se libertos da urgência
da conversão ao projecto da vida de Jesus.
Ora, precisamente nesta não conversão, é
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que, segundo São Paulo, nos tornamos réus
do corpo e do sangue do Senhor, isto é,
culpados da sua morte: de facto, o que São
Paulo condena na comunidade de Corinto
são as suas divisões e que, enquanto uns
comem lautamente, outros passam fome.
É, pois, urgente e necessário ser
consequente: uma vez que se deve partir do
pressuposto de que quem vai à missa — a
própria expressão “ir à missa” diz bem a
passividade do acto — é porque quer
sinceramente entrar no espírito de Jesus,
não se compreende que não comungue.
Nesta mesma dinâmica, a comunhão
também não deveria ser negada às crianças,
que, à sua maneira, participam, com a
família, na celebração da Ceia do Senhor:
nas nossas festividades familiares, também
as não excluímos.
Quando os cristãos se reúnem em
Eucaristia, celebram festivamente o que
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Jesus foi e é, a sua vida, a sua morte, a sua
ressurreição e o seu Reino — o seu Reino já
presente, mas anunciando e esperando a
sua consumação.
P. S.: Amanhã, Domingo, realiza-se o
funeral do bom amigo Padre José Martins
Júnior. Evidentemente, causa sempre
tristeza a partida de um amigo. Mas o
cristão crê com confiança radical racional
que, na morte, ele não caiu no nada mas
entrou na plenitude da vida em Deus e que
havemos de reencontrar-nos.
As celebrações eucarísticas a que presidia
ficam na memória pela alegria e a
participação viva, activa, de todos,
incluindo os mais jovens. Cristão convicto,
Martins Júnior combateu sempre pela
promoção das pessoas, a justiça social e a
fraternidade.
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Tenho muita satisfação em ter
contribuído para a revogação em 2019 pelo
bispo da Diocese do Funchal, Nuno Brás, da
sua suspensão ‘a divinis’ (proibição de
exercer funções sacerdotais).
Continuará a ecoar aquela sua palavra:
“Servi o Povo de Deus e não a Igreja
Católica”.
Sábado, 21 de Junho de 2025