domingo, 22 de junho de 2025

Celebrar a Ceia de Jesus e o Reino da Filadélfia Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

Celebrar a Ceia de Jesus

e o Reino da Filadélfia

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Quantos portugueses e portuguesas

saberão que o feriado de anteontem,

Quinta-Feira, é por causa de um banquete: a

festa do Corpo de Deus, precisamente

lembrando a última Ceia de Jesus!

Os primeiros cristãos reuniam-se nas

suas casas, e, recordando essa Ceia e os

banquetes de Jesus na sua vida terrena

enquanto sinal da chegada do Reino da

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Filadélfia (Reino dos amigos e irmãos, que é

isso que quer dizer filadélfia), celebravam

um ágape em sua memória — uma refeição

festiva e fraterna.

Foi só mais tarde que a missa começou a

ser concebida como sacrifício. Com essa

perspectivação cultual sacrificial, apareceu

o sacerdote, e, com a sua celebração diária, a

obrigação do celibato, pois o sacerdote está

separado, à parte: tocando no Corpo do

Senhor não pode tocar a profanidade

impura do corpo da mulher. Na missa,

havia uma imolação e matação de Cristo,

embora se discutisse se essa imolação era

real, moral, mística, ou sacramental.

O sacerdote tinha o poder de "trazer Cristo

à Terra", realizando o milagre da

transubstanciação do pão e do vinho, que

deixavam, por isso mesmo, de ser pão e

vinho.

3

Esta concepção arrastou consigo vários

equívocos. Em primeiro lugar, uma

concepção substancialista e coisista da

presença de Cristo. O filósofo Hegel viu

bem o perigo desta coisificação: referindo-se

à celebração da Eucaristia, escreveu que,

segundo a representação católica, "a hóstia

— essa coisa exterior, sensível, não

espiritual — é, mediante a consagração, o

Deus presente — Deus como coisa."

Deste modo, a Eucaristia deixou de ser a

celebração festiva em que todos

participavam activamente, para tornar-se

sacrifício objectivo autónomo, que o padre

até podia celebrar sozinho e que oferecia

pelas almas do purgatório e muitas outras

intenções, com uma remuneração

monetária... De agora em diante, era,

portanto, possível ir à missa — repare-se

nas expressões “ir à missa”, “assistir à

missa” — e não comungar: está-se na missa,

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mas de fora, ignorando que a celebração da

memória de Jesus implica uma real e

autêntica conversão, que consiste na

entrada activa na dinâmica do seu Reino:

Reino da paz, da reconciliação, do amor, da

fraternidade e da verdade. Chegou-se a esta

distorção: é-se convidado para um

banquete, mas é de fora que se assiste à

festa. Por isso é que há o sem-sentido das

"missas oficiais" a que assistem agnósticos,

ateus e indiferentes...

Paradoxalmente, com a interpretação

coisista da presença de Cristo, contra o

sentido profundo do que São Paulo escreve

aos Coríntios — "quem come do pão e bebe

do cálice do Senhor indignamente torna-se

réu do corpo e do sangue do Senhor" —,

muitos cristãos, indo à missa e não

comungando, vêem-se libertos da urgência

da conversão ao projecto da vida de Jesus.

Ora, precisamente nesta não conversão, é

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que, segundo São Paulo, nos tornamos réus

do corpo e do sangue do Senhor, isto é,

culpados da sua morte: de facto, o que São

Paulo condena na comunidade de Corinto

são as suas divisões e que, enquanto uns

comem lautamente, outros passam fome.

É, pois, urgente e necessário ser

consequente: uma vez que se deve partir do

pressuposto de que quem vai à missa — a

própria expressão “ir à missa” diz bem a

passividade do acto — é porque quer

sinceramente entrar no espírito de Jesus,

não se compreende que não comungue.

Nesta mesma dinâmica, a comunhão

também não deveria ser negada às crianças,

que, à sua maneira, participam, com a

família, na celebração da Ceia do Senhor:

nas nossas festividades familiares, também

as não excluímos.

Quando os cristãos se reúnem em

Eucaristia, celebram festivamente o que

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Jesus foi e é, a sua vida, a sua morte, a sua

ressurreição e o seu Reino — o seu Reino já

presente, mas anunciando e esperando a

sua consumação.

P. S.: Amanhã, Domingo, realiza-se o

funeral do bom amigo Padre José Martins

Júnior. Evidentemente, causa sempre

tristeza a partida de um amigo. Mas o

cristão crê com confiança radical racional

que, na morte, ele não caiu no nada mas

entrou na plenitude da vida em Deus e que

havemos de reencontrar-nos.

As celebrações eucarísticas a que presidia

ficam na memória pela alegria e a

participação viva, activa, de todos,

incluindo os mais jovens. Cristão convicto,

Martins Júnior combateu sempre pela

promoção das pessoas, a justiça social e a

fraternidade.

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Tenho muita satisfação em ter

contribuído para a revogação em 2019 pelo

bispo da Diocese do Funchal, Nuno Brás, da

sua suspensão ‘a divinis’ (proibição de

exercer funções sacerdotais).

Continuará a ecoar aquela sua palavra:

“Servi o Povo de Deus e não a Igreja

Católica”.

Sábado, 21 de Junho de 2025

O mistério da Presença do Senhor na Eucaristia - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

O mistério da Presença do Senhor na Eucaristia

Ano C – Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo
Lucas 9,11-17: “Dai-lhes vós mesmos de comer”

Sessenta dias após a Páscoa, na quinta-feira depois da Santíssima Trindade, a Igreja celebra a Solenidade do “Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo” (Missal de Paulo VI), também chamada de festa de “Corpus Christi” (Missal de Pio V). Trata-se de uma das três quintas-feiras mais solenes do ano litúrgico: Quinta-feira Santa, Quinta da Ascensão e Quinta do Corpus Christi. Por razões pastorais, em muitos países a festa de Corpus Christi é transferida para o domingo seguinte à Santíssima Trindade. Embora já tenhamos encerrado o tempo pascal, essa referência cronológica estabelece um vínculo desta festa com a Páscoa, além da solenidade da Santíssima Trindade.

As origens desta festividade remontam ao século XIII. Surgida na Bélgica, foi estendida a toda a Igreja pelo Papa Urbano IV em 1264, impulsionado também pelos milagres eucarísticos de Bolsena e de Lanciano. Com estes sinais prodigiosos o Senhor quis consolidar a fé da Igreja na Sua presença real no sacramento da santa Eucaristia, em tempos nos quais alguns a colocavam em dúvida. Os milagres eucarísticos são numerosos (136 documentados), e vários deles bastante recentes. O beato Carlo Acutis, um adolescente falecido aos 15 anos (1991-2006), que será canonizado em breve, foi um entusiasta divulgador desses milagres. Era um grande amante da Eucaristia, que ele chamava de “a autoestrada para o céu”.

A riqueza do relato da multiplicação dos pães

O trecho evangélico de hoje é um dos mais conhecidos: trata-se do relato da multiplicação dos pães e dos peixes. Encontramo-lo nos quatro Evangelhos. Mateus e Marcos o relatam duas vezes, portanto aparece seis vezes. Isso nos faz compreender a importância que os evangelistas atribuem a este milagre.

Cada evangelista, tendo o milagre como pano de fundo, apresenta particularidades, enriquece-o com alusões bíblicas, sublinha ou acrescenta elementos, muitas vezes simbólicos (veja os números: 5 pães + 2 peixes = 7: a totalidade; 5.000 homens: o número dos crentes, cf. Atos 4,4; grupos de 50: ordem, possível referência a Êxodo 18,21-25; 12 cestos: o número das tribos de Israel, a totalidade). Isso explica as divergências nos detalhes e as aparentes incongruências. Para os evangelistas, não é tanto a fidelidade histórica que importa, mas sim a mensagem catequética para suas respectivas comunidades.

Assim, o milagre torna-se como uma “parábola”, uma referência não só à Eucaristia, mas a uma nova visão do mundo: onde o pão é partilhado em fraternidade, sentados e em grupos, ou seja, com ordem e dignidade; onde todos podem comer à saciedade e nada se perde. Este é um modo de apresentar o Reino de Deus (cf. Is 25,6-9).

A multiplicação dos pães nos convida a passar de uma economia do “comprar”, onde cada um deve se virar sozinho, para a do “dar”: “Dai-lhes vós mesmos de comer!”. Caso contrário, acabamos por devorar-nos mutuamente: “Quando comem o seu pão, devoram o meu povo” (Salmo 14,4).

Celebrar a Eucaristia sem aderir a este projeto divino, considerando-o talvez uma utopia, é infidelidade ao mandamento do Senhor: “Fazei isto em memória de mim”. A separação entre Eucaristia e a partilha do alimento faz pairar sobre nossas missas a severa advertência de São Paulo: “o que vocês fazem não é mais a Ceia do Senhor” (1Cor 11,20).

Ao sair da Eucaristia, o cristão deveria retomar o grito de João Paulo II na sua visita ao Peru, quando diante de um milhão de pobres, reunidos na periferia de Lima, em 5 de fevereiro de 1985, após comentar o Evangelho da multiplicação dos pães, exclamou com veemência ao concluir o encontro: “Fome de Deus: Sim! – Fome de pão: Não!”

Da manjedoura de Belém à mesa da Eucaristia

A Eucaristia, contudo, é sobretudo o mistério de uma singular Presença de Jesus na sua Igreja e no mundo, que traduz a sua vontade de permanecer para sempre conosco. Toda a vida de Jesus revela esse seu desejo de permanecer para sempre entre nós.

Todos os Evangelhos o sublinham. Mateus começa anunciando a vinda de Jesus como o Emanuel (“Deus conosco”) e conclui com a afirmação de Jesus ressuscitado: “Eu estarei sempre convosco”. Marcos o introduz com o batismo no Jordão, solidário com seus irmãos, até a cruz partilhada com os malfeitores. Lucas narra o seu nascimento em Belém (“casa do pão”) e diz que Maria “o colocou numa manjedoura” (Lucas 2,7) e, ressuscitado, faz-se reconhecer no partir do pão (24,35). João diz: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (1,14).

Esta vontade do Senhor o leva a tornar-se um peregrino que bate à porta do coração de cada um de nós: “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa, cearei com ele, e ele comigo” (Apocalipse 3,20). Esta é a mensagem profunda da Eucaristia!

Proposta de oração

Louva e agradece ao Senhor pelo dom da Eucaristia com este hino conclusivo da Páscoa judaica:

Mesmo que nossa boca estivesse cheia de hinos como o mar está cheio de água, nossa língua de cânticos como numerosas são as ondas, nossos lábios de louvores como amplo é o firmamento, nossos olhos luminosos como o sol e a lua, nossos braços estendidos como as asas das águias do céu, e nossos pés velozes como os dos cervos, não poderíamos agradecer-Te, ó Senhor nosso Deus, e bendizer Teu Nome, ó nosso Rei, por um só dos mil milhares e miríades de benefícios, prodígios e maravilhas que realizaste por nós e por nossos pais ao longo da história…
Por isso, os membros que distribuíste em nós, o sopro e a respiração que insuflaste em nós, a língua que colocaste em nossa boca Te agradeçam, bendigam, louvem, exaltem, cantem Teu nome, ó nosso Rei, para sempre...”

P. Manuel João Pereira Correia, mccj


P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Deus: o essencial Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Deus: o essencial

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Vivemos imersos em crises que nos

desumanizam, mas a maior, no meu

entender, é vivermos mergulhados no ter,

no prazer, no poder pelo poder, nas redes

sociais, nas tecnologias, no imediatismo, na

vertigem da pressa, esquecendo o ser, o

parar para pensar, a pergunta por Deus...

Enredamo-nos assim no sem sentido...

Com razão, perguntava Karl Rahner,

talvez o maior teólogo católico do século XX

2

— tenho a honra de ter sido aluno: O que

aconteceria, se a simples palavra “Deus”

deixasse de existir? E respondia: “A morte

absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que

eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já

não ouvido por ninguém, de que o Homem

morreu.”

Václav Havel, o grande dramaturgo e

político, pouco tempo antes de morrer,

surpreendeu muitos ao declarar que

“estamos a viver na primeira civilização

global” e “também vivemos na primeira

civilização ateia, numa civilização que

perdeu a ligação com o infinito e a

eternidade”, temendo, também por isso,

que “caminhe para a catástrofe”.

Há uma correlação íntima entre a

concepção de Deus e a concepção do

Homem. Com o eclipse de Deus é o sentido

do mundo que desaparece e o próprio

Homem perde orientação. George Minois

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conclui a sua História do Ateísmo: se,

independentemente da sua resposta,

positiva ou negativa, o Homem já não vir

necessidade de colocar a questão de Deus,

isso significa que, pela primeira vez na sua

História, a Humanidade sucumbe ao

imediatismo, a uma visão fragmentária do

aqui e agora e “abdica da sua procura de

sentido”.

No contexto de uma crise global — crise

financeira, económica, social, política, moral

—, é preciso decisivamente perguntar se a

crise de Deus não ocupa lugar central.

De qualquer modo, a quem não quiser

ficar na pura imediatidade empírica — será

isso possível? — impõe-se a questão do

mistério último da realidade. A pergunta

essencial é então se se opta pela Natureza

impessoal ou pelo Deus transcendente,

pessoal e criador.

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Compreende-se o fascínio em

permanecer na afirmação da Natureza como

força geradora divina de tudo. Esta

concepção é bem resumida pelo filósofo

Marcel Conche, ao escrever que Deus é

inútil, pois a Natureza cria seres que podem

ter ideias de todas as coisas, inclusive da

própria Natureza. Está a referir-se não à

Natureza “oposta ao espírito ou à história

ou à cultura ou à liberdade”, mas à

“Natureza omni-englobante, a physis grega,

que inclui nela o Homem. Essa é a Causa

dos seres pensantes no seu efeito.”

Esta concepção confronta-se, porém, com

objecções de fundo. Por um lado, ao

divinizar a Natureza, põe em causa a

secularização e, consequentemente, a

liberdade. Por outro, tem dificuldades em

explicar como é que a Natureza, que é

impessoal, dá origem à pessoa, como é que

mecanismos da ordem da terceira pessoa

5

acabam por dar origem a alguém que se

vive a si mesmo como eu irredutível na

primeira pessoa.

Neste domínio, houve um debate

significativo entre o matemático P.

Odifreddi e o Papa emérito Bento XVI. Na

sua resposta ao livro de Odifreddi, Caro

Papa, ti scrivo, Bento XVI escreveu uma

longa carta, em parte publicada no jornal

“La Repubblica” de 24 de Setembro de 2013,

referindo precisamente este debate.

Textualmente: “Com o 19º capítulo do seu

livro, voltamos aos aspectos positivos do

seu diálogo com o meu pensamento.

Mesmo que a sua interpretação do

Evangelho segundo São João 1, 1 — “No

princípio era o Logos e o Logos estava com

Deus e o Logos era Deus” — esteja muito

longe do que o evangelista pretendia dizer,

existe, no entanto, uma convergência que é

importante. Mas se o senhor quer substituir

6

Deus por ‘A Natureza’, fica a questão: quem

ou o que é essa natureza. O senhor não a

define em lugar nenhum e, portanto, ela

parece ser uma divindade irracional que

não explica nada. Mas eu quereria

sobretudo fazer notar ainda que, na sua

religião da matemática, três temas

fundamentais da existência humana não são

considerados: a liberdade, o amor e o mal.

Espanta-me que o senhor, com uma única

referência, liquide a liberdade que, contudo,

foi e é o valor fundamental da época

moderna. O amor, no seu livro, não aparece,

e também não há nenhuma informação

sobre o mal. Independentemente do que a

neurobiologia diga ou não diga sobre a

liberdade, no drama real da nossa história

ela está presente como realidade

determinante e deve ser levada em

consideração. Mas a sua religião

matemática não conhece nenhuma

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informação sobre o mal. Uma religião que

ignore essas questões fundamentais

permanece vazia.”

Evidentemente, quem acredita no Deus

transcendente, pessoal e criador sabe que

Deus não é pessoa à maneira das pessoas

humanas, finitas. Deus também não é um

Super-homem. O que se quer dizer é que

Deus não é um Isso, uma Coisa. Como

escreveu o teólogo Hans Küng, “Deus, que

possibilita o devir da pessoa, transcende o

conceito do impessoal: não é menos do que

pessoa”. Não esquecendo que Deus é e

permanece o Inabarcável, o Indefinível, o

Inominável — Gregório de Nazianzo (330-

390) perguntava: “Ó Tu, o para lá de tudo,

não é tudo o que se pode dizer de Ti?” —,

pode dizer-se que é “transpessoal”.

Só nEle pode o ser humano encontrar

sentido, Sentido último.

Sábado, 14 de Junho de 2025

domingo, 15 de junho de 2025

PARA QUANDO A ELEIÇÃO DOS BISPOS? Frei Bento Domingues, O.P. 15 Junho 2025

 

PARA QUANDO A ELEIÇÃO DOS BISPOS?

Frei Bento Domingues, O.P.

15  Junho 2025

 

1. Em Portugal, várias dioceses estiveram muito tempo sem bispo, à espera da decisão do Vaticano. Na Suíça, as estruturas locais da diocese Saint-Gall elegeram o novo Bispo que Leão XIV confirmou a 22 de Maio. Recolhi esta notícia no 7Margens de 23.05.2025.

A 20 de Agosto de 2024, o capítulo da catedral, constituído por 13 membros do clero, abriu nas comunidades diocesanas uma ampla consulta, inspirada no processo sinodal, essencialmente online, envolvendo 173 grupos e 1305 pessoas, para reflectir sobre o perfil que deveria ter o bispo a eleger, face aos desafios da diocese no presente e no futuro.  A partir de 9 de Setembro do mesmo ano, com base nas conclusões da consulta, liderada pelo Instituto Suíço de Sociologia Pastoral, sediado em Saint Gall, o capítulo da catedral chegou a uma lista de seis candidatos cujas trajetórias foram investigadas pela Nunciatura e pelo Dicastério para os Bispos, lista devolvida à diocese, sem objecções, em Abril de 2025.

A diocese de Saint-Gall, criada no século XIX, conserva esse privilégio de eleger o seu bispo. Este acontecimento levanta a seguinte problemática: o que antes era um privilégio veio a encontrar-se, em 2021, com o que tem sido trabalhado em toda a Igreja para que esta se torne uma Igreja sinodal – caminhar juntos. Isto exige a participação em todas as instâncias da diocese, a começar pelo seu bispo.

Nos primórdios do cristianismo, havia vários modelos de evangelização, para que, a partir de Jesus Cristo, se reconhecesse que a Igreja é uma união na diversidade. O que dizia respeito a todos, devia ser tratado por todos. O Espírito da Igreja vem de Deus para transformar as relações humanas, para criar um mundo fraterno, como dizia o Papa Francisco, Fratelli Tutti.

A Carta aos Efésios diz que Cristo é a nossa paz, Ele que, dos dois povos – judeus e gentios –, fez um só povo, destruindo o muro de separação, a inimizade[1]. A vocação dos baptizados é a de acabar com todos os muros. Infelizmente, muitas vezes, participam na sua construção.

O Concílio de Florença, em 1442, excluiu da salvação todos aqueles que não professaram a fé católica. A intransigência deste axioma facilitava o trabalho dos teólogos, definia as fronteiras. Este parecer, tão duro e absurdo, terminou por ser questionado, já que o testemunho da Escritura sobre a bondade de Deus é eloquente: quer que todos os seres humanos se salvem[2].

A história da Igreja já tem mais de 2 mil anos e, nesta história, encontramos fidelidades e traições a Jesus Cristo. É também a história de verdadeiras e falsas reformas, como escreveu o dominicano, Yves Congar[3].

2. O que é um bispo? É um líder religioso com responsabilidades eclesiásticas em diversas tradições cristãs, especialmente na Igreja Católica, Ortodoxa e algumas anglicanas e luteranas. De forma geral, são responsáveis pela governança e administração de uma diocese, ensinando, doutrinando, santificando e representando a Igreja.

Na 1ª Carta a Timóteo, temos uma descrição básica do que ele pensava acerca do Bispo: «É digna de fé esta palavra: se alguém aspira ao episcopado, deseja um excelente ofício. Mas é necessário que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só mulher, sóbrio, ponderado, de bons costumes, hospitaleiro, capaz de ensinar; que não seja dado ao vinho, nem violento, mas condescendente, pacífico, desinteressado; que governe bem a própria casa, mantendo os filhos submissos, com toda a dignidade. Pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará ele da igreja de Deus? Que não seja neófito, para que não se ensoberbeça e caia na mesma condenação do diabo. Mas é necessário também que ele goze de boa reputação entre os de fora, para não cair no descrédito e nas ciladas do diabo»[4].

3. O dominicano português, Frei Bartolomeu dos Mártires (1514-1590), uma das figuras mais relevantes do Concílio de Trento (1545-1563), desenhou o que deve ser o perfil do bispo que, ainda hoje, nos questiona pela sua actualidade, Estímulo de Pastores[5]. Ficou conhecido como o bracarense por causa do permanente desassossego reformador que introduziu na última fase do Concílio de Trento e mais bracarense se tornou, na firme resistência à guerrilha que o poderoso Cabido da Arquidiocese desencadeou contra a efectivação do programa das reformas conciliares, pelas quais sempre lutou e das quais nunca desistiu.

O território da diocese de Braga era, na altura, o que está agora repartido por quatro dioceses: Viana, Braga, Vila Real e Bragança. É normal que todas se sintam herdeiras dos longos e pedregosos caminhos que Frei Bartolomeu percorreu, a pé ou na sua mula, por fidelidade ao lema episcopal que adoptara: arder e iluminar sem nunca se acomodar à desfiguração do mundo e da Igreja do seu tempo[6].

Frei Luís de Sousa (1555-1632) foi o seu exímio biógrafo[7] e Frei Raúl de Almeida Rolo (1922-2004) publicou as suas obras completas com o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian.

Como disse, D. Jorge Ortiga, o Papa Paulo VI ofereceu, no final do Concílio Vaticano II, um exemplar a cada um dos bispos que participaram no Concílio. A oferta foi o reconhecimento da sua actualidade para a renovação da Igreja em todas as coordenadas geográficas. Foi ainda um apelo a todos os bispos para que definissem as prioridades da vida pessoal e, posteriormente, concretizassem o aggiornamento que o Espírito Santo sugeria e continuava a interpelar[8].

Para Frei Bartolomeu dos Mártires era toda a Igreja que precisava mudar, do topo até à base, a começar pelos eminentíssimos cardiais que precisavam de uma eminentíssima reforma.

Os bispos não podiam, como se tornara habitual, viver regaladamente dos bens das dioceses, longe dos diocesanos e os párocos longe das suas paróquias. Tudo, na Igreja, tinha de estar ao serviço das populações, sobretudo dos mais pobres, que devem ser os preferidos da acção das dioceses, das paróquias e das ordens religiosas, varrendo todas as benesses, nepotismos e privilégios por mais antigos que se apresentassem.

Foi o Papa Francisco que autorizou a canonização de Frei Bartolomeu dos Mártires (2019). Tinha descoberto que este Bispo português, do século XVI, tinha vivido, na sua pessoa e na sua acção, o projecto da reforma da Cúria, do conjunto da Igreja e o tinha precedido no combate ao vírus do carreirismo eclesiástico. A sua vida foi um milagre. Não era preciso esperar outro para o canonizar.

 

 

 



[1] Ef 2, 14

[2] Christian Duquoc, OP, El destierro de la Teología, Edições Mensajero, 2006, p. 27

[3] Y.M.-J. Congar, Vraie et fausse réforme dans l’Église, Cerf 1950

[4] 1 Tm 3, 1-7

[5] Traduzido em português e publicado em 2017, Stimulus Pastorum, 1565

[6] Romanos, 12, 2.

[7] Frei Luís de Sousa, A Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Imprensa Nacional, 1984, 76-77.

[8] Estímulo de Pastores (Stimulus Pastorum, 1565), Prefácio, 2017, p. 5

sábado, 14 de junho de 2025

Em tudo o que existe está impresso o Nome da Trindade! - P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ

 Em tudo o que existe está impresso o Nome da Trindade!

Ano C – Solenidade da Santíssima Trindade
João 16,12-15: “O Espírito da verdade vos conduzirá à plena verdade”

Hoje celebramos a solenidade da Santíssima Trindade. Durante o tempo da Quaresma e da Páscoa, experimentamos a ação salvífica do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Neste domingo, após Pentecostes, a Igreja nos convida a contemplar essa ação amorosa das três Pessoas divinas em sua unidade e sinergia.

A Santíssima Trindade é uma festa relativamente recente. Foi introduzida no calendário litúrgico no século XIV e colocada no domingo seguinte ao de Pentecostes, considerado o mais apropriado, visto que a Trindade foi plenamente revelada com a descida do Espírito Santo.

Não celebramos uma verdade do catecismo, encerrada numa formulação dogmática, nem um mistério enigmático. Trata-se de uma realidade viva, bela, surpreendente, que está no coração da boa nova do Evangelho e que São João resume na afirmação: “Deus é amor” (1 João 4,8).

O caminho rumo à fé na Trindade

Todos os cristãos professam a fé na Trindade: “Deus é um só em três Pessoas”. Não encontramos essa definição na Bíblia, e as primeiras gerações cristãs ainda não usavam a palavra “Trindade”. O primeiro a utilizá-la (Trinitas) foi Tertuliano, Padre da Igreja (+240). Sua utilização não foi uma invenção, evidentemente, mas fruto de sua meditação sobre a Sagrada Escritura.

No Novo Testamento, não faltam alusões a essa verdade de fé. A conclusão do Evangelho de Mateus nos oferece a fórmula trinitária mais explícita: “Ide, portanto, e fazei discípulos todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mateus 28,19).

No contexto da fé profundamente monoteísta de Israel, podemos imaginar o quanto foi escandaloso que Jesus se proclamasse Filho de Deus e falasse da pessoa do Espírito Santo. Os primeiros cristãos foram realmente audaciosos ao dar início à fé na Trindade, que será claramente formulada apenas no século IV, nos Concílios de Niceia (325) e de Constantinopla (381). Somente uma convicção profunda, recebida por meio do ensinamento e do testemunho de Jesus, poderia torná-los tão ousados: “A Deus, ninguém jamais viu: o Filho unigênito, que é Deus e está no seio do Pai, foi quem o revelou” (João 1,18).

A Trindade, exigência do amor

Se, por um lado, o mistério da Trindade é difícil de compreender porque contraria a nossa lógica, por outro lado, podemos dizer que é simples, pois é uma exigência do próprio amor. Um Deus em uma única Pessoa seria solipsista: como poderia ser amor? Um amor entre dois poderia tornar-se um amor de reciprocidade, um amor espelhado, no qual os dois amantes se refletem um no outro: ainda é um amor imperfeito. É necessário um Terceiro, que encarne a diversidade e obrigue o amor a sair da lógica da reciprocidade para integrar o diferente.

Deus criou a humanidade “à sua imagem e semelhança” (Gênesis 1,26-27), mas o ícone da Trindade não é o casal, e sim a família: o casal fecundo que acolhe “o outro” e sai da lógica espelhada. Deus é Família. A humanidade carrega em si a marca trinitária. Na Trindade está encerrada a revelação de nossa identidade profunda e de nossa vocação.

Não apenas a família humana, mas toda a realidade traz essa marca trinitária, como diz Bento XVI: “Em tudo o que existe está, de certo modo, impresso o nome da Santíssima Trindade, porque todo ser, até às últimas partículas, é ser em relação; e assim transparece o Deus-relação, transparece, em última instância, o Amor criador. Tudo provém do amor, tende ao amor e se move impulsionado pelo amor, naturalmente com diferentes graus de consciência e de liberdade.” (Ângelus, 7 de junho de 2009)

Dois destaques sobre o Evangelho de hoje

Jesus fala da estreita relação que existe entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A Santíssima Trindade só pode ser compreendida nesse entrelaçamento de relações. Deus é pura Relação. Isso é bem retratado no famoso ícone de Andrei Rublev que, inspirado no relato do Gênesis sobre a visita de Deus a Abraão, pinta três anjos sentados ao redor de uma mesa, cujos olhares se cruzam com infinita ternura.
Também nós somos convidados a entrar nessa intimidade. Podemos dizer que vive no seio da Trindade quem se compromete a criar vínculos, a tecer comunhão, a favorecer relações de fraternidade. “Se vês o amor, vês a Trindade”, diz Santo Agostinho.

Falando do papel específico do Espírito Santo, Jesus afirma que ainda teria muitas coisas a dizer, mas que os discípulos, por ora, não seriam capazes de suportá-las. Pensemos, por exemplo, no peso da Palavra da cruz, tão absurda e escandalosa (cf. 1Cor 1,18-30). Será o Espírito quem os guiará à plena verdade.
Pouco antes, Jesus havia dito a Pedro: “O que eu faço agora, tu não o compreendes; compreendê-lo-ás mais tarde” (João 13,7). Também nós ainda estamos entre esse “agora” e o “depois”. A verdade é um caminho a percorrer. Está sempre à frente, “além” de cada etapa. Só a alcançaremos “depois”, no fim. E cada um deve percorrer esse caminho pessoalmente. Por isso, a verdade deve ser proposta, com paciência e respeito, jamais imposta. Só o Espírito pode iluminar a mente, aquecer o coração e fortalecer a vontade para “nos guiar à plena verdade”.
“O Espírito é a sentinela na proa do meu navio. Anuncia terras que ainda não vejo. Eu dou-lhe ouvidos e aponto o leme na sua direção, e posso agir certo de que aquilo que tarda virá, comportar-me como se a rosa já tivesse florescido, como se o Reino já tivesse chegado.” (Ermes Ronchi)

Exercício de oração:

  1. Fazer o sinal da cruz no início do dia com uma consciência particular de vivê-lo em nome da Trindade.
  2. Repetir com frequência, durante o dia, como um respirar do coração, a doxologia:
    Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo.
  3. Rezemos com Santa Catarina de Sena:
    “Trindade eterna, és como um mar profundo, em que mais procuro e mais encontro; e quanto mais encontro, mais cresce a sede de te buscar. Tu és insaciável; e a alma, saciando-se no teu abismo, não se sacia, porque permanece na fome de ti, cada vez mais te deseja, ó Trindade eterna, desejando ver-te com a luz da tua luz.”

P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Babel e o Pentecostes Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

Babel e o Pentecostes

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Quando, este Domingo, se fala do Espírito

Santo e do Pentecostes, é preciso tomar

consciência de que só se alcança a sua

compreensão adequada, contrapondo o

Pentecostes a Babel e à sua Torre, esse

acontecimento mítico tão conhecido, descrito

no livro primeiro da Bíblia, o Génesis. É um

mito, mas o mito transporta consigo uma

verdade fundamental, "dá que pensar", como

escreveu o grande filósofo do século XX, Paul

Ricoeur.

Diz a Bíblia que Javé, ao ver a maldade dos

homens sobre a Terra, maldade que não

deixava de crescer, se arrependeu de ter criado

o Homen e se sentiu magoado no seu coração.

Por isso, mandou o dilúvio, mas renovou a sua

aliança com Noé e com a criação inteira, aliança

figurada, ainda que de forma ingénua, no arco-

íris, unindo o Céu e a Terra. Mas, um dia,

continua a narrativa do Génesis, os homens

disseram: construamos uma cidade e uma Torre

cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste

projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho

insensatos, aquela hybris – desmesura – que os

gregos também condenavam, porque arrasta

consigo a maldição e a catástrofe, o abismo da

destruição. No meio da arrogância e da

desmesura, os seres humanos, em vez de se

compreenderem e unirem, guerreiam-se e

matam-se nos horrores da barbárie. Aí está o

sentido bíblico da confusão das línguas.

Babel e a sua Torre é um mito de uma

actualidade dramática e mesmo trágica. Note-

se que em capítulos anteriores à narrativa da

Torre de Babel, o livro do Génesis fala do plano

de Deus que quer que a Humanidade cresça e

se multiplique em «povos que de dispersaram

por países e línguas, por famílias e nações».

Assim, o que está em causa neste mito não é de

modo nenhum a dispersão pela Terra nem a

variedade das línguas, que constitui uma

riqueza. O mito põe a nu e denuncia o

imperialismo dominador de uns sobre os

outros, na incapacidade do descentramento de

si para colocar-se no lugar do outro e, no

respeito pela alteridade insuprimível, entrar em

diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é

uma advertência eloquente contra o desígnio

de dominação.

Precisamente em contraponto, noutro livro

da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a

descida do Espírito Santo, no dia do

Pentecostes. «De repente, ressoou, vindo do

céu, um som comparável ao de forte rajada de

vento, que encheu toda a casa. Viram então

aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que

se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um

deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e

começaram a falar outras línguas, conforme o

Espírito lhes inspirava que se exprimissem.» Ao

ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos

ficaram estupefactos, «pois cada um os ouvia

falar na sua própria língua». Atónitos e

maravilhados diziam: «Esses que estão a falar

não são todos galileus? Que se passa então,

para que cada um de nós os ouça falar na nossa

língua materna? Partos, medos, elamitas,

habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da

Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da

Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia

cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos,

cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas

nossas línguas, as maravilhas de Deus!».

No dia de Pentecostes, que deveria ser todos

os dias, na sua intenção mais profunda —, e

cada vez mais tomamos consciência disso — ,

quando se percebeu que o que tem de unir os

seres humanos é a justiça, o amor, a

solidariedade, a fraternidade, o respeito pela

igualdade, os seres humanos, todos, voltaram a

encontrar-se e entenderam-se. No Pentecostes,

restabelece-se a unidade desfeita com a Torre

de Babel. Trata-se, porém, da unidade na

diferença e da diferença na unidade. O amor de

Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E

abre horizontes novos de esperança à

Humanidade solidária.

Na actual situação do mundo globalizado e

mortalmente ameaçado, é urgência maior

pensar numa governança global (não digo um

Governo mundial, mas uma governança global),

para que o império da força da lei ponha limites

ao império da lei da força do mais forte — na

presente situação de crise global, vários pólos

do planeta se perfilam já com intenções de

domínio imperial global — e, neste contexto,

pensar no diálogo multicultural e inter-

religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma

atitude nova de respeito e cuidado da

Natureza, a nossa casa comum, a uma vida

menos centrada no consumo imoderado, no

ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser,

existir e conviver.

Dada a presente crise global, dramática ou

mesmo trágica, quando já sabemos que ou nos

salvamos todos ou nos perdemos todos, penso

que já se devia ter percebido que se impõe um

novo macro-paradigma para o desenvolvimento

e para as relações entre os povos, incluindo a

sua relação com a Natureza. Assim, sejamos

crentes ou não, é claro que isso implica uma

conversão, um espírito novo, que só pode ser o

Espírito Santo, espírito de verdade, de

liberdade, de igualdade, de fraternidade, de

alegria e paz.

Em toda a sua Históra, talvez nunca a

Humanidade tenha estado numa crise tão grave

como aquela que já se vive e se agrava cada vez

mais. É preciso tomar consciência da ameaça

de convulsões em cadeia e inclusivamente da

morte global. A Humanidade pode correr o

risco de cometer um suicídio colectivo.

Relembro uma entrevista recente na qual

um dos intelectuais mais influentes da

atualidade, Yuval Noah Harari, referia o que

qualquer um de nós, se não andar distraído,

constata: «Somos insaciáveis. Não interessa o

que tenhamos conseguido alcançar, queremos

sempre mais. Se temos um milhão, queremos

dois milhões, se temos dois milhões, queremos

dez milhões. O mesmo em relação ao poder:

nunca estamos satisfeitos com o que temos,

porque, na verdade, não sabemos como

traduzir esse poder em felicidade. Somos

milhares de vezes mais poderosos do que

éramos na Idade da Pedra, mas não somos

significativamente mais felizes. Se não

aprendermos a parar, a desacelerar, o mais

provável é que nos destruamos a nós e a todo o

ecossistema.» Concordando com Harari, julgo

que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal

escreveu que a constituição do ser humano

mora ali algures entre o nada e o infinito (le

rien et l´infini). Assim, compreendemos que,

dada a dinâmica humana insaciável, a única

verdadeira tentação, desde o princípio, como se

escreve no Génesis, é querer “ser como Deus”.


sábado, 7 de junho de 2025

Os quatro Pentecostes - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 Os quatro Pentecostes

Ano C – Tempo pascal - 8o domingo - Pentecostes
Evangelho: João 20,19-23

Hoje a Igreja celebra a grande solenidade do Pentecostes, a festa da descida do Espírito Santo, cinquenta dias depois da Páscoa, segundo a narração dos Actos dos Apóstolos (ver primeira leitura). O Pentecostes, que significa Quinquagésimo (dia), do grego, era uma festa judaica, uma das três festas de peregrinação ao templo de Jerusalém: a Páscoa, o Pentecostes e a Festa das Tendas (a festa das colheitas, no Outono). Trata-se de uma festa agrícola de acção de graças pela colheita dos primeiros frutos, celebrada no 50.º dia após a Páscoa. É também chamada de "Festa das Semanas", devido ao facto de ocorrer sete semanas após a Páscoa. Esta festa agrícola, mais tarde, foi associada também à recordação da entrega da Lei ou Torá por Moisés no Monte Sinai.

O Pentecostes cristão é o cumprimento e a conclusão do tempo pascal. É a nossa Páscoa, a passagem para uma nova condição, já não sob o domínio da Lei, mas do Espírito. É a festa do nascimento da Igreja e o início da Missão.

As leituras da festa apresentam-nos, de facto, quatro vindas do Espírito Santo ou quatro modos diferentes mas complementares da Sua presença. Eu diria que são quatro "Pentecostes"!

1. O Pentecostes da Igreja

A primeira leitura (Actos 2,1-11) apresenta-nos uma vinda do Espírito surpreendente, impetuosa e luminosa: 
Quando chegou o dia de Pentecostes, os Apóstolos estavam todos reunidos no mesmo lugar. Subitamente, fez se ouvir, vindo do Céu, um rumor semelhante a forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde se encontravam. Viram então aparecer uma espécie de línguas de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem.
É uma vinda que suscita espanto e admiração, entusiasmo e euforia, consolação e coragem. É absolutamente gratuita, imprevisível e nunca programável. Trata-se de casos excepcionais. Encontramos alguns deles no livro dos Actos, mas houve-os também na história da Igreja, embora não tão vistosos e imponentes, mas sempre de grande fecundidade. De facto, o Pentecostes é sempre seguido de uma primavera eclesial. Deus sabe como precisamos dela, no inverno eclesial que estamos a atravessar no Ocidente! Só a oração incessante da Igreja, a humilde paciência do semeador e a docilidade ao Espírito podem obter uma tal graça!

2. O Pentecostes do mundo

A efusão do Espírito estende-se a toda a criação. É Ele "que dá vida e santifica o universo" (Oração Eucarística III). É Ele que "faz entrar o pólen primaveril no seio da história e de todas as coisas" (Ermes Ronchi). Por isso, com o Salmista, invocámos o Pentecostes sobre toda a terra: "Enviai, Senhor, o vosso Espírito e renovai a face da terra." (Salmo 103). Esta deveria ser uma oração típica e habitual do cristão: invocar o Pentecostes sobre o mundo, sobre as dinâmicas que regem a nossa vida social, sobre os acontecimentos da história. Toda a gente se queixa de "como o mundo vai mal!", do "mau espírito" que o anima, mas quantos de nós fazem a "epiclese" (invocação) do Espírito para que Ele desça sobre as pessoas, as situações e os acontecimentos da nossa vida quotidiana?

3. O Pentecostes dos carismas ou do serviço

O apóstolo Paulo, na segunda leitura (1 Coríntios 12), chama a nossa atenção para uma outra epifania do Espírito: os carismas. "Há vários carismas, mas um só é o Espírito.... A cada um é dada uma manifestação particular do Espírito para o bem comum..." Hoje fala-se muito de carismas e da partilha dos serviços eclesiais, mas há um crescente e preocupante desinteresse das gerações mais jovens. O sacramento da confirmação, o "Pentecostes pessoal", que deveria tornar-se a passagem para a plena participação na vida da Igreja, é infelizmente o momento da deserção. Um sinal claro de que falhámos no nosso objectivo de iniciação cristã. O que é que se deve fazer? A Igreja deverá dotar-se de um "ouvido" extremamente sensível e reforçar as suas "antenas" para perceber a Voz do Espírito neste momento particular da sua história. Atrevo-me a dizer que o problema mais grave é a mediocridade espiritual das nossas comunidades. Preocupados em salvaguardar a ortodoxia e a boa ordem da liturgia, perdemos de vista o essencial: a experiência de fé!

4. O Pentecostes do domingo

A liturgia propõe-nos de novo o evangelho da aparição de Jesus ressuscitado na tarde de Páscoa (João 20,19-23). Um evangelho cheio de ressonâncias pascais:
Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam, com medo dos judeus, veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco». Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo: «A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

Este evangelho é chamado o "pequeno Pentecostes" do evangelho de S. João, porque aqui a Páscoa e o Pentecostes coincidem. O Ressuscitado oferece o Espírito na tarde de Páscoa. Todo este contexto faz pensar na reunião dominical e na Eucaristia. É aí que o Espírito "paira sobre as águas" (Gênesis 1,2) do caos e do medo da morte e traz a paz, a harmonia e a alegria da vida. O papel preeminente do Espírito deve ser redescoberto. Este é o Seu tempo. Sem Ele, não podemos proclamar que "Jesus é o Senhor" (I Coríntios 12,3), nem clamar "Abbá! Pai!" (Gálatas 4,6). Não há Eucaristia sem a intervenção do Espírito. Por isso, entremos na Eucaristia suplicando no nosso coração: Vinde, vinde, Espírito Santo!

Para concluir, como é que navegas no mar da vida: a remos ou à vela?

Respiramos o Espírito Santo. Ele é o oxigénio do cristão. Sem Ele, a vida cristã é lei e dever, é um remar constante, com esforço e cansaço. Com Ele, é a alegria de viver e de amar, é a leveza de navegar à vela. Agora que, depois do tempo pascal, retomamos o tempo comum, com a rotina da vida, como te preparas para navegar: com a força dos remos ou deixando-te levar pelo Vento que sopra na vela desfraldada do teu coração?

P. Manuel João Pereira Correia mccj

domingo, 1 de junho de 2025

A TEOLOGIA DEIXOU DE SER RESERVA DOS PADRES Frei Bento Domingues, O.P. 01 Junho 2025

 

A TEOLOGIA DEIXOU DE SER RESERVA DOS PADRES

Frei Bento Domingues, O.P.

01 Junho 2025

 

1. Na Páscoa deste ano, os católicos, e não só, sentiram a morte do Papa Francisco e acolheram o novo Papa, Leão XIV. Para os católicos, esta é uma referência que só tem sentido no seguimento dos acontecimentos de há 2 mil anos, em torno de Cristo.

Hoje, na liturgia católica, somos confrontados com o começo da Igreja contado em Os Actos dos Apóstolos. Como diz Frederico Lourenço, é uma obra superlativamente bem escrita que, para lá das suas magníficas qualidades literárias (dir-se-ia mesmo cinematográficas – tal é a vivacidade pictórica da narrativa, carregada de suspense e povoada de personagens retratadas com estudado realismo a viver situações extremas de perigo, pranto e exaltação), exerce também pela sua temática um especial fascínio, devido ao facto de nos descrever o dia seguinte após ter sido cumprida, na Terra, a missão de Jesus.

O livro tem um objectivo declarado de narrar as primeiras etapas do novo movimento religioso inspirado na vida e testemunho de Cristo e, sendo o herói da narrativa o apóstolo Paulo, este texto constitui, para muitos leitores ainda hoje, um documento fundamental para a reconstituição dos primórdios do cristianismo[i]. Trata-se do segundo livro de S. Lucas (Os Actos dos Apóstolos), que não pode ser entendido sem tomar a sério o primeiro livro (o seu Evangelho).

Ele próprio confessa: No meu primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio até ao dia em que, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, as suas instruções aos Apóstolos que escolhera, foi arrebatado ao Céu. A eles também apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito do Reino de Deus.

No decurso de uma refeição que partilhava com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o Prometido do Pai, do qual – disse Ele – me ouvistes falar. João baptizava em água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis baptizados no Espírito Santo.

Estavam todos reunidos, quando lhe perguntaram: Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel? Respondeu-lhes: Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo. Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem subtraiu-o a seus olhos. E como estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado para o Céu virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o Céu[ii].

2. Se a religião dá um sentido especial à vida, as expressões desse sentido serão plurais. As religiões são diferentes. Aqui, interessa-me destacar um dos aspectos que a convicção cristã assume, neste Domingo da Ascensão de Cristo aos Céus. Se a abordagem da fé não é a da ciência[iii], é de boa higiene mental partir do princípio de que não estamos a falar de um lugar nem das vias de acesso a esse espaço que pudesse ser observado e descrito por qualquer ciência ou técnica, como se Jesus fosse um dos precursores dos astronautas. Basta de representações ridículas da fé. Na pregação, na catequese e na teologia, temos de reflectir sobre a linguagem que a Bíblia e o Credo cristão usam. As "leis" da linguagem simbólica, metafórica, parabólica, poética e narrativa existem para sugerir, dão que pensar, mas não obedecem a uma ligação circunscrita entre os significantes e os significados. Esse tipo de explicações mata a música da linguagem e não dá conta das transformações a que ela convida. A linguagem das transformações espirituais da existência não se lê nem se interpreta com um dicionário.

A Ascensão pode entender-se como a linguagem da fuga à manipulação política de Cristo pelas Igrejas. Jesus tinha vencido essas tentações, mas nunca estarão definitivamente resolvidas. Os Actos dos Apóstolos, a primeira história da Igreja, começam por essas permanentes ambições dos discípulos: Senhor, será agora que ides restaurar a realeza em Israel? Cristo parece cansado com essa pergunta recorrente. Dissera tantas vezes que não veio ao Mundo para mandar, mas para servir a esperança e a transformação da vida e eles sempre na mesma... Agora, confessa que só o Espírito de Deus lhes poderá dar a volta e é o único dom que ele tem para a Igreja.

É também recorrente a pergunta: onde estarão as pessoas que amamos e morreram? Não aconselho ninguém a ir ao cemitério. Creio que estão no coração de Deus, a casa definitiva de todos. Se me perguntam onde é e como é, atrevia-me a dizer que é tão grande como o amor de Deus, tão invisível e presente como Ele. Não procuro outro Céu.

3. Hoje, a teologia já não é reserva dos padres, como acontecia no passado. As mulheres ainda se queixam, e com razão, de lhes ser negado o acesso aos ministérios ordenados, mesmo quando são teólogas.

Uma freira austríaca, Martha Zechmeister, teóloga e professora em El Salvador, enviou uma carta aberta a Leão XIV. Depois de apontar vários aspectos semelhantes no seu percurso e no do novo Papa, insiste em que chegou o momento de alterar a situação de descriminação das mulheres, na Igreja, porque muito já se falou e escreveu.

Consta dessa carta o que a muitos poderá parecer um atrevimento. Não é. É apenas um direito e um dever cristão.

Escreve ao Papa Leão: «és um homem sensato e sensível. Ao ouvir a tua primeira mensagem breve e clara, senti-me muito grata, porque a tua sobriedade e racionalidade contrastam com o populismo irracional dos machões que dominam o mundo. E és canonista. Sabes quanto do aparato da Igreja não é devido ao direito divino, mas surgiu historicamente e é moldado pelo contexto e pela cultura; e quanto disso, portanto, pode mudar. A única coisa que deve ser cânone, regra firme para a forma como organizamos a Igreja, é a forma como Jesus formou a comunidade e como os seus discípulos se reuniram depois do encontro com o Ressuscitado e da efusão do Espírito no Pentecostes. Tudo o resto é obra humana e, portanto, modificável.

(…) Creio que chegou novamente a hora de derrubar muros e dar espaço ao Espírito vivo de Deus.

(…) Não quero que esta Igreja continue a ser um vestígio arcaico, reflectindo uma ordem social insustentável. Quero que ombro a ombro – mulheres e homens – transformemos este mundo. E, para isso, devemos começar já: com a plena integração das mulheres em todos os ministérios de liderança na Igreja. Não mais tarde. Agora.

Com determinação, amor pela Igreja e uma esperança ardente, a tua irmã, Martha».

Continuamos na celebração da Páscoa, Ascensão e Pentecostes. É nesta Luz que nós vemos a Luz!



[i] Cf. Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. II – Novo Testamento. Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, Quetzal, 2016, p.45

[ii] Act 1, 1-11

[iii] Cf. Francisco J. Ayala, Darwin y el Diseño Inteligente, Alianza, 2008.