segunda-feira, 16 de junho de 2025

Deus: o essencial Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Deus: o essencial

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Vivemos imersos em crises que nos

desumanizam, mas a maior, no meu

entender, é vivermos mergulhados no ter,

no prazer, no poder pelo poder, nas redes

sociais, nas tecnologias, no imediatismo, na

vertigem da pressa, esquecendo o ser, o

parar para pensar, a pergunta por Deus...

Enredamo-nos assim no sem sentido...

Com razão, perguntava Karl Rahner,

talvez o maior teólogo católico do século XX

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— tenho a honra de ter sido aluno: O que

aconteceria, se a simples palavra “Deus”

deixasse de existir? E respondia: “A morte

absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que

eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já

não ouvido por ninguém, de que o Homem

morreu.”

Václav Havel, o grande dramaturgo e

político, pouco tempo antes de morrer,

surpreendeu muitos ao declarar que

“estamos a viver na primeira civilização

global” e “também vivemos na primeira

civilização ateia, numa civilização que

perdeu a ligação com o infinito e a

eternidade”, temendo, também por isso,

que “caminhe para a catástrofe”.

Há uma correlação íntima entre a

concepção de Deus e a concepção do

Homem. Com o eclipse de Deus é o sentido

do mundo que desaparece e o próprio

Homem perde orientação. George Minois

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conclui a sua História do Ateísmo: se,

independentemente da sua resposta,

positiva ou negativa, o Homem já não vir

necessidade de colocar a questão de Deus,

isso significa que, pela primeira vez na sua

História, a Humanidade sucumbe ao

imediatismo, a uma visão fragmentária do

aqui e agora e “abdica da sua procura de

sentido”.

No contexto de uma crise global — crise

financeira, económica, social, política, moral

—, é preciso decisivamente perguntar se a

crise de Deus não ocupa lugar central.

De qualquer modo, a quem não quiser

ficar na pura imediatidade empírica — será

isso possível? — impõe-se a questão do

mistério último da realidade. A pergunta

essencial é então se se opta pela Natureza

impessoal ou pelo Deus transcendente,

pessoal e criador.

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Compreende-se o fascínio em

permanecer na afirmação da Natureza como

força geradora divina de tudo. Esta

concepção é bem resumida pelo filósofo

Marcel Conche, ao escrever que Deus é

inútil, pois a Natureza cria seres que podem

ter ideias de todas as coisas, inclusive da

própria Natureza. Está a referir-se não à

Natureza “oposta ao espírito ou à história

ou à cultura ou à liberdade”, mas à

“Natureza omni-englobante, a physis grega,

que inclui nela o Homem. Essa é a Causa

dos seres pensantes no seu efeito.”

Esta concepção confronta-se, porém, com

objecções de fundo. Por um lado, ao

divinizar a Natureza, põe em causa a

secularização e, consequentemente, a

liberdade. Por outro, tem dificuldades em

explicar como é que a Natureza, que é

impessoal, dá origem à pessoa, como é que

mecanismos da ordem da terceira pessoa

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acabam por dar origem a alguém que se

vive a si mesmo como eu irredutível na

primeira pessoa.

Neste domínio, houve um debate

significativo entre o matemático P.

Odifreddi e o Papa emérito Bento XVI. Na

sua resposta ao livro de Odifreddi, Caro

Papa, ti scrivo, Bento XVI escreveu uma

longa carta, em parte publicada no jornal

“La Repubblica” de 24 de Setembro de 2013,

referindo precisamente este debate.

Textualmente: “Com o 19º capítulo do seu

livro, voltamos aos aspectos positivos do

seu diálogo com o meu pensamento.

Mesmo que a sua interpretação do

Evangelho segundo São João 1, 1 — “No

princípio era o Logos e o Logos estava com

Deus e o Logos era Deus” — esteja muito

longe do que o evangelista pretendia dizer,

existe, no entanto, uma convergência que é

importante. Mas se o senhor quer substituir

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Deus por ‘A Natureza’, fica a questão: quem

ou o que é essa natureza. O senhor não a

define em lugar nenhum e, portanto, ela

parece ser uma divindade irracional que

não explica nada. Mas eu quereria

sobretudo fazer notar ainda que, na sua

religião da matemática, três temas

fundamentais da existência humana não são

considerados: a liberdade, o amor e o mal.

Espanta-me que o senhor, com uma única

referência, liquide a liberdade que, contudo,

foi e é o valor fundamental da época

moderna. O amor, no seu livro, não aparece,

e também não há nenhuma informação

sobre o mal. Independentemente do que a

neurobiologia diga ou não diga sobre a

liberdade, no drama real da nossa história

ela está presente como realidade

determinante e deve ser levada em

consideração. Mas a sua religião

matemática não conhece nenhuma

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informação sobre o mal. Uma religião que

ignore essas questões fundamentais

permanece vazia.”

Evidentemente, quem acredita no Deus

transcendente, pessoal e criador sabe que

Deus não é pessoa à maneira das pessoas

humanas, finitas. Deus também não é um

Super-homem. O que se quer dizer é que

Deus não é um Isso, uma Coisa. Como

escreveu o teólogo Hans Küng, “Deus, que

possibilita o devir da pessoa, transcende o

conceito do impessoal: não é menos do que

pessoa”. Não esquecendo que Deus é e

permanece o Inabarcável, o Indefinível, o

Inominável — Gregório de Nazianzo (330-

390) perguntava: “Ó Tu, o para lá de tudo,

não é tudo o que se pode dizer de Ti?” —,

pode dizer-se que é “transpessoal”.

Só nEle pode o ser humano encontrar

sentido, Sentido último.

Sábado, 14 de Junho de 2025

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