Crónicas PÁRA E PENSA
A “modernidade líquida”
e os Dez Mandamentos
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Penso que ninguém pensante duvida que
nos encontramos num tempo convulso de
crises e guerras — actualmente, mais de 50
conflitos armados em curso —, num tempo
obscuro e decisivo, imprevisível, da
História. A crise é dramática, para não dizer
trágica, de contornos não bem definidos,
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global. Ela é, evidentemente, ecológica,
tecnológica — pense-se na IA, com todas a
suas vantagens, é claro, mas também com
os seus imensos perigos —, financeira,
económica, política, social, religiosa, moral,
de valores. Sim, decisivamente, de valores.
De valores vinculantes. A própria
democracia está em crise.
Zygmunt Bauman, um dos maiores
sociólogos e pensadores do nosso tempo,
caracterizou a situação como “modernidade
líquida”. Os laços, íntimos e sociais, são
frágeis. Há o receio de compromissos a
longo termo. Tudo deve ficar em aberto,
para não fechar possibilidades.
Baumann dava o exemplo do amor e da
sua vivência contraditória, dolorosa. Por um
lado, num mundo incerto e instável, “tem-
se mais necessidade do que nunca de um
parceiro leal e dedicado, mas, por outro,
fica-se aterrado com a ideia de
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compromisso (para já não falar de
compromisso incondicional) com este tipo
de lealdade e dedicação.” Há o receio de
perder a liberdade e oportunidades. “E se o
parceiro/a fosse o/a primeiro/a a decidir que
está farto/a, de modo que a minha entrega
acabasse no caixote do lixo? Isto leva então
a tentar realizar o impossível: ter uma
relação segura, mas permanecendo livre,
para poder acabar com ela a cada instante.
Melhor: viver um amor verdadeiro,
profundo, durável, mas revogável a
pedido... Tenho o sentimento de que muitas
das tragédias pessoais derivam desta
contradição insolúvel”.
No fundo, é a recusa do sacrifício. De
facto, querer salvar o amor do turbilhão da
‘vida líquida’ é inevitavelmente custoso,
como é custosa e difícil a vida moral.
Entregar-se a outro ser humano no amor
traz felicidade real e duradoura, mas “não
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se pode recusar o sacrifício de si e esperar
ao mesmo tempo viver o ‘amor verdadeiro’
com que sonhamos”.
Na nossa sociedade, tende-se a substituir
a noção de ‘estrutura’ pela de ‘rede’. É que,
“ao contrário das ‘estruturas’ de outrora,
cuja razão de ser era vincular com laços
difíceis de desfazer, as redes servem tanto
para ligar como para desligar”. Por isso,
Baumann contrapunha ‘liquidez’ e ‘solidez’
das instituições. Afinal, “instituições
sólidas, no sentido de duráveis e
previsíveis, constrangem, mas ao mesmo
tempo tornam possível a acção dos
agentes”.
Pessoalmente, mais do que a imoralidade
preocupa-me a amoralidade. Porque,
quando tudo vale, nada vale, pois tudo é
igual. Uma sociedade sem convicções e
valores comuns partilhados não tem futuro,
porque lhe falta horizonte e sentido. Por
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isso, fonte maior de mal-estar hoje está na
falta de critérios de valor e de orientação.
Neste contexto, a revista alemã STERN
publicou há alguns anos um dossier
subordinado à pergunta: “Os Dez
Mandamentos estão ultrapassados?”
Significativamente, políticos como o então
Ministro Federal das Finanças, W. Schäuble,
realizadores como Wim Wenders, filósofos
como Peter Sloterdijk, declararam que eles
continuam vivos e actuais. De facto, quem
negará actualidade a preceitos como: “Não
farás imagens de Deus, mas respeitarás a
dignidade de todos os seres humanos, sua
imagem”, “Não matarás”, “Não cometerás
adultério”, “Amarás os filhos e respeitarás
os pais”, “Não roubarás”, “Não viverás à
custa dos outros”, “Serás justo com todos“,
“Protegerás a natureza”, “Assumirás as tuas
responsabilidades”?
Referindo-se-lhes como um compêndio
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da sabedoria humana, acumulada ao longo
de séculos, o grande escritor Thomas Mann
disse que eles são “manifestação
fundamental e rocha da decência humana”,
“o ABC da conduta humana”.
Sábado, 4 de Outubro de 2025
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