sábado, 4 de outubro de 2025

A “modernidade líquida” e os Dez Mandamentos - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

A “modernidade líquida”

e os Dez Mandamentos

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Penso que ninguém pensante duvida que

nos encontramos num tempo convulso de

crises e guerras — actualmente, mais de 50

conflitos armados em curso —, num tempo

obscuro e decisivo, imprevisível, da

História. A crise é dramática, para não dizer

trágica, de contornos não bem definidos,

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global. Ela é, evidentemente, ecológica,

tecnológica — pense-se na IA, com todas a

suas vantagens, é claro, mas também com

os seus imensos perigos —, financeira,

económica, política, social, religiosa, moral,

de valores. Sim, decisivamente, de valores.

De valores vinculantes. A própria

democracia está em crise.

Zygmunt Bauman, um dos maiores

sociólogos e pensadores do nosso tempo,

caracterizou a situação como “modernidade

líquida”. Os laços, íntimos e sociais, são

frágeis. Há o receio de compromissos a

longo termo. Tudo deve ficar em aberto,

para não fechar possibilidades.

Baumann dava o exemplo do amor e da

sua vivência contraditória, dolorosa. Por um

lado, num mundo incerto e instável, “tem-

se mais necessidade do que nunca de um

parceiro leal e dedicado, mas, por outro,

fica-se aterrado com a ideia de

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compromisso (para já não falar de

compromisso incondicional) com este tipo

de lealdade e dedicação.” Há o receio de

perder a liberdade e oportunidades. “E se o

parceiro/a fosse o/a primeiro/a a decidir que

está farto/a, de modo que a minha entrega

acabasse no caixote do lixo? Isto leva então

a tentar realizar o impossível: ter uma

relação segura, mas permanecendo livre,

para poder acabar com ela a cada instante.

Melhor: viver um amor verdadeiro,

profundo, durável, mas revogável a

pedido... Tenho o sentimento de que muitas

das tragédias pessoais derivam desta

contradição insolúvel”.

No fundo, é a recusa do sacrifício. De

facto, querer salvar o amor do turbilhão da

‘vida líquida’ é inevitavelmente custoso,

como é custosa e difícil a vida moral.

Entregar-se a outro ser humano no amor

traz felicidade real e duradoura, mas “não

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se pode recusar o sacrifício de si e esperar

ao mesmo tempo viver o ‘amor verdadeiro’

com que sonhamos”.

Na nossa sociedade, tende-se a substituir

a noção de ‘estrutura’ pela de ‘rede’. É que,

“ao contrário das ‘estruturas’ de outrora,

cuja razão de ser era vincular com laços

difíceis de desfazer, as redes servem tanto

para ligar como para desligar”. Por isso,

Baumann contrapunha ‘liquidez’ e ‘solidez’

das instituições. Afinal, “instituições

sólidas, no sentido de duráveis e

previsíveis, constrangem, mas ao mesmo

tempo tornam possível a acção dos

agentes”.

Pessoalmente, mais do que a imoralidade

preocupa-me a amoralidade. Porque,

quando tudo vale, nada vale, pois tudo é

igual. Uma sociedade sem convicções e

valores comuns partilhados não tem futuro,

porque lhe falta horizonte e sentido. Por

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isso, fonte maior de mal-estar hoje está na

falta de critérios de valor e de orientação.

Neste contexto, a revista alemã STERN

publicou há alguns anos um dossier

subordinado à pergunta: “Os Dez

Mandamentos estão ultrapassados?”

Significativamente, políticos como o então

Ministro Federal das Finanças, W. Schäuble,

realizadores como Wim Wenders, filósofos

como Peter Sloterdijk, declararam que eles

continuam vivos e actuais. De facto, quem

negará actualidade a preceitos como: “Não

farás imagens de Deus, mas respeitarás a

dignidade de todos os seres humanos, sua

imagem”, “Não matarás”, “Não cometerás

adultério”, “Amarás os filhos e respeitarás

os pais”, “Não roubarás”, “Não viverás à

custa dos outros”, “Serás justo com todos“,

“Protegerás a natureza”, “Assumirás as tuas

responsabilidades”?

Referindo-se-lhes como um compêndio

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da sabedoria humana, acumulada ao longo

de séculos, o grande escritor Thomas Mann

disse que eles são “manifestação

fundamental e rocha da decência humana”,

“o ABC da conduta humana”.

Sábado, 4 de Outubro de 2025

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