segunda-feira, 15 de julho de 2019

PLURALISMO RELIGIOSO E ORIGINALIDADE CRISTÃ Frei Bento Domingues, O.P.


1. O panorama dos estudos sobre a religião na sociedade portuguesa continua a enriquecer-se. Segundo um Inquérito recente[1], o pluralismo religioso, no território português, está a concentrar-se na Área Metropolitana de Lisboa. Nasce a pergunta: este pluralismo é vivido como diálogo que vai alterando e fecundando os comportamentos de cada grupo ou limita-se a garantir que possam coexistir de forma tolerante ou até indiferente?

A liberdade religiosa está legalmente garantida em Portugal. Segundo um Relatório de 2018[2], não se registaram casos significativos de discriminação por razões religiosas ou abusos de liberdade religiosa que possam ser imputáveis ao Estado ou a outras entidades, nem se perspectivam, num horizonte temporal próximo, tensões sociais, económicas ou políticas que façam prever uma alteração desta situação.

Importa robustecer este clima porque, hoje, tudo é muito frágil. Mas persiste a pergunta: esta coexistência pacífica está a ser activada para alargar e aprofundar a qualidade espiritual das religiões e as suas responsabilidades sociais ou é sinal de crescente indiferença?

Não se pode confundir o diálogo inter-religioso com uma passagem de modelos na qual cada um exibe a sua imagem convencional retocada para ficar bem na fotografia. Sabemos que um confronto é amistoso e crítico quando cada grupo reconhece com verdade: em relação ao passado, nós mudamos muito e vós também.

Com isto não se pretende a abolição das identidades dos diversos movimentos e instituições, desenhadas pela história de fidelidades, inovações e traições, de verdadeiras e falsas reformas[3]. As religiões são construções simbólicas, rituais e organizativas do ser humano, sem garantias de infalibilidade, para configurar o sentido da vida e alimentar a esperança nos bons e nos momentos em que tudo parece perdido.

Como dizia Frei José Augusto Mourão, a era das definições unívocas de religião acabou. Prevalece uma concepção liberal que vai obrigar a que se aceite conviver segundo a ideia de que não há uma saturação do espaço da verdade. O espaço da verdade partilha-se. Há posições, há valores que diferem de religião para religião, de grupo para grupo, de instituição para instituição. Desde que isso não colida com o inegociável, com o indisponível, é possível às pessoas conviverem em paz, sem guerras de religião.

O mito de Babel era a ideia concentracionária de uma única língua, da abolição das diferenças. Era a violência de uma única linguagem. O simbólico derrube da Torre aponta para um valor que nos há-de congregar: se não chegarmos ao diálogo, que cheguemos, no mínimo, à negociação das diferenças[4].

2. Mesmo sem uma definição unívoca de religião, há quem não goste de abrigar o fenómeno cristão sob esse nome. Eduardo Lourenço, por exemplo, tem observações pertinentes acerca deste ponto: «É mais do que discutível que o cristianismo seja uma mística, embora haja, naturalmente, uma mística cristã. É mesmo mais do que discutível que o cristianismo seja uma religião, no sentido antigo e clássico do termo ciceroniano de religare, embora fosse esse o que, exceptuando o horizonte da teologia negativa, se impôs culturalmente».

Explica porquê: «A religio, segundo Cícero, denota a dependência, o laço que ata o homem a Deus. Mas de algum modo esse laço não ata menos Deus ao homem. O cristianismo está aquém ou além desta mútua interdependência. O nome de “Pai”, dado a Deus, não é uma mera antropologização destinada a nomear o que não tem nem pode ter nome – como se fosse “criado” pela nossa nomeação –, mas a pura metáfora do sentimento de pura gratuidade que é a essência do laço que não nos ata a Deus – e muito menos Deus a nós –, mas nos desata de todo o império da necessidade. Deus não é a nossa “propriedade” nem nós a de Deus»[5].

3. O filósofo espanhol, José Antonio Marina, escreveu um ensaio desafiado por outro de sinal contrário, o de Bertrand Russell[6]. Não cabe nesta crónica a discussão que merece. Defende que a religião é a experiência que acompanhou, desde o princípio, a irrupção da criatividade do mundo. O despertar da inteligência humana aconteceu quando um animal peludo bípede compreendeu um signo: o visto converteu-se em símbolo do não visto. Foi, porém, com Jesus que este filósofo percebeu que, apesar de todos os horrores na história humana, o amor de pura generosidade, de pura gratuidade (agapé), acabará por vencer. Confessa que é uma posição individual, optimista e megalómana, mas se Jesus tem razão, «vai ser possível o meu grande sonho: transformar, em todos os registos da nossa vida, o esforço em graça, em agapé». Se o ser humano é um animal simbólico – vendo o que não vê, trazendo para perto o que está longe - a sua fé desafia, mas não contradiz, a razão. Tem olhos e coração que a razão desconhece.

O Cristianismo, nas suas múltiplas expressões, nas suas realizações históricas de pura generosidade e de traições sem nome, está ligado a uma realidade histórica incontornável: Jesus de Nazaré. Tendo em conta a sua prática, as suas parábolas, o dom da sua vida pelos mais abandonados e a recusa de todo o poder de dominação, testemunhou que o Deus de quem se fiou em tudo, até no momento mais dramático da sua existência truncada, é abertura universal a todos os seres humanos, de todos os povos, culturas e religiões.

Jesus não tentou fundar uma nova religião. Indicou a Fonte do seu modo novo de viver para os outros, em liberdade e suscitando vidas em processo contínuo de liberação. É nosso contemporâneo.

Nessa Fonte todos podem beber, banhar-se e renascer criaturas novas[7]. Vidas nascidas do puro Amor (Agapé), para que a sua lei seja a graça do Espírito da liberdade, suprema responsabilidade para que todos tenham vida em abundância. Como? Deixou tudo aberto, em todos os âmbitos, à criatividade humana. Com uma condição: que tudo seja feito, com sabedoria, para servir e nunca para dominar. Avisou: o amor do dinheiro é uma idolatria.



14. Julho. 2019



[1] Alfredo Teixeira, Coord., Inquérito Identidades religiosas em Portugal, CERC-CESOP (2011); Identidades religiosas na Área Metropolitana de Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019 (edição integral online); Alfredo Teixeira, Religião na Sociedade Portuguesa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019.
[2] Liberdade Religiosa no Mundo, Fundação AIS.
[3] Cf. Revista de Espiritualidade, Itinerários espirituais, nº 106-107, 2019; ver também, José María Mardones, As novas formas da religião, Gráfica de Coimbra, 1996. Desde esta obra, o panorama já é mais diversificado.
[4] Cf. José Augusto Mourão, in O Regresso do Sagrado, Livros e Leituras, Lisboa, 1998, 131.
[5] Cf. Público, 26 de Agosto de 2018.
[6] José Antonio Marina, Por qué soy cristiano, Anagrama, Barcelona, 2005. Bertrand Russell, Por qué no soy cristiano. A tradução em português é da Brasília Editora, Porto.
[7] Cf. Romanos 8; Gálatas 5; Jo 3

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