1. Quando comentava com um
amigo o pouco interesse manifestado nos meios de comunicação pelo Sínodo da
Igreja Católica, observou-me que, antes de mais, era preciso mostrar o seu
interesse para além do âmbito confessional.
António Marujo, director do 7Margens, que tem acompanhado o
andamento do Sínodo, conta a reacção de três cardeais – um austríaco, um
mexicano, ambos veteranos, e um terceiro francês, mais novato – ao silêncio
para o exterior que foi pedido aos participantes do Sínodo para evitar a polarização
interna.
O cardeal austríaco Christoph Schönborn, em conversa recente com o
economista Jeffrey Sachs, contou-lhe que na assembleia sinodal se procura fazer
um exercício de escuta dos argumentos de cada participante que nela intervém –
há um tempo de silêncio após um conjunto de meia dúzia de intervenções. «Ah – suspirou
o economista – se o Conselho de Segurança da ONU fizesse só um bocadinho assim,
talvez o mundo tivesse um pouco mais de paz!»
O Papa Francisco procurou alargar o tempo para a
recuperação da sinodalidade de toda a Igreja e não, apenas, dos Bispos. Era essa
a antiga forma de ser Igreja – Igreja de todos e para todos – reafirmada no
Vaticano II e depressa esquecida. Estava previsto só para 2021-2023. Esta data
ficou, apenas, como a sua primeira fase a terminar neste Domingo[1].
O resultado desta primeira sessão será retomado pelos
diferentes movimentos, paróquias e dioceses até Outubro de 2024, recolhendo
novos contributos para a segunda sessão deste importante acontecimento.
Durante a primeira fase, eclodiu uma guerra devastadora que
envolve Israel e Palestina. Consta que o arcebispo católico da província paquistanesa de Punjab, a mais
populosa do país e lar de grande parte da comunidade cristã, exortou os fiéis a
evitarem hinos litúrgicos e salmos de louvor a Israel, temendo uma possível
reação negativa, naquela nação de maioria muçulmana[2].
Não há razões para
escândalo. De facto, no Antigo Testamento (AT) existem dois iaveísmos. Um
nacionalista, baseado na história das relações entre Iavé e Israel, e outro
cósmico que abrange toda a criação, todo o universo, todas as pessoas e todos os
seres vivos.
O grande
exegeta português da Escola Bíblica de Jerusalém, Francolino Gonçalves, O.P. (1943-2017),
insistiu para não se confundirem os dois iaveísmos. Contrariamente
à opinião comum, a fé na criação – o iaveísmo cósmico – não é um elemento recente.
Constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT[3].
A Bíblia não é só o livro de um povo. Nesta perspectiva, pode ser acolhida por
todos os povos e acerca de toda a realidade.
2. O Espírito de Cristo – Deus
à solta – actua em todo o tempo e lugar, não pede licença às estruturas da
Igreja para saber o que pode e deve fazer. O importante é o acolhimento de tudo
o que é bom, dentro e fora das Igrejas e o que fazemos ao mundo em que vivemos.
Quando a Igreja assume o mundo em que vivemos na sua
complexidade, em todas as suas dimensões, para a sua transformação, como acontece
com o Papa Francisco – participante neste Sínodo –, interessa e inquieta
pessoas de boa vontade. Podia dar muitos exemplos. Basta-me referir algumas
vozes.
Viriato Soromenho-Marques, no comentário à Laudato
Deum, exortação apostólica do Papa Francisco, publicada oito anos depois da
Laudato Si’, diz que somos o que fazemos ao mundo.
Identifica três características essenciais
que unem método e conteúdo neste documento de Francisco. O Papa assume uma
perspectiva universal. Pluralismo e multilateralismo não são obstáculos, mas
sim condições de possibilidade de uma consentida unidade humana, ecuménica e
cosmopolita, no enfrentar dos problemas comuns da humanidade contemporânea.
Em segundo
lugar, no pensamento do Papa Francisco vislumbramos um modelo de linguagem que
se articula como uma espécie de esperanto, ecuménico
e laico. Francisco integra num todo fluido e coerente conhecimentos
provenientes das ciências da natureza, das ciências sociais e humanas, da
teologia e da filosofia. Os leitores, mesmo com uma formação académica
reduzida, desde que dotados de uma genuína curiosidade intelectual, têm na
escrita de Francisco o que deve ser a responsabilidade com o presente e o futuro
de todos.
Nenhum leitor sairá desta exortação
com um sentimento de tranquilidade. O Papa Francisco revela-se como o único
líder mundial – religioso, espiritual e político – com coragem inabalável para
não voltar as costas aos titânicos desafios do futuro que comprometem a humanidade
inteira.
Estou convencido que Francisco quis
que, aos leitores, não fosse escondida a verdade sombria de um mundo em perigo.
A exortação fala-nos de uma luta gigantesca pela sobrevivência do mundo e de
valores que nos conferem dignidade como seres humanos. O que está em causa é a
redenção da própria ideia de uma centelha divina habitando no coração da
humanidade. A luta decisiva ainda está em curso e é de nós próprios que nascerá
a esperança que procuramos. Se falharmos, será a herança e a memória de toda a
humanidade histórica que soçobrará[4].
3. Por seu lado, Maria Eugénia
Abrunhosa chamou a atenção para o conhecido escritor israelita, Amos Oz (1939-2018). Foi
também um grande activista político e defensor da Paz no Médio Oriente. Um ano
antes da sua morte foi publicado o seu livro, Caros Fanáticos, já editado em português pela Dom
Quixote, que reúne três ensaios.
Define o fanatismo como «a essência perene da natureza
humana, o gene mau». Não é
característica de um povo ou de uma etnia; é comum a todos os seres humanos.
Tudo o que seja diferente do que ele, fanático, pensa, é para demolir, esmagar,
matar. O grito tristemente conhecido, viva
la muerte, explicita bem este conceito: «A morte, a sua ou a
dos outros… se possível muitos, excita e agita a imaginação do fanático».
Opõe-se assim à vida, considerando o mundo com desprezo. Pretende reabilitá-lo,
sonhando com um paraíso aqui ou noutro mundo, através dessa louca eliminação.
A infantilização da sociedade, a vida levada «como um
entretenimento, o seguidismo, a obediência sem reflexão, o desejo de pertencer
a um bloco humano muito coeso…» estão relacionados com o fanatismo. Mas há
também o «fanatismo antifanático»: exemplo
disso é todo o fervor em Israel e no Ocidente, toda a espécie de
cruzadas para travar a jihad e
toda a espécie de jihades destinadas
a vencer os novos cruzados. É
provável que o único factor capaz de conter a ascensão do Islão radical seja
justamente o Islão moderado[5].
Estas vozes merecem ser escutadas para a segunda
sessão do Sínodo. A linguagem e as iniciativas de Francisco, membro da
assembleia sinodal, já mostraram um possível caminho para todas as pessoas de boa vontade, como diria João XXIII.
29 Outubro 2023
[1] Quando estava
a fazer a redacção final desta crónica, li a Carta ao Povo de Deus. Cf. www.vatcan.va
[2] Cf. 7Margens,
20. 10. 2023
[3] Cf.
Cadernos ISTA, Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, Deus de Amor e de Salvação,
nº 22 (2009) pp. 107-152
[4] Cf. Cf. 7Margens,
07.10.2023 e JL de 18 a 31 de Outubro 2023
[5] Cf. 7Margens,
23.10.2023
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