O crente irradiação da Shekinah de Deus
Ano C – Tempo Pascal – 6º Domingo
João 14,23-29: “Viremos a ele e faremos nele a nossa morada.”
Aproximamo-nos
das festas da Ascensão e de Pentecostes. O Evangelho deste domingo,
como o do domingo passado, oferece-nos um trecho do longo discurso de
despedida de Jesus durante a Última Ceia. Ao anunciar a sua partida, o
ambiente enche-se de tristeza. O abatimento, a perplexidade e o medo
percorrem os discípulos. Jesus tranquiliza-os, convidando-os a não temer
(cf. Jo 14,1.27) e promete que a sua tristeza se transformará em
alegria (Jo 16,20.22).
O dom da paz e o Paráclito
Jesus
procura garantir a coesão do grupo dos discípulos. No domingo passado, o
Senhor entregou-lhes – e a nós – o mandamento do amor. Hoje oferece a
paz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz.” Notemos bem: Jesus não
deseja a paz, Ele a dá! Aquela que fora a sua paz, agora a entrega a
nós. Uma paz tão forte e profunda que nem mesmo a perseguição a pode
suplantar.
Além
disso, Jesus promete outro dom: o Espírito Santo. “O Paráclito, o
Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, Ele vos ensinará tudo e
vos recordará tudo o que Eu vos disse.”
Repetidamente, no seu
discurso, Jesus reafirma esta promessa do envio do Espírito (Jo
14,16-17; 14,26; 15,26; 16,7-11; 16,13-15), acrescentando a cada vez
novos detalhes sobre a missão do Espírito Santo, chamado a continuar a
obra de Jesus.
É o Espírito Santo que torna sólida e duradoura a paz do cristão, pois Ele é o nosso Paráclito – Parákletos em
grego –, ou seja, o “Advogado” que está ao nosso lado como defensor e
consolador. Se o pequeno e desorientado grupo dos apóstolos, composto
por pessoas humildes e analfabetas, conseguiu revolucionar a história do
mundo, isso só se pode explicar com a ajuda de uma força divina: o
Espírito Santo!
A angústia de uma ausência
O
discurso de despedida de Jesus gira em torno do anúncio da sua partida
iminente, que perturba profundamente o grupo. Quatro apóstolos fazem
quatro perguntas a tal propósito. O número quatro é símbolo de
totalidade e universalidade (como os quatro pontos cardeais). Os quatro –
Pedro, Tomé, Filipe e Judas – representam cada um de nós. As perguntas
que fazem a Jesus são também as nossas, aquelas que teríamos feito então
e que continuamos a fazer hoje.
Entramos
numa fase crítica de “mudança de época”, de contornos ainda obscuros,
um desafio inédito: estimulante para alguns, inquietante para outros. Na
nossa cultura ocidental, muitos crentes vivem esta crise como um
“inverno eclesial” e uma “noite escura” da fé. A atmosfera daquela noite
no Cenáculo pode simbolizar e iluminar o nosso presente de aparente
“eclipse” de Deus.
1. Pedro: generosidade e fragilidade. A
primeira pergunta é de Pedro. Ao anúncio da partida, Simão Pedro
pergunta a Jesus: “Senhor, para onde vais?”. Jesus responde: “Para onde
Eu vou, não podes seguir-me agora; seguir-me-ás mais tarde.” Pedro
insiste: “Senhor, por que não posso seguir-Te agora? Darei a minha vida
por Ti!”
Pedro é a imagem do discípulo decidido e generoso, que ama o
seu Senhor, mas não leva em conta a própria fragilidade (cf. Jo
13,36-38). Quantas vezes também nós fizemos promessas semelhantes, para
depois agir com covardia na hora da verdade. O Senhor não se escandaliza
com a nossa fraqueza. Ele sabe esperar: “Seguir-me-ás mais tarde!”
2. Tomé: voluntariedade e incerteza. Jesus
esclarece o objetivo da sua “viagem”: “Vou preparar-vos um lugar.” E
acrescenta: “E do lugar para onde Eu vou, conheceis o caminho.”
Intervém
Tomé, o discípulo prático e concreto, teimoso e voluntarioso: “Senhor,
não sabemos para onde vais; como podemos conhecer o caminho?”
Também
nós, muitas vezes, gostaríamos que o Senhor fosse mais explícito e claro
na nossa vida. Com tantos caminhos atrativos diante de nós,
sentimos-nos frequentemente desorientados.
Jesus responde: “Eu sou o
caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo
14,2-6). O Pai é o destino, e Jesus é o caminho para lá chegar, através
da sua palavra e do seu exemplo.
3. Filipe: idealismo e concretismo. Jesus acrescenta ainda: “Se me conhecestes, também conhecereis o meu Pai; desde agora o conheceis e o vistes.”
Imagino
que o grupo tenha ficado bastante perplexo com esta afirmação do
Mestre, perguntando-se entre si quando teriam visto o Pai. É certo que
Jesus falara continuamente do Pai, chegando a dizer que Ele e o Pai eram
“um só” (Jo 10,30). Mas o Pai, na verdade, nunca O tinham visto!
Então
intervém Filipe e pede: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta!”
(Jo 14,8-10). Filipe, a meu ver, é o tipo de discípulo bom, idealista e
simples. Também nós, por vezes, gostaríamos de “ver” sem mediações. No
entanto, Jesus insiste: é preciso passar pela mediação do Filho. “Quem
me vê, vê o Pai”; “Crede-me: Eu estou no Pai e o Pai está em mim.”
4. Judas: pragmatismo e impaciência. O
quarto discípulo a intervir é Judas, não o Iscariotes, talvez Judas
Tadeu ou um primo de Jesus. Quando Jesus fala de se manifestar a eles,
aos discípulos, ele exclama, um tanto surpreso: “Senhor, como se explica
que Te manifestarás a nós, e não ao mundo?”
Judas é o tipo de
discípulo pragmático e impaciente com o rumo que os acontecimentos estão
a tomar. A sua é uma observação bastante justa e razoável, diríamos.
Eles, os discípulos, já O conheciam e acreditavam n’Ele. Jesus deveria
manifestar-se com sinais e prodígios aos que ainda não criam.
A mesma
coisa já Lhe tinham dito os seus parentes: “Se fazes estas coisas,
manifesta-Te ao mundo” (Jo 7,3-5). A mesma, exata coisa diríamos muitos
de nós hoje. Com crescente preocupação vemos diminuir o número de
crentes, muitas vezes ridicularizados e perseguidos. Os valores
evangélicos têm cada vez menos influência na sociedade. A guerra e a
injustiça alastram... E Deus permanece em silêncio!
A surpresa de uma nova presença
O trecho do Evangelho de hoje apresenta a resposta de Jesus a Judas.
Começa
com uma revelação extraordinária: “Se alguém me ama, guardará a minha
palavra, e o meu Pai o amará, e viremos a ele e faremos nele a nossa
morada.”
Aquele que os céus não podiam conter; que no passado se
limitava a visitar os seus amigos Abraão, Jacó, Moisés...; que Se fazia
presente na Arca da Aliança; que consentiu estabelecer a sua morada (Shekinah) no Templo; que nos últimos tempos Se tornara “Emanuel”, Deus no meio de nós... agora dá um passo ulterior e estabelece a sua Shekinah no coração do crente!
É
algo inaudito, uma realidade misteriosa, íntima e profunda, que talvez
ainda não tenhamos interiorizado. São Paulo percebeu isso muito bem
quando afirmou que somos o Templo de Deus (cf. 1Cor 3,17 e 6,19; veja
também 2Cor 6,16; Ef 3,17; Rom 8,11).
Talvez
achemos isso grande demais para ser verdade. Ou, quem sabe, temos
receio de ser acusados de pietismo, de intimismo ou de espiritualismo?
Contudo, não há um “evangelho” mais belo e, ao mesmo tempo, mais
revolucionário. O coração do crente – movido pelo amor e por uma fé
operosa – torna-se uma espécie de rede (web) de relações de comunhão e de interação entre a humanidade e Deus.
Mas
não pensemos que Deus espera uma recepção cinco estrelas! Basta-Lhe um
coração simples e aberto: com uma mesa, uma toalha e uma flor fresca; o
pão e uma jarra de água fresca (ou melhor ainda, uma garrafa de vinho!)
sobre a mesa; algumas cadeiras em volta; e a porta entreaberta,
convidando o viandante.
A
cada um de nós cabe a fantasia e a criatividade para traduzir tudo isso
em gestos concretos e num estilo de vida. Então seremos a irradiação
da Shekinah, da Morada de Deus, testemunhas da Ressurreição!
Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj
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