À espera de Deus na noite
Ano C – Tempo Comum – 19.º Domingo
Lucas 12,32-48: “Onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração!”
Nestes
domingos estamos a ler o capítulo XII de São Lucas, um entrelaçado de
ditos, ensinamentos e breves parábolas, sem uma clara unidade entre si. A
alguns de nós que o ouvirem em tempo de férias poderá parecer um
Evangelho fora de tempo e fora de lugar. Enquanto procuramos um pouco de
descanso e distração, para esquecer as preocupações da vida, esta
Palavra surpreende-nos, propondo-nos temas demasiado sérios e incómodos.
Talvez por isso o Senhor nos diga, antes de mais: “Não temas, pequeno rebanho, porque ao vosso Pai agradou dar-vos o Reino”.
Vigiando na noite
A
passagem deste domingo tem uma tonalidade de espera apocalíptica,
apresentando a vida cristã como a espera do regresso do Senhor na
“noite”. Três vezes é repetido o convite a estar preparado: “Estejam cingidos os vossos rins e acesas as lâmpadas”; “Estejam preparados, porque, na hora em que não imaginam, vem o Filho do Homem”.
O convite de Jesus a vigiar para não ser surpreendido impreparado à sua
chegada é ilustrado por três breves comparações: a espera do senhor que
partiu para um banquete de casamento, o ladrão e o administrador da
casa.
A
noite que se alterna com o dia é uma metáfora forte da vida. Quantas
vezes nos parece que estamos na escuridão, sem saber para onde ir,
assoberbados pelos problemas, com ameaças que pairam sobre a nossa vida…
Ou a viver tempos obscurecidos pela guerra e pela injustiça, pela
incerteza quanto ao futuro… A Palavra deste domingo ajuda-nos a
compreender e a viver nesta “noite”.
A noite do Êxodo
A primeira leitura (Sabedoria 18,6-9) apresenta esta noite como a noite do Êxodo, quando todo o povo em espera “estabeleceu, de comum acordo, esta lei divina: partilhar, da mesma forma, sucessos e perigos”.
A
vida cristã é um êxodo, um caminho de libertação, muitas vezes marcado
por tentações, pela incerteza nas escolhas feitas, pela nostalgia do
passado… Torna-se, muitas vezes, uma longa noite. Tínhamos imaginado uma
travessia mais rápida e menos cansativa, e que estaríamos depressa
instalados na Terra Prometida. Chegados ao Sinai, Deus disse-nos: “Vós mesmos vistes o que fiz ao Egipto e como vos levei sobre asas de águia e vos trouxe a mim” (Ex
19,4). Pensávamos, portanto, que o pior já tinha passado. Mas o Senhor
entendeu que ainda não estávamos prontos para entrar e que eram precisos
“quarenta anos” de deserto para libertar o nosso coração das
sobreestruturas mentais e dos hábitos que nos mantinham no “Egipto”, na
“casa da escravidão”. Aí ainda estavam os nossos tesouros. E, “onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”.
Eis porque a noite do nosso êxodo será ainda longa. Gritaremos também nós à sentinela do profeta Isaías: “Sentinela, quanto falta para acabar a noite?” E a sentinela responder-nos-á, algo enigmática: “Vem a manhã, mas também a noite; se quereis perguntar, perguntai; convertei-vos, vinde!” (Is 21,11-12). Cabe a cada um de nós escutar e interpretar esta Voz!
A noite da fé
A segunda leitura (Hebreus 11,1-19) apresenta a noite do crente como a noite da fé: “Na
fé morreram todos estes, sem terem obtido os bens prometidos, mas
vendo-os e saudando-os de longe, declarando que eram estrangeiros e
peregrinos sobre a terra”.
A definição de fé que encontramos no início da leitura é surpreendente: “A fé é o fundamento do que se espera e a prova do que não se vê”. Por isso, a noite é o âmbito da fé. Mesmo sendo filhos da luz, “caminhamos na fé e não na visão”(2Cor 5,7). É preciso aceitar e atravessar a noite da fé para aprender a “esperar contra toda a esperança” (Rm 4,18).
A
fé, para quem acredita, é uma escolha radical de vida. Significa
confiar numa promessa de Deus, como Abraão. Há, de facto, duas maneiras
de planear a vida: segundo um projeto pessoal ou segundo uma vocação
orientada por uma promessa de Deus. Projeto provém do latim proiectum (pro-icere, lançar algo para a frente), enquanto promessa provém de promissa (pro-mittere,
enviar para a frente). O projeto planeio-o eu; a promessa é feita por
Deus. O que está a orientar a minha vida: um projeto meu ou uma promessa
de Deus?
A noite da vigília no serviço
Na passagem do Evangelho, Jesus fala três vezes de bem-aventurança: “Felizes os servos a quem o senhor, ao chegar, encontrar vigilantes”; “E se, chegando à meia-noite ou antes do amanhecer, os encontrar assim, felizes serão!”; “Feliz aquele servo a quem o senhor, ao chegar, encontrar a agir assim”.
No Evangelho de Lucas, o uso das palavras “feliz” e “felizes” (do grego μακάριος – makários,
isto é, “feliz”, “abençoado”, “afortunado”) aparece em vários
contextos. Jesus veio revelar-nos o caminho da felicidade. É o caminho
que conduz ao Reino, a meta de todo o homem. Trata-se de um caminho que
permanece ainda hoje escondido e misterioso para muitos, crentes e não
crentes. Apresenta-se de tal forma contra-intuitivo que chega a parecer
uma farsa. Mas tornou-se credível porque Jesus e outros que ousaram
confiar nele o encarnaram. O Evangelho recolheu o traçado e tornou-se o
guia para as mulheres e homens do Caminho, como os Atos dos Apóstolos
definem os cristãos.
O
Caminho é único: é Cristo, mas podemos falar de trilhos diferentes?
Talvez sim. Alguns parecem-nos mais árduos do que outros. Certos, não
nos sentimos capazes de os percorrer. Pensamos na santidade de certos
cristãos ou na “santidade” laica de certas pessoas que se dedicam
heroicamente a aliviar o sofrimento. Inalcançáveis. Pois bem, o trilho
que Jesus nos propõe hoje parece-me acessível a todos. Certamente, é
sempre para percorrer na noite do êxodo e da fé, mas, ainda assim, ao
alcance dos pequenos, dos servos. Não temos de fazer coisas
extraordinárias, mas simplesmente permanecer despertos e fazer aquilo
que é o nosso dever: servir! Um serviço humilde, escondido, talvez até
banal, que não será publicitado nas redes sociais nem procurará likes, mas que é dado como adquirido: “Somos servos inúteis. Fizemos o que devíamos fazer” (Lc
17,10). Não vos parece esta uma versão do “pequeno caminho” do “caminho
do amor simples e confiante”, ao alcance de todos, traçado por Santa
Teresa do Menino Jesus?
P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org
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