1
Crónicas PÁRA E PENSA
O Vaticano e a Palestina
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Com a assinatura da primeira fase do
acordo de paz entre Israel e o Hamas, que
deverá levar à libertação de todos os reféns
em Gaza (incluindo os cadáveres dos
mortos) e de cerca de dois mil presos
palestinianos em Israel, qualquer ser
humano verdadeiramente humano sonha
com o fim do horror e com uma viragem
para o Médio Oriente no sentido da
liberdade, da justiça e da paz.
O Papa Leão XIV saudou este “raio de
esperança na Terra Santa”, animando “as
partes envolvidas a que sigam com
O Vaticano e a Palestina
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Com a assinatura da primeira fase do
acordo de paz entre Israel e o Hamas, que
deverá levar à libertação de todos os reféns
em Gaza (incluindo os cadáveres dos
mortos) e de cerca de dois mil presos
palestinianos em Israel, qualquer ser
humano verdadeiramente humano sonha
com o fim do horror e com uma viragem
para o Médio Oriente no sentido da
liberdade, da justiça e da paz.
O Papa Leão XIV saudou este “raio de
esperança na Terra Santa”, animando “as
partes envolvidas a que sigam com
2
coragem o caminho traçado para uma paz
justa, duradoura e respeitadora das
legítimas aspirações do povo israelita e do
povo palestiniano”. Sim, “dois anos de
conflito deixaram por todo o lado morte,
sobretudo nos corações de quem perdeu
filhos, pais”, assegurando o Papa estar,
“com toda a Igreja”, próximo da “vossa
imensa dor”.
Significativamente, a primeira viagem
apostólica do Papa Leão realizar-se-á de 27
de Novembro a 2 de Dezembro próximo,
indo à Turquia entre 27 e 30 de Novembro
para a comemoração dos 1700 anos do
Concílio ecuménico de Niceia, o primeiro da
história do cristianismo, convocado no ano
de 325 pelo imperador Constantino, e,
depois, deslocar-se-á ao Líbano “pela
possibilidade de anunciar de novo uma
mensagem de paz no Médio Oriente” e a
promoção do diálogo inter-religioso,
sublinhou.
Entretanto, Leão XIV, depois das
queixas da Embaixada de Israel no
Vaticano criticando uma entrevista do
3
Secretário de Estado, Pietro Parolin,
nomeadamente pela “aplicação do termo
‘massacre’ tanto ao ataque genocida do
Hamas do 7 de Outubro como ao legítimo
direito de Israel à legítima defesa”,
defendeu Pietro Parolin: “o cardeal exprimiu
muito bem a opinião da Santa Sé. Há dois
anos, com esse acto terrorista, morreram
mais de 1.200 pessoas”, acrescentando
que “se fala de 67.000 palestinianos que
também foram assassinados”, e sublinhou
que a defesa deve ser proporcional. “Foram
dois anos muito dolorosos. É preciso
pensar em quanto ódio há no mundo.” Ora,
o terrorismo e o ódio “não podem ser
aceites” e lamentou os actos de
“antissemitismo” no mundo: “a existência
— não sei se em aumento ou não — destes
actos de antissemitismo é preocupante”.
Ficam aí algumas declarações
fundamentais da referida entrevista do
Cardeal Pietro Parolin, Secretário de
Estado do Vaticano, concedida no passado
dia 7 de Outubro, que pode ser lida na
íntegra em Religión Digital:
4
“O ataque terrorista praticado pelo
Hamas foi desumano e injustificável... Foi
um massacre indigno e desumano. A
violência brutal contra crianças, mulheres,
jovens, anciãos não pode justificar-se de
modo nenhum. Foi um massacre indigno e,
repito, desumano. A Santa Sé exprimiu
imediatamente a sua total e firme
condenação, pedindo a imediata libertação
dos reféns e exprimindo a sua proximidade
das famílias afectadas durante o ataque
terrorista. Rezámos e continuamos a fazê-
lo, como continuamos a pedir o fim desta
perversa espiral de ódio e violência que
corre o risco de arrastar-nos para um
abismo sem retorno.”
“Hoje a situação em Gaza é ainda mais
grave e trágica do que há um ano, depois
de uma guerra devastadora que custou
dezenas de milhares de vidas. É preciso
recuperar o senso comum, abandonar a
lógica cega do ódio e da vingança, rejeitar a
violência como solução. Os agredidos têm
direito a defender-se, mas inclusivamente a
legítima defesa deve respeitar o parâmetro
5
da proporcionalidade. Desgraçadamente, a
guerra que se seguiu teve consequências
desastrosas e desumanas... É inaceitável e
injustificável reduzir os seres humanos a
meras ‘vítimas colaterais’.”
Os episódios de antissemitismo “são
uma consequência triste e igualmente
injustificada: vivemos de fake news, da
simplificação da realidade. E isto leva a
quem se alimenta dessas coisas a atribuir a
responsabilidade do que acontece em Gaza
aos judeus enquanto tais. Sabemos que
não é assim: também são muitas as vozes
de forte dissidência que se erguem a partir
do mundo judaico contra a forma como o
actual governo de Israel actuou e actua em
Gaza e no resto da Palestina, onde — não
o esqueçamos — o expansionismo amiúde
violento dos colonos quer tornar impossível
o nascimento de um Estado palestiniano.
Vemos o testemunho público das famílias
dos reféns. O antissemitismo é um cancro
que é preciso combater e erradicar: fazem
falta homens e mulheres de boa vontade,
educadores que ajudem a compreender e
6
sobretudo a distinguir... Não podemos
esquecer o que aconteceu no coração da
Europa com a Shoah, devemos
comprometer-nos com todas as nossas
forças para que este mal não volte a
levantar a cabeça. Ao mesmo tempo
devemos assegurar-nos de que os actos de
desumanidade e as violações do direito
humanitário nunca sejam justificados:
nenhum judeu deve ser atacado ou
discriminado por ser judeu, nenhum
palestiniano por sê-lo deve ser atacado ou
discriminado porque — como infelizmente
se ouve — é um ‘terrorista em potência’. A
perversa cadeia do ódio está destinada a
gerar uma espiral que nada pode trazer de
bom. Lamento ver que somos incapazes de
aprender com a história, inclusive com a
história recente, que continua a ser mestra
de vida.”
A propósito de uma pergunta sobre o
plano de Donald Trump: “Qualquer plano
que implique o povo palestiniano nas
decisões sobre o seu futuro e permita pôr
fim a esta matança, libertando os reféns e
7
parando a matança diária de centenas de
pessoas deve ser bem-vindo e apoiado.”
“A Santa Sé, por vezes incompreendida,
continua a pedir a paz, convidando ao
diálogo, utilizando as palavras ‘negociação’
e ‘acordo’, e fá-lo a partir de um profundo
realismo: a alternativa à diplomacia é a
guerra perene, é o abismo do ódio e a
autodestruição do mundo. Devemos gritar
com força: paremos antes de que seja
demasiado tarde. E devemos agir, fazer
todo o possível para que não seja
demasiado tarde. Todo o possível.”
“A Santa Sé reconheceu oficialmente o
Estado da Palestina há dez anos, com o
Acordo Global entre a Santa Sé e o Estado
da Palestina. O Preâmbulo desse acordo
internacional apoia plenamente uma
solução justa, global e pacífica da questão
palestiniana, em todos os seus aspectos,
em conformidade com o direito
internacional e todas as resoluções
pertinentes das Nações Unidas, Ao mesmo
tempo apoia um Estado da Palestina
independente, soberano, democrático e
8
viável, que inclua a Cisjordânia, Jerusalém
Oriental e Gaza. Identifica este Estado não
em oposição a outros, mas capaz de viver
ao lado dos seus vizinhos, em paz e
segurança. Vemos com satisfação que
vários países do mundo reconheceram o
Estado da Palestina. Mas não podemos
deixar de observar com preocupação que
as declarações e decisões israelitas vão na
direcção contrária, isto é, pretendem
impedir para sempre o possível nascimento
de um verdadeiro Estado palestiniano. Esta
solução — o nascimento de um Estado
palestiniano — depois do que aconteceu
nos últimos anos parece-me ainda mais
válida. É o caminho, o de dois povos em
dois Estados, que a Santa Sé seguiu desde
o princípio. Os destinos dos dois povos e
dos dois Estados estão entrelaçados.”
Sábado, 18 de Outubro de 2025
Sem comentários:
Enviar um comentário