1. Perguntaram-me, com razão, na sequência do texto do
Domingo passado: O Sínodo das Famílias até pode ser uma boa ideia, mas que se entende,
hoje, por Família?
O documento de
trabalho para a preparação do Sínodo (2014) apresentou as situações inéditas que teriam estilhaçado, nas últimas décadas, a
significação mais óbvia de família ou assim considerada.
O texto de O. Bonnewijn, reprodução de uma sua conferência em
Cracóvia, tenta descrever e avaliar as chamadas famílias pós-modernas[i].
Estas seriam o resultado de uma desconstrução crítica e de uma reconstrução
livre, com as peças desconjuntadas das concepções tradicionais dos
agregados familiares.
Como é que isso foi acontecendo? Procurando, por um lado,
reinventar - ao sabor e à medida de projectos individuais e sociais - a
constituição e a articulação de laços, papéis, sexos e gerações; por outro,
promovendo, ao máximo, os valores de autonomia criativa e optando - no sentido
ultraliberal do termo – pelo desenvolvimento pessoal, pela qualidade relacional, pelo desabrochamento afectivo e sexual.
Ao concretizar um modelo igualitário, democrático e
contractual, as famílias pós-modernas julgam estar a realizar uma revolução antropológica
e cultural, fruto de um progresso decisivo e irreversível da humanidade.
Nesta perspectiva, as novas concepções seriam o dobrar dos
sinos das famílias-clã pré-modernas, isto é, um sistema patriarcal de tendência
holística, sem espaço privado, cuidando apenas em transmitir a vida e o
património.
O dobrar dos sinos recai
também sobre as famílias nucleares modernas, pelo menos na sua forma
conservadora: um homem entregue à produção, unido a uma mulher destinada à
reprodução e às tarefas domésticas. Este modelo sócio-cultural estaria fundado
sobre a desigualdade dos parceiros e dos seus respectivos papéis, sobre uma
definição naturalista dos sexos e num certo machismo hétero-sexista, sobre
valores do dever, do sacrifício e da rentabilidade industrial. Esse tipo de
família, fabricado pela burguesia, teria sido sacralizado pela Igreja e
difundido como um ideal nas classes trabalhadoras.
2. Estamos, agora,
perante modalidades radicalmente novas de agregação familiar, assim
caracterizadas: modalidade heterossexual, recomposta ou não: um homem e uma
mulher vivendo em conjunto sem compromisso civil ou religioso, com ou sem
filhos; modalidade homossexual, declarada homo-parental, em caso de
parentalidade; modalidade celibatária, declarada monoparental, em caso de
parentalidade; modalidade de casamento institucional, hétero ou homo, aconteça
ou não depois de um divórcio e o que mais possa vir a acontecer.
A desconstrução e a
reconstrução atingem também a paternidade e a maternidade. Com ou sem a ajuda
da biotecnologia dá para haver várias “mães” e vários “pais” (ou nenhuns) da
mesma criança. Introduzindo uma separação entre o biológico e o social
construído, as famílias podem figurar como puros produtos culturais. A família
fundada sobre a diferença dos sexos e sobre a sucessão das gerações estaria ameaçada
de marginalização.
O ideal de uma genealogia clara e coerente que permita à
criança acolher, imaginar, pensar e configurar a sua própria filiação,
respondendo a perguntas elementares, parece também marginalizado: quem é meu
pai, quem é minha mãe, quem são meus avós, os meus tios e tias, os meus primos
e primas?
Os filhos não pediram para nascer nem são consultados à
nascença sobre o modelo cultural em que desejariam crescer, mas um dia vai ser
preciso responder às suas perguntas.
3. O Sínodo
cristão das famílias ainda se torna mais urgente nesta paisagem em mudança. O
amor humano (nas suas expressões eróticas, de amizade e de pura gratuidade) é
mais forte do que a morte e foi interpretado na Bíblia, como parábola da
Aliança indissolúvel de Deus com todos os seres humanos.
Quando duas pessoas convergem em desejar, por amor, fazer
família e resolvem casar, naquele momento, formam um só desejo. Nesse desejo há
uma vontade de que seja para sempre, uma continuidade no tempo. É uma promessa
de constância. Vivemos de acreditar, de prometer, de esperar.
Esquece-se, porém, algo fundamental: a própria declaração de
casamento é mútua, mas não é a dissolução de um no outro. Nenhum é anulado na
sua irrepetível originalidade. São duas fragilidades a convergir numa só
fragilidade, numa só “carne”. Não é o casamento de duas divindades imutáveis,
alheias ao devir, ao tempo, às vicissitudes da vida, ao imprevisível.
O amor de Deus por
nós é indissolúvel em todas as situações. O amor humano, dos seres humanos,
precisa de sabedoria e de prudência para ser fiel a si mesmo. É tarefa diária para
toda a vida e tem de ser do casal.
Quando se pergunta o que pode a Igreja fazer nas situações
acima referidas, pensa-se logo: que poderão fazer o Papa, os bispos, os
cardeais, os monsenhores, os cónegos e os padres? Esquece-se o essencial: estes
são Igreja na medida em que comungam com todos os baptizados. São serviços da
Igreja, mas é o conjunto das famílias que pode evangelizar a família.
25.10.2015
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