domingo, 30 de junho de 2019

ESPIRITUALIDADE, MAS QUE ESPIRITUALIDADE? Frei Bento Domingues, O.P.


1. Será verdade que, no Ocidente, as religiões com os seus dogmas, catecismos, normas morais, esgotaram o prestígio que lhes atribuíram ao longo dos séculos? Ou será apenas a violência, em nome de Deus, que as desacreditou? Seja como for, a religião ganhou às religiões, a religiosidade ganhou à religião, a espiritualidade parece ganhar à religiosidade. O mercado das espiritualidades ganhou ao das religiões a la carte. As espiritualidades e sabedorias do Oriente tiveram um acolhimento inesperado no Ocidente. Mesmo no campo católico, repete-se que o século XXI ou se torna místico ou está perdido.

Quem anuncia um curso de teologia não pode esperar grande adesão, mas se propõe um curso sobre uma espiritualidade desconhecida, e quanto mais desconhecida melhor, terá aos seus pés um mundo de curiosos de todas as novidades esotéricas.

Existem sabedorias e espiritualidades que não estão ligadas a nenhuma confissão religiosa, mas constituem campos de busca de sentido existencial.

Este Papa encerrou uma época, muito recente, confiada aos Prefeitos da Congregação para a Doutrina da Fé, perfeitos em silenciar a liberdade no seio da Igreja.

Ele próprio não tem boas recordações da teologia que teve de frequentar como estudante, uma teologia de manuais, onde estavam previstas e congeladas as teses, as perguntas e as respostas. Desde a Alegria do Evangelho que sonha com «Faculdades de Teologia onde se viva a convivialidade das diferenças, onde se pratique uma teologia do diálogo e do acolhimento; onde se experimente o modelo do poliedro do saber teológico, em vez de uma esfera estática e desencarnada. Onde a investigação teológica seja capaz de se comprometer com um cativante processo de inculturação».

Está convencido que tanto «os bons teólogos, como os bons pastores, têm o cheiro do povo e da estrada e, com a sua reflexão, derramam óleo e vinho sobre as feridas dos homens». Para ele, a teologia deve ser «a expressão de uma Igreja que é um “hospital de campanha”, que vive a sua missão de salvação e de cura no mundo! A misericórdia não é só uma atitude pastoral, é a própria substância do Evangelho de Jesus».

2. O Papa Francisco incita os professores de teologia a que a centralidade da misericórdia se exprima nas várias disciplinas: na dogmática, na moral, na espiritualidade, no direito e assim por diante. «Sem misericórdia, a nossa teologia, o nosso direito, a nossa pastoral, correm o risco de se afundarem na mesquinhez burocrática ou na ideologia que, por natureza, quer domesticar o mistério».

Defende uma teologia do acolhimento que desenvolva «um diálogo sincero com as instituições sociais e civis, com os centros universitários e de investigação, com os líderes religiosos e com todas as mulheres e homens de boa vontade». A construção na paz de uma sociedade inclusiva e fraterna, assim como a protecção da criação, exige a colaboração de todos.

Está convencido de que este modo de proceder dialógico é a via para chegar até onde se formam os paradigmas, os modos de sentir, os símbolos, as representações das pessoas e dos povos. Importa «chegar até esse ponto – como “etnógrafos espirituais” da alma do povo, digamos assim – para poder dialogar em profundidade e, se possível, contribuir para o seu desenvolvimento». É fruto do anúncio do Evangelho do Reino de Deus o amadurecimento de uma fraternidade cada vez mais dilatada e inclusiva.

Nada disto é possível sem liberdade teológica. «Sem a possibilidade de experimentar estradas novas, não se cria nada de novo, e não se dá espaço à novidade do Espírito do Ressuscitado». A quem sonha com uma doutrina monolítica a ser defendida por todos, sem nuances, isto não lhe sabe bem. No entanto, é «essa variedade que ajuda a manifestar e a desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho[1]». Para conseguir este objectivo, é preciso uma revisão adequada da ratio studiorum.

Sobre a liberdade de reflexão, o Papa observa: entre os estudiosos, é preciso avançar com liberdade; depois, em última instância, será o magistério a dizer alguma coisa, mas não se pode fazer uma teologia sem esta liberdade. Na pregação ao Povo de Deus, porém, não se deve ferir a sua fé com questões disputadas. Estas que fiquem entre os teólogos. É a sua tarefa. Ao Povo de Deus é preciso dar a substância que alimente a fé e que não a relativize.

O Papa não está a embarcar numa onda de espiritualismo fácil. Sublinha, pelo contrário, que o “discernimento espiritual” não exclui os contributos de sabedorias humanas, existenciais, psicológicas, sociológicas ou morais, mas transcende-as. «Nem sequer bastam as normas sábias da Igreja. Lembremo-nos sempre de que o discernimento é uma graça. Em suma, o discernimento leva à própria fonte da vida que não morre, isto é, conhecer o Pai, o único Deus verdadeiro, e a quem Ele enviou, Jesus Cristo[2]».

Uma teologia tão alerta só pode gerar uma espiritualidade de olhos bem abertos.

3. A dimensão espiritual, afirmada ou negada, está presente em todas as situações da vida. Como escreve o poeta Carlos Drummond de Andrade: Para isso fomos feitos/ para lembrar e ser lembrados/ para chorar e fazer chorar/ para enterrar os nossos mortos/ para isso temos braços longos para os adeuses/ mãos para colher o que foi dado/ dedos para cavar a terra/ (…) Fomos feitos para a esperança do milagre/ para a participação da poesia/ para ver a face da morte/ de repente nunca mais esperaremos/ hoje a noite é jovem; da morte/ apenas nascemos, imensamente.

Parece que os poetas não acreditam que a vida será regida apenas por super-computadores electrónicos[3]. Também não espero que um dia vá surgir, como pensava Jean Rostand, pílulas (tão obrigatórias como aprender a ler) destinadas a moderar a inveja, a dominar a ambição, a reduzir o desejo de poder, da força, da violência, de predomínio (as verdadeiras calamidades históricas) impondo aos seres humanos um sentido universal de solidariedade.

Isto seria um milagre: o homem tornar-se-ia humano através de um equilíbrio biológico sabiamente conseguido pela química[4]. Mas que teria isso a ver com um ser humano?



30. Junho. 2019



[1] Evangelii gaudium, 40
[2] Gaudete et exsultate, 170; para todas as questões, desta crónica, relativas à teologia, ver: Papa Francisco, na Pontifícia Faculdade de Teologia da Itália Meridional, Nápoles, 21.6.2019.
[3] São cada vez mais espantosos os benefícios da inteligência artificial, assim como as esperanças e os receios que semeiam. Cf. Arlindo Oliveira, Inteligência artificial, Fund. Francisco Manuel dos Santos, 2019. Ainda não conheço os poemas dessa famosa inteligência.
[4] Cf. Chianca de Garcia, Cartas do Brasil, Edição O Independente, Lisboa, 2004, 19. 23. 132-133

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