1. O Papa Francisco tem um sentido muito agudo do tempo.
Repete que já não estamos em regime de Cristandade. Estamos a viver, não
simplesmente uma época de mudanças, mas uma mudança de época e lembra a afirmação
de Newman: aqui, na terra, viver é mudar.
Não se trata de procurar a mudança pela mudança
nem de seguir as modas, mas é preciso ir recuperando o tempo perdido. Assumiu a
observação do Cardeal Martini: a Igreja ficou atrasada duzentos anos[1].
Já, há cinquenta anos, havia quem chamasse a
atenção para as resistências à mudança das congregações e ordens religiosas: ou
se renovam ou morrem dentro de 150 anos. Bergoglio não se resigna.
Depois de todas as mudanças na preparação do
Sínodo 2023-24, na passada quarta-feira, deu um salto histórico. Por
muito que digam o contrário, podem manter a designação Sínodo dos Bispos,
mas, de facto, é o Sínodo de toda a Igreja: leigos – mulheres e homens – padres
e bispos, religiosos e religiosas, jovens e adultos, todos com direito a voto,
embora em proporções diferentes. Isto é apenas um começo, mas sem começar não
se abre caminho.
Neste Domingo de oração pelas vocações, o Papa
insistiu que se trata sempre de vocações com carismas diferentes, mas todas
para servir as comunidades e a missão de toda a Igreja a partir das
periferias.
Neste contexto, um amigo manifestou-me a surpresa
de ler uma mensagem do Cardeal Tolentino de Mendonça a propósito da morte de
uma monja dominicana, Mary John, O.P. (22.04.2023). Apesar da notícia ser
bastante desenvolvida, queria saber o que representava essa monja e as suas
companheiras para um cardeal gastar o seu precioso tempo a evocar essa memória.
Pessoalmente, fiquei muito grato que, nesta quadra da
Páscoa, não fosse esquecida a história de uma experiência monacal que tinha
sido desenvolvida, durante quatro décadas, no Mosteiro de Santa Maria das
Monjas Dominicanas, no Lumiar, em Lisboa.
Os jornalistas António Marujo e Manuel Rodrigues Vaz procuraram
entender a originalidade desse fenómeno inovador de vida monacal[2].
Os seus testemunhos continuam um lugar de referência para quem desejar
compreender porque razão o Cardeal Tolentino não quis deixar passar em claro
uma data que não pode apagar essa original forma de Vida Religiosa.
À medida que o tempo passa – diz Tolentino – «compreendemos
melhor o alcance profético da opção que aquelas mulheres cristãs fizeram
interpretando os desafios do Concílio Vaticano II, arriscando viver entre nós,
de forma fraterna e criativa, um cristianismo de acolhimento, de relação e de
futuro. Elas foram, como diz Jesus, vinho novo em odres novos (Mateus
9,17). Escolheram habitar a fronteira não
como um lugar de tensão e hostilidade, mas como uma prática humilde de escuta e
de reconhecimento. Quando fecho os olhos, vejo-as às quatro sentadas à soleira
daquilo que desejamos seja o futuro da Igreja e do mundo».
2. O que será isso de viver na fronteira para
desejar que seja esse o futuro da Igreja e do mundo?
Num Capítulo Geral dos Dominicanos, insistiu-se
muito que os lugares da pregação eram as fronteiras, as diversas fronteiras da
vida humana social e cultural. Mas não se pode pregar nas fronteiras e viver em
quadros institucionais intocáveis. Daí, a importância de uma vida democrática
no interior da Igreja sempre em reforma.
As Constituições dos diferentes ramos da vida
dominicana são revistas periodicamente. A pregação na fronteira exige viver no
que nunca tinha sido experimentado. S. Domingos fundou a Ordem dos Pregadores
começando pelas mulheres, chamando-lhes santa pregação (1206). Romper
com certas formas de clausura não estava, portanto, em contradição com a vida
monacal. Era uma evolução indispensável e que o Vaticano II possibilitou.
Como diz o Cardeal Tolentino, «uma das
preocupações das Monjas do Lumiar foi que a experiência que viviam se
propagasse na diversidade dos itinerários, das formas de existência e das
vocações. O mosteiro continuava para além dele mesmo. E, de facto, fizeram-nos
a todos herdeiros de uma pergunta que se mantém em aberto: como continuar e
multiplicar a beleza e a autenticidade do que ali se viveu?».
Numa comunidade, as tarefas são divididas. Antes de
ter sido recebida como monja, Mary John era tradutora em Itália, numa estrutura militar
da NATO. Encarregada de anotar o itinerário do Mosteiro, no horizonte
internacional da Ordem Dominicana e do pulsar da Igreja, ajudava a ver que o
caminho que ali se trilhava estava em sintonia com as raízes da experiência
monástica, mas também com o presente. A sua competência como tradutora não foi
desperdiçada. Tornou-se, até, uma das principais tradutoras de Yves Congar O.P.
O seu nome continua a figurar nas actuais edições inglesas e americanas da obra
deste famoso teólogo e grande obreiro do Vaticano II.
Quando se pergunta, como continuar e
multiplicar a beleza e a autenticidade do que ali se viveu, importa
informar que não está tudo perdido. Os Encontros do Lumiar não foram
apenas o momento da sua realização. Foram programados, ano após ano, não só com
uma temática multifacetada, mas também com a exigência e o compromisso de que
tudo fosse publicado. Frei Mateus Peres, Frei José Augusto Mourão, o padre Tolentino e,
sobretudo, a dedicação insubstituível das monjas garantiram que esse património
possa continuar a ser visitado e estudado. Não conheço, em língua portuguesa,
nada que se possa comparar aos itinerários espirituais, teológicos e pastorais
destes Encontros.
3. Os Encontros do Lumiar eram abertos a um
público heterogéneo de crentes e não crentes. Começavam com uma conferência, seguia-se um espaço muito belo de debate
entre o público e os intervenientes, com tempo para o convívio, saboreando um
chá e um bolo, e culminando com a celebração da Eucaristia. De facto, como já
dissemos, o mosteiro continuava para além dele mesmo, na vida familiar e profissional
dos participantes. Ajudavam a viver e a testemunhar o Evangelho em todas as
fronteiras. Nestes Encontros, as monjas possibilitavam as mais diversas formas
de vida cristã. Elas e os programadores e frequentadores não constituíam um
mundo à parte. Eram uma nova forma de viver numa Igreja aberta a muitos mundos,
a muitas fronteiras.
Foram quatro décadas de uma grande variedade de
experiências com o contributo de historiadores, de pessoas do cinema, do
teatro, da literatura, da filosofia, das ciências, da exegese bíblica, de
diversas expressões e buscas espirituais.
De facto, o Cardeal Tolentino – um dos grandes
intervenientes nos Encontros dos últimos anos – foi testemunha que a vida da
Igreja não está só na ilusão das grandes manifestações com os seus êxitos e
fracassos. As grandes descobertas podem realizar-se numa espiritualidade
incarnada na vida da cidade e não apenas no isolamento dos grandes mosteiros.
30 Abril 2023
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