segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Palavras duras, pensamentos tristes? - Pe João , mc

 Palavras duras, pensamentos tristes?


Ano A - 22º Domingo do Tempo Comum
Mateus 16,21-27: Se alguém quiser seguir-me


O evangelho deste 22º domingo é a continuação do do domingo passado, tendo Pedro como protagonista. Apresenta-nos o primeiro dos três anúncios da paixão, morte e ressurreição de Jesus e é um concentrado da segunda parte do evangelho.


1. Um díptico inquietante!

Poder-se-ia dizer que as duas passagens, a de hoje e a de domingo passado, formam um díptico invulgar: por um lado, um ícone luminoso, com um São Pedro entusiasta e inspirado, que proclama Jesus Messias e é declarado abençoado por Jesus e estabelecido como pedra angular da Igreja; por outro lado, um ícone escuro, com um São Pedro escandalizado com as palavras de Jesus, que contesta o Mestre e que, por sua vez, é repreendido por Jesus e declarado Satanás e pedra de tropeço. É difícil imaginar um contraste mais nítido! É, no entanto, um espelho perfeito da nossa realidade!


2. Um novo começo!

Jesus começou a explicar aos seus discípulos que tinha de ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas; que tinha de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia”.
Começou: este é um novo início. E aqui deparamo-nos com um verdadeiro ponto de viragem nos três primeiros evangelhos. A partir de agora, há uma mudança de rumo e de discurso. “Cada um de nós tem algo com que começar” (Emmanel Levinas). A vida nunca é um continuum. O problema é discernir quando é altura de mudar de passo ou de começar algo novo. Pois bem, depois da sondagem de domingo passado, Jesus decide “começar a explicar”
O que é que ele tem de explicar? Que tinha de ir a Jerusalém e sofrer muito”. Porquê “tinha de ir”? podemos perguntar. Era “a vontade de Deus”?! Falamos tanto de “fazer a vontade de Deus” e ele vem, pelo contrário, submeter-se à nossa! Talvez eu esteja enganado, mas falamos demasiado da vontade de Deus, associando-a muitas vezes ao mal, ao sofrimento, à injustiça, que temos de suportar e aceitar, em vez de a associarmos ao bem, à justiça, ao amor, que hemos de desejar e procurar! E assim corremos o risco de a maltratar, de a deformar.
Jesus tinha de ir a Jerusalém, “a cidade que mata os profetas”, porque tinha decidido ir até ao fim na sua total solidariedade com a nossa humanidade! Trata-se do dever do amor!

Para concluir, Jesus quer explicar que não é o tipo de Messias que todos esperam: um messias-rei que deve “restaurar o reino de Israel” (Actos 1,6); um messias-juiz que deve julgar os ímpios (Mateus 3,12). O seu messianismo é o do Servo sofredor profetizado por Isaías 53, julgado e condenado pelas autoridades políticas e religiosas. É por isso que este anúncio semeia a confusão entre os seus discípulos. E também entre nós, reconheçamo-lo! Daí a reação de Pedro, em nome dos apóstolos e em nosso nome!


3. Quem habita em nós: Deus ou “satanás”?

Pedro, tomando-o à parte, começou a contestá-lo, dizendo: Deus te livre de tal, Senhor! Isso não há de acontecer!”... porque tu és o Messias, o Filho de Deus! A reação de Jesus é dura, até mesmo desproporcionada e injusta, diria eu. “Vai-te daqui, Satanás!”. E assim o pobre Pedro despenha-se das alturas da revelação do céu para as profundezas do abismo! Sejamos realistas, Pedro teve coragem! A coragem que, infelizmente, nos falta a nós, que preferimos manter dentro de nós o que realmente pensamos, para não sermos repreendidos como ele foi. E assim o nosso “satanás” (o adversario) permanece bem escondido dentro de nós, por detrás da bela fachada da respeitabilidade e das nossas “práticas piedosas”.


4. Jesus demarca-se de seus discípulos!

O que mais me impressiona na reação de Jesus, para além da dureza, é a distância que parece tomar em relação aos seus: Se alguém quiser seguir-me...”. Não diz: “Se quiserdes seguir-me...”, mas usa uma linguagem impessoal, como se estivesse mesmo disposto a dispensá-los. Um pouco como naquela dramática deserção após o discurso de Cafarnaum: “Também vós quereis ir embora?” (João 6,67). Esta forma dura deve ter ferido profundamente o coração dos discípulos. E o nosso também, diria eu. Se pensarmos bem, Jesus estaria disposto a fazer o mesmo hoje. Não é ele que corre atrás de nós para nos persuadir a ficar, talvez por compromisso! Sim, ele é o Bom Pastor que ama e cuida das suas ovelhas, mas recusa-se a violar a nossa liberdade.

Como não fazer nosso então o desabafo do profeta Jeremias?!: “Vós me seduzistes, Senhor, e eu deixei-me seduzir... Então eu disse: ...Não falarei mais em seu nome!. Mas havia no meu coração um fogo ardente... mas não podia.” (Primeira leitura, Jeremias 20,7-9)


5. O simbolismo do algarismo 3

Outro aspeto do texto que me chama a atenção é a sua estrutura baseada no número 3, símbolo da perfeição e da plenitude, que sublinha a importância do conteúdo:
- Jesus faz alusão ao tríplice aspeto do “mistério pascal”: paixão-morte-ressurreição;
- Três vezes Jesus anunciará a sua paixão e de cada vez haverá uma reação negativa por parte dos apóstolos, seguida de uma sua tríplice catequese;
- Jesus será perseguido por três categorias de pessoas: os anciãos (guardiães da tradição e do poder), os chefes dos sacerdotes (guardiães da religião) e os escribas (guardiães da Lei);
- Jesus impõe três condições para o seguir: negar-se a si próprio, tomar a sua cruz, segui-lo! 
- Jesus apresenta três argumentos sapienciais para provar que as condições para o seguir, à primeira vista tão duras, são de facto as únicas que fazem sentido.


6. Apostar na vida!

A palavra “vida” é a mais recorrente no nosso texto (4 vezes), juntamente com os verbos que lhe estão associados: perder (3), salvar, encontrar, ganhar. Considero este facto significativo. O que está em jogo é a vida: perdê-la ou encontrá-la! Quem investe no imediato acaba por ser um perdedor. Aquele que investe com coragem, generosidade e abertura de espírito será um vencedor! 


Para a reflexão e a oração pessoal

- Encontrar um momento de silêncio para meditar o texto da segunda leitura:
“Peço-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, que vos ofereçais a vós mesmos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus, como culto espiritual. Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, pela renovação espiritual da vossa mente, para saberdes discernir, segundo a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável, o que é perfeito” (Romanos 12,1-2).
- Um desejo: que as palavras duras de Jesus não nos deixem tristes, mas pensativos!...

P. Manuel João Pereira; Comboniano
Castel d'Azzano (Verona) 1 de setembro de 2023

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

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