terça-feira, 2 de janeiro de 2024

OS GRITOS DO PAPA FRANCISCO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. No Público do dia 26 deste mês, Alexandra Lucas Coelho fez uma impressionante reportagem, de quatro páginas, sobre o Natal em Belém. O Público e a autora estão de parabéns.

Conta-nos que uma artista pôs uma incubadora com um Jesus morto pelas bombas e colocou-a no pátio da Basílica da Natividade, bem no caminho de quem passa. Cristo nasceu aqui há 2023 anos, crêem os cristãos. Este ano, em Belém, não há festa, mas houve missa de Natal. Na homilia, o patriarca destacou que guerra e ocupação têm de acabar. Foi o Natal mais triste de sempre. «A Europa vem rezar na nossa igreja e não faz nada contra este genocídio». Mais de 100 mortos num ataque de Israel em Gaza na noite de Natal!

Quem não se cala e grita a sua indignação é o Papa Francisco e insiste que também nós não nos devemos calar. Na sua Mensagem Urbi et Orbi, deste Natal, disse que, na Bíblia, ao Príncipe da paz opõe-se o «príncipe deste mundo» que, semeando a morte, actua contra o Senhor, «amante da vida». Vemo-lo actuar em Belém, quando, depois do nascimento do Salvador, se verifica a matança dos inocentes. Quantas matanças de inocentes no mundo! No ventre materno, nas rotas dos desesperados à procura de esperança, nas vidas de muitas crianças cuja infância é devastada pela guerra. São os pequeninos Jesus de hoje, estas crianças cuja infância é devastada pela guerra, pelas guerras.

Deste modo, dizer «sim» ao Príncipe da paz significa dizer «não» à guerra, a toda a guerra, à própria lógica da guerra, que é viagem sem destino, derrota sem vencedores, loucura indesculpável. Mas, para dizer «não» à guerra, é preciso dizer «não» às armas. Com efeito, se o ser humano, cujo coração é instável e está ferido, encontrar instrumentos de morte nas mãos, mais cedo ou mais tarde, usá-los-á. E como se pode falar de paz, se cresce a produção, a venda e o comércio das armas? Hoje, como no tempo de Herodes, as conspirações do mal, que se opõem à luz divina, movem-se à sombra da hipocrisia e do escondimento. Quantos massacres armados acontecem num silêncio ensurdecedor, ignorados de tantos! O povo, que não quer armas, mas pão, que tem dificuldade em acudir às despesas quotidianas, ignora quanto dinheiro público é destinado a armamentos. E, contudo, devia sabê-lo! Fale-se disto, escreva-se sobre isto, para que se conheçam os interesses e os lucros que movem os cordelinhos das guerras.

O profeta Isaías deixou escrito que virá um dia em que «uma nação não levantará a espada contra outra»; um dia em que os homens «não se adestrarão mais para a guerra», mas «transformarão as suas espadas em relhas de arado e as suas lanças em foices». Com a ajuda de Deus, esforcemo-nos para que se aproxime esse dia! Isto foi proclamado para toda a gente, crentes e não crentes.

2. Nas felicitações de Natal aos cardeais, Bergoglio lembrou que, à distância de sessenta anos do Concílio, ainda se debate sobre a divisão entre «progressistas» e «conservadores», mas esta não é a diferença. A verdadeira diferença é entre «apaixonados» e «rotineiros». Esta é a diferença. Só quem ama, pode caminhar.

Termina, dizendo que o Senhor Jesus, Verbo Incarnado, nos dê a graça da alegria no serviço humilde e generoso. E, por favor (vo-lo recomendo!), não percamos o humor, que é saúde! E pede para rezarem por ele diante do presépio.

Bergoglio escolheu o nome de Francisco para que a orientação de todo o seu pontificado nunca se desviasse da espiritualidade de S. Francisco de Assis. Para ele, o Presépio é como um Evangelho vivo que transvaza das páginas da Sagrada Escritura. Ao mesmo tempo que contemplamos a representação do Natal, somos convidados a colocar-nos espiritualmente a caminho, atraídos pela humildade d’Aquele que Se fez homem a fim de Se encontrar com toda a humanidade e a descobrir que nos ama tanto, que Se uniu a nós para podermos, também nós, unir-nos a Ele e ao seu caminho[1].

Devemos agradecer ao Papa o ter alargado o tempo de preparação da última fase do Sínodo para que tenhamos, cada vez mais, lideranças apaixonadas, nas comunidades cristãs, para superar as rotineiras que não andam nem deixam andar.

3. Por iniciativa de Paulo VI, o primeiro dia de Janeiro de cada ano é dedicado à reflexão, aos protestos, aos movimentos que procuram despertar os cristãos para as formas de dizer não à guerra e descobrir caminhos de paz. O impacto dessas Mensagens depende muito do que elas provocam, a nível mundial, segundo os problemas de cada país e as movimentações e acções que suscita. Não podemos esquecer, por exemplo, a importância clandestina e pública que tiveram na denúncia das nossas guerras coloniais.

Para não se cair na rotina destes Dias Mundiais, é importante estar atento aos problemas da guerra e da paz, segundo as situações mais problemáticas de cada época. Não basta pensar nas circunstâncias de cada país porque, mais uma vez, a Fratelli Tutti obriga a tomar, como próprios, os problemas de toda a humanidade. Esta dimensão universal está bem destacada na Mensagem para 2024, que intitula Inteligência Artificial e Paz. Poderá parecer que se trata de um assunto limitado e abstracto. Pelo contrário, está a afectar a vida de todos de várias maneiras:

«No início do novo ano, tempo de graça concedido pelo Senhor a cada um de nós, quero dirigir-me ao Povo de Deus, às nações, aos Chefes de Estado e de Governo, aos Representantes das diversas religiões e da sociedade civil, a todos os homens e mulheres do nosso tempo para lhes expressar os meus votos de paz».

O progresso da ciência e da tecnologia deve servir a paz e não a guerra que é devastadora. Como diz o Papa, a imensa expansão da tecnologia deve ser acompanhada por uma adequada formação da responsabilidade pelo seu desenvolvimento. A liberdade e a convivência pacífica ficam ameaçadas, quando os seres humanos cedem à tentação do egoísmo, do interesse próprio, da ânsia de lucro e da sede de poder. Por isso, temos o dever de alargar o olhar e orientar a pesquisa técnico-científica para a prossecução da paz e do bem comum, ao serviço do desenvolvimento integral do ser humano e da comunidade.

O Papa insiste que «a dignidade intrínseca de cada pessoa e a fraternidade, que nos une como membros da única família humana, devem estar na base do desenvolvimento de novas tecnologias e servir como critérios indiscutíveis para as avaliar antes da sua utilização, para que o progresso digital possa verificar-se no respeito pela justiça e contribuir para a causa da paz. Os avanços tecnológicos que não conduzem a uma melhoria da qualidade de vida da humanidade inteira, antes pelo contrário agravam as desigualdades e os conflitos, nunca poderão ser considerados um verdadeiro progresso».

Entramos no novo Ano com velhas e novas incertezas políticas, sociais e eclesiais. As autênticas formas de escutar e acolher os gritos do Papa serão novas iniciativas para vencer, em 2024, as expressões que se tornaram rotineiras e perderam a capacidade de nos fazer acreditar que podemos mudar.

Façamos um ano mais feliz!

 

31 Dezembro 2023



[1] Para Francisco, Carta Apostólica Admirabile Signum sobre o Presépio, 2019

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