O cómico e o riso no Vaticano
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
15 Junho 2024
1. Este texto foi escrito antes da realização de um acontecimento que julgo muito
significativo e que teria lugar no Vaticano no dia de ontem: o encontro do Papa Francisco
com mais de 100 humoristas de todo o mundo, entre eles Joana Marques, Maria Rueff e
Ricardo Araújo Pereira.
Um encontro organizado pelo Dicastério para a Cultura e a Educação e pelo Dicastério da
Comunicação. O seu objectivo: “estabelecer um diálogo entre a Igreja Católica e os
humoristas”. “Francisco reconhece o grande impacto que a arte da comédia tem no mundo
da cultura contemporânea. Através do talento humorístico e do valor unificador do riso nos
dias de hoje, são oferecidas reflexões únicas sobre a condição humana e a situação histórica.
Além disso, a arte da comédia pode contribuir para um mundo mais empático e solidário”,
referia o comunicado do Vaticano, acrescentando que “o encontro entre Francisco e os
actores cómicos do mundo pretende celebrar a beleza da diversidade humana e promover
uma mensagem de paz, amor e solidariedade, e promete ser um momento significativo de
diálogo intercultural de partilha de alegria e esperança.”
2. Estando a escrever antes do acontecimento, só posso esperar que assim seja. E, sobre o
tema, deixo aí algumas reflexões, já por vezes aqui expandidas.
A Igreja oficial nunca se deu muito bem com o humor e o riso. Por exemplo, ainda vivi
tempos nos quais durante o Carnaval, nos seminários, havia a chamada “Exposição do
Santíssimo Sacramento” e durante o dia e a noite rezava-se pelos pecadores e fazia-se
penitência em reparação pelos pecados daqueles dias. Sou sincero: nunca percebi em que
diferiam os pecados do Carnaval dos pecados dos outros dias.
Até se generalizou a ideia de que Jesus nunca se riu. Na verdade, de Jesus diz-nos o
Evangelho que chorou: chorou pela morte do seu amigo Lázaro e Jerusalém... Não se diz que
riu. Mas já Santo Tomás de Aquino observou que é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é
homem e rir é característica essencial, distintiva, do ser humano. Jesus participou em festas
de casamento e alguém imagina uma festa de casamento sem risos? Uma boa piada pode
estabelecer pontes, o riso é cura. Lá está Kant: para aliviar as agruras da vida, o Céu deu-nos
três coisas: “a esperança, o sono e o riso”.
Digo: ai da Igreja e dos crentes, ai das instituições, sem a crítica por vezes mordaz, que pode
ajudar a curar. Só nas ditaduras é que não se pode fazer humor nem rir dos poderes
instituídos. Ai de cada uma e cada um de nós, se não souber rir-se de si mesmo, de si
mesma, das suas manias e disparates… O que não se pode – não se deveria – é cair no riso
alarve, na piada boçal e ofensiva, que apenas significam falta de inteligência. Ah! o riso
também ajuda a curar a vaidade oca, e ele há tanta, tanta vaidade oca: “Mesmo no mais alto
trono do mundo, está-se sentado sobre o cu”, escreveu Montaigne.
Padre e professor de Filosofia
15 Junho 2024
1. Este texto foi escrito antes da realização de um acontecimento que julgo muito
significativo e que teria lugar no Vaticano no dia de ontem: o encontro do Papa Francisco
com mais de 100 humoristas de todo o mundo, entre eles Joana Marques, Maria Rueff e
Ricardo Araújo Pereira.
Um encontro organizado pelo Dicastério para a Cultura e a Educação e pelo Dicastério da
Comunicação. O seu objectivo: “estabelecer um diálogo entre a Igreja Católica e os
humoristas”. “Francisco reconhece o grande impacto que a arte da comédia tem no mundo
da cultura contemporânea. Através do talento humorístico e do valor unificador do riso nos
dias de hoje, são oferecidas reflexões únicas sobre a condição humana e a situação histórica.
Além disso, a arte da comédia pode contribuir para um mundo mais empático e solidário”,
referia o comunicado do Vaticano, acrescentando que “o encontro entre Francisco e os
actores cómicos do mundo pretende celebrar a beleza da diversidade humana e promover
uma mensagem de paz, amor e solidariedade, e promete ser um momento significativo de
diálogo intercultural de partilha de alegria e esperança.”
2. Estando a escrever antes do acontecimento, só posso esperar que assim seja. E, sobre o
tema, deixo aí algumas reflexões, já por vezes aqui expandidas.
A Igreja oficial nunca se deu muito bem com o humor e o riso. Por exemplo, ainda vivi
tempos nos quais durante o Carnaval, nos seminários, havia a chamada “Exposição do
Santíssimo Sacramento” e durante o dia e a noite rezava-se pelos pecadores e fazia-se
penitência em reparação pelos pecados daqueles dias. Sou sincero: nunca percebi em que
diferiam os pecados do Carnaval dos pecados dos outros dias.
Até se generalizou a ideia de que Jesus nunca se riu. Na verdade, de Jesus diz-nos o
Evangelho que chorou: chorou pela morte do seu amigo Lázaro e Jerusalém... Não se diz que
riu. Mas já Santo Tomás de Aquino observou que é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é
homem e rir é característica essencial, distintiva, do ser humano. Jesus participou em festas
de casamento e alguém imagina uma festa de casamento sem risos? Uma boa piada pode
estabelecer pontes, o riso é cura. Lá está Kant: para aliviar as agruras da vida, o Céu deu-nos
três coisas: “a esperança, o sono e o riso”.
Digo: ai da Igreja e dos crentes, ai das instituições, sem a crítica por vezes mordaz, que pode
ajudar a curar. Só nas ditaduras é que não se pode fazer humor nem rir dos poderes
instituídos. Ai de cada uma e cada um de nós, se não souber rir-se de si mesmo, de si
mesma, das suas manias e disparates… O que não se pode – não se deveria – é cair no riso
alarve, na piada boçal e ofensiva, que apenas significam falta de inteligência. Ah! o riso
também ajuda a curar a vaidade oca, e ele há tanta, tanta vaidade oca: “Mesmo no mais alto
trono do mundo, está-se sentado sobre o cu”, escreveu Montaigne.
Na Idade Média, realizava-se a chamada Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder
eclesiástico. Elegia-se, entre os subdiáconos, um senhor da festa, designado “Bispo”. Esse
subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia, era vestido de Bispo, colocado em cima de um
burro, e entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o altar. Em certos
momentos, o celebrante e o povo zurravam. Na entrega simbólica do “báculo” episcopal
entoava-se o Magnificat – o hino de louvor que o Evangelho coloca na boca de Maria –
naquele passo: “Deus derrubou os poderosos e exaltou os humildes.” Sobre a Festa dos
Loucos pronunciou-se a Faculdade de Teologia de Paris em 1444, justificando-a: “Os nossos
eminentes antepassados permitiram esta festa. Porque haveria ela de ser-nos interdita?”
Neste descalabro burlesco, dever-se-ia ver, no limite, a urgência de não confundir o Sagrado
em si mesmo com as mais variadas formas idolátricas com que tantas vezes os crentes se
lhe dirigem.
A propósito da força crítica da piada e da caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e todo
aquele luxo, que blasfema do Evangelho de Jesus, no fausto de uma procissão com cardeais,
arcebispos, bispos, monsenhores, com mitras, tricórnios, alguns vestidos de púrpura…
Aconteceu que São Pedro veio à janela do Céu e viu aquilo. Estarrecido, chamou Jesus, que
olhou e apenas disse: “E pensarmos nós, Pedro, que começámos aquilo, entrando de burro
em Jerusalém onde fui crucificado pelos poderes do Templo e do Império... Lembras-te?!
Sim, Francisco socorre-se também do bom humor, e todos os dias reza a “Oração do bom
humor”, oração atribuída a São Tomás Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que não se
esqueceu de levar a gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a
também aos membros da Cúria Romana, onde tem tantos adversários e até inimigos, a
quem falta o bom humor divino: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para
digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./ Dá-me uma
alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/ e que não se amedronta facilmente
diante do mal, /mas, pelo contrário, encontra os meios para voltar a colocar as coisas no seu
lugar./ Concede-me, Senhor, uma alma/ que não conhece o tédio,/ os resmungos,/ os
suspiros/ e as lamentações,/ nem os excessos de stress por causa desse estorvo chamado
‘Eu’./ Dá - me, Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-me a graça de ser capaz de uma
boa piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria/ e poder partilhá-la
com os outros./ Ámen
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