O Homem: questão para si mesmo.
6. A tensão de um corpo-pessoa
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
14 Setembro 2024
Raramente alguém disse de modo tão realista o ser humano na sua tensão como Vergílio
Ferreira neste texto magnífico: “Um corpo e o que em obra superior ele produz. Como é
fascinante pensá-lo. Um novelo de tripas, de sebo, de matéria viscosa e repelente, um
incansável produtor de lixo. Uma podridão insofrida, impaciente de se manifestar, de rebentar o
que a trava, sustida a custo a toda a hora para a decência do convívio, um equilíbrio difícil em
dois pés precários, uma latrina ambulante, um saco de esterco. E simultaneamente, na
visibilidade disso, a harmonia de uma face, a sua possível beleza e sobretudo o prodígio de uma
palavra, uma ideia, um gesto, uma obra de arte. Construir o máximo da sublimidade sobre o
mais baixo e vil e asqueroso. Um homem. Dá vontade de chorar. De alegria, de ternura, de
compaixão. Dá vontade de enlouquecer.”
O Homem vive-se a si mesmo numa tensão insuperável.
Por um lado, o corpo é o seu peso, a sua limitação - parece que, se fôssemos espírito puro,
poderíamos, por exemplo, estar em todo o lado. Com o tempo, o corpo decai, envelhece e,
aparentemente, envilece-nos. Adoecemos e desmoronamo-nos. Depois, com a morte, o que
resta do corpo é lixo biológico e coisa que apodrece. Referindo-se ao nascimento, Santo
Agostinho, nada exaltado, tem estas palavras cruas: “Inter faeces et urinam nascimur”,
nascemos entre fezes e urina.
Encontrados destroços de navio francês que naufragou em 1856
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E, aqui, faço uma observação fundamental: ele usa a passiva para o
nascimento: nascimur (somos nascidos). Em português, usamos a activa: nascemos, nasci,
outras línguas usam a passiva: natus sum, soy nacido, suis né, bin geboren, am born, sono nato...
De facto, alguém se lembra do seu nascimento e decidiu nascer? Foi muito, muito lentamente
que fomos dando conta de nós até tomarmos consciência de nós como um “eu” - é isso:
afirmamo-nos, assentes numa passividade originária.
Por outro lado, será sempre misterioso um corpo que fala: produz sons que encarnam e
transmitem sentido. Um olhar é sempre a visita do in-finito. Um corpo humano canta, ora, sorri,
produz obras de arte, que param o tempo e visibilizam a transcendência. De um bloco de
mármore Miguel Ângelo arranca a Pietà; misturando tintas, Van Gogh põe à vista as Botas com
atacadores e Leonardo, a Última Ceia. Com instrumentos de sopro, de percussão e de cordas e
vozes, corpos executam música, a mais utópica das artes (E. Bloch), que nos leva lá para onde
nunca estivemos, mas aonde queremos sempre voltar de novo.
nunca estivemos, mas aonde queremos sempre voltar de novo.
"Tenho
corpo, mas sou corpo. Eu sou um corpo que diz 'eu' e, portanto, vivo-me a mim mesmo por
dentro como corpo-sujeito, corpo-pessoa. (...) O Homem transcende o simplesmente biológico.
'Começou a ser Homem intentando criar beleza', escreveu Pedro Laín Entralgo. E vive do
gratuito: cria e contempla a beleza, é o ser 'criativamente possuído pelo fascinante esplendor do
inútil' (G. Steiner)." IMAGEM: Rawpixel.com
Um corpo humano desabrocha como alguém perante outro alguém. Quando dois corpos
humanos se abraçam são duas pessoas que dizem uma à outra quanto se querem bem. E mais
uma vez Vergílio Ferreira, exprimindo a vivência do corpo pessoal e interpessoal: “Mónica,
minha querida. Porque o teu corpo não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e
a tua pessoa estar lá.”
E o corpo humano é um corpo livre, que não se entende como se fosse uma máquina, nem na
simples continuidade da explicação biológica. É um corpo capaz de dizer não ao que a biologia
pede - é um asceta da vida, não fica submerso nas suas necessidades. Então, exprime liberdade.
E a liberdade é o salto milagroso. Kant escreveu que é impossível compreender a produção de
um ser dotado de liberdade por uma operação física, sendo mesmo difícil, se não impossível
também, compreender como pode o próprio Deus criar seres livres.
Por isso, o materialismo mecânico ou biológico não dá conta do Homem. Mas quem defender
uma concepção dualista de Homem - um composto de alma e corpo, matéria e espírito - terá de
responder à pergunta daquela criança de uma estória ingénua: diante do cadáver da avó, o
miúdo perguntou à mãe o que é que estava a acontecer. A mãe foi-lhe explicando que a avó
tinha morrido e que a alma dela tinha ido para Deus e o corpo ia para a terra. Quando ela
própria morresse, também ia ser assim: a alma iria para Deus e o corpo para o cemitério.
E continuou, angustiada: “Sabes, meu filho, quando tu morreres, a tua alma vai ter com Deus e o
teu corpo fica no cemitério.” Aí, o miúdo observou, perplexo: “A minha alma vai ter com Deus e
o meu corpo vai para o cemitério. E eu?”
Há o corpo fisiológico, anatómico - quando vou ao médico, espero que perceba de anatomia.
Mas também há o corpo fora da anatomia - quando vou ao médico, espero que me trate como
pessoa e não como simples corpo, à maneira de máquina desarranjada que ele, como técnico
especializado, vai recompor. Tenho corpo, mas sou corpo. Eu sou um corpo que diz “eu” e,
portanto, vivo-me a mim mesmo por dentro como corpo-sujeito, corpo-pessoa. E também os
outros, todos os outros são corpo-pessoa, vivendo-se a si mesmos como sujeitos. O Homem
transcende o simplesmente biológico. “Começou a ser Homem intentando criar beleza”,
escreveu Pedro Laín Entralgo. E vive do gratuito: cria e contempla a beleza, é o ser
“criativamente possuído pelo fascinante esplendor do inútil” (G. Steiner). Para sobreviver, não
precisava de investigar na mecânica quântica... O que ganha no tempo dedicado aos mortos? No
entanto, o tempo que gastamos inutilmente - inutilmente? - com os mortos!...
Ser Homem é viver esta tensão, numa arte quase impossível. Porque permanentemente espreita
o perigo de coisificar o corpo ou de desprezá-lo, refugiando-se num idealismo angélico. Mas já
Pascal preveniu: “O Homem não é anjo, nem é besta, e, desgraçadamente, quem quer fazer de
anjo faz de besta.
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