domingo, 3 de novembro de 2024

O Homem: questão para si mesmo. Nos cemitérios, o que há? Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 03 Novembro 2024

 O Homem: questão para si mesmo.

Nos cemitérios, o que há?
Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

03 Novembro 2024

Apesar de a morte hoje se ter tornado tabu, muitos nestes dias passaram pelos cemitérios. E a
pergunta é: que foram lá fazer? Quando alguém está concentrado num cemitério perante a
campa de um familiar, de um amigo, está a olhar para onde? E o que é que vê realmente?

Há talvez algumas imagens entrecortadas que lhe passam de modo fugaz pela mente. Mas,
quando olha, verdadeiramente absorto, embora talvez com os olhos muito abertos para ver, o
que realmente lhe aparece é simplesmente e só um abismo sem fundo e sem fim, um vazio
ilimitadamente aberto...

Mas olhar e ver um abismo sem fundo e sem fim e um vazio ilimitadamente aberto, isto é, não
ver nada, é o que propriamente se chama ver o Mistério.

Quando se vai ao cemitério visitar a campa de um familiar, de um amigo, presta-se uma
homenagem, faz-se uma romagem de saudade... É isso: de saudade, no sentido mais fundo da
palavra, dito na própria etimologia - a saudade refere-se a uma ausência sem nome e sem fim,
que nos faz sentir a solidão (solitate) que nos dói; se o étimo for salutem dare (saudar), então
trata-se de uma saudação, com o desejo de que quem partiu esteja bem. Aí, no recolhimento
mais intenso, pode erguer-se, sem palavras, uma súplica, um soluço, como forma de tentar
balbuciar o Mistério indizível...

A morte é o mistério pura e simplesmente... Perante ela e tudo o que se lhe refere, é como se
caíssemos num precipício, onde se estilhaça a capacidade de pensar... Ninguém sabe o que é
morrer. Que instante é esse o da morte, mediante o qual se deixa de pertencer ao mundo e ao
tempo? Mesmo que assistamos à morte de alguém, é de fora que o fazemos... Ninguém sabe o
que é estar morto. Diante do cadáver do pai, da mãe, do filho, do amigo, do marido, da mulher,
não tem sentido dizer: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo
está aqui morto, o meu marido está aqui morto, a minha mulher está aqui morta... De facto, eles
não estão ali... Também é por pura ilusão de linguagem que dizemos que levamos o pai, ou a
mãe, ou o filho, ou o amigo, ou a mulher, ou o marido à sua última morada... Como não
podemos dizer, quando vamos ao cemitério, que os vamos visitar... Nos cemitérios, com
excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém.

Pergunta-se então: porque é que é um crime nefando em todas as culturas e sociedades a
violação de um cemitério se lá não há ninguém? Afinal o que é que está nos cemitérios?

Nos cemitérios, o que há é uma incontível e inapagável interrogação: o que é o Homem, o que é
ser-se humano? O que há nos cemitérios é a afirmação de que, seja como for, a antropologia
não é redutível a um simples capítulo da zoologia...
Afinal, para onde foram os mortos? Não será que, como acontece nas guerras, andam perdidos,
mas um dia havemos de encontrá-los e encontrar-nos? Para onde vão os mortos? Para o nada?
Mas, como perguntava o filósofo Bernhard Welte, que nada é esse? O nada vazio e nulo ou o
nada enquanto véu que oculta a realidade verdadeira, como quando entramos num espaço de
breu e dizemos: aqui, não vejo nada, o que não significa que lá não haja nada, pois pode até
acontecer que lá se encontre o tesouro maior?... Para onde vão os mortos? Para a noite total ou,
pelo contrário, para a luz plena, de tal modo luz que para nós é noite, como quando, olhando
para o sol de frente, ficamos cegos pelo excesso de luz? No final, está a esperança.

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