segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

A IMORALIDADE DA GUERRA Frei Bento Domingues, O.P. 23 Fevereiro 2025

 

A IMORALIDADE DA GUERRA

Frei Bento Domingues, O.P.

23 Fevereiro 2025

 

1. Com diferentes matizes, segundo Marciano Vidal, foi longa, na Igreja Católica, a história da teoria da guerra justa, desde Santo Agostinho até à Pacem in Terris de João XXIII, dirigida a todas as pessoas de boa vontade[1]. Neste tempo, que parece ter esquecido as loucuras do passado, importa relembrar os traços essenciais deste documento incomparável e inspirador.

Foi publicado no dia 11 de Abril de 1963, dois meses antes da morte de João XXIII, dois anos depois da construção do Muro de Berlim e alguns meses depois da crise dos mísseis em Cuba, numa época marcada pela proliferação nuclear e pela disputa ente os EUA e a URSS.

Nessa conjuntura, este Papa defendeu que «os conflitos entre as nações devem ser resolvidos com negociações e não com armas e na confiança mútua». Ele formulou a síntese mais exacta e mais bela do que deve ser a paz entre os povos: «a verdade como fundamento, a justiça como norma, o amor como motor, a liberdade como clima».

Temos de explicitar o seu conteúdo. Através desta encíclica, a Igreja foi convidada a uma profunda conversão, recusando a teoria da guerra justa para se reflectir e agir sobre a dignidade, os deveres e os direitos humanos, enquanto fundamentos da paz mundial. Insistiu na importância da colaboração entre todos. Pela primeira vez, um documento da Igreja era dirigido a todas as pessoas de boa vontade, chamadas à imensa tarefa de recompor as relações da convivência entre os povos.

João XXIII defendeu o desarmamento, uma distribuição equitativa de recursos, um maior controlo das políticas das empresas multinacionais e várias políticas estatais que favoreçam o acolhimento dos refugiados; reconheceu que todas as nações têm igual dignidade e igual direito ao seu próprio desenvolvimento; propôs a construção de uma sociedade baseada na subsidiariedade; e incentivou os católicos à acção e à transformação do presente e do futuro. Esta encíclica exortou também os poderes públicos da comunidade mundial a promover o bem comum universal, através de uma resolução eficaz dos vários problemas que assolam o mundo.

2. O Papa Paulo VI não traiu a Pacem in Terris. Em 1965, discursou na Assembleia Geral da ONU. Reafirmou o primado do direito nas relações entre os Estados e apelou ao instrumento da negociação na resolução de conflitos. Guerra nunca mais. É a paz que deve guiar o destino dos povos e de toda a humanidade.

Continuando, o Papa afirmou: esta Organização representa o caminho obrigatório da civilização moderna e da paz mundial. Ao dizer isto, temos consciência de fazer nossa quer a voz dos mortos quer a voz dos vivos: dos mortos caídos nas terríveis guerras do passado, sonhando com a concórdia e a paz do mundo; dos vivos que lhes sobreviveram e que antecipadamente condenam, nos seus corações, os que tentassem renová-las. De outros vivos ainda: as jovens gerações de hoje, que avançam confiantes, esperando com razão uma humanidade melhor.

Fazemos também nossa a voz dos pobres, dos deserdados, dos infelizes, dos que aspiram à justiça, à dignidade de viver, à liberdade, ao bem-estar e ao progresso. Os povos voltam-se para as Nações Unidas como para a última esperança da concórdia e da paz.

Escutai as palavras lúcidas de um grande desaparecido, John Kennedy, que proclamou: A humanidade deverá pôr fim à guerra, ou é a guerra que porá fim à humanidade. Não são necessários longos discursos para proclamar a finalidade suprema desta Instituição. Basta recordar que o sangue de milhões de homens, os sofrimentos espantosos e inumeráveis, os inúteis massacres e as aterradoras ruínas sancionam o pacto que vos une, num juramento que deve mudar a história futura do mundo: nunca mais a guerra, nunca mais a guerra. É a paz, a paz que deve guiar o destino dos povos e de toda a humanidade[2]. Uma paz sem vencedor e sem vencidos, como escreveu Sophia de Mello Breyner.

Foi também Paulo VI que instituiu o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro 1967) que todos os anos obriga a Igreja a não esquecer os desafios que a Paz exige. No mesmo ano, publicou a Populorum Progresso, inspirada na obra do Padre Lebret, O.P. (1897-1966).

O texto critica tanto o liberalismo sem freio que conduziu ao imperialismo internacional do dinheiro, como a colectivização integral. «A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos. Quer dizer que a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário. Numa palavra, o direito de propriedade nunca deve exercer-se em detrimento do bem comum, segundo a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos. Surgindo algum conflito entre os direitos privados e adquiridos e as exigências comunitárias primordiais, é ao poder público que pertence resolvê-lo, com a participação activa das pessoas e dos grupos sociais».

O Papa Bento XVI, na sua encíclica Caritas in Veritate (2009), reiterou a importância da mensagem contida na Populorum Progressio. Segundo ele, da mesma forma que a encíclica Rerum Novarum (1891) foi importante para a época, a encíclica de Paulo VI é importante para os desafios da contemporaneidade.

3. Em Portugal, não se pode abordar a questão da imoralidade da guerra sem referir as três frentes da guerra colonial com os seus mortos e incontáveis vítimas (1961-1974): em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. O próprio Paulo VI teve a corajosa iniciativa de receber, no Vaticano (01.07.1970), os líderes políticos das lutas de libertação das colónias sob o domínio de Portugal em África: Marcelino dos Santos (FRELIMO), Agostinho Neto (MPLA) e Amílcar Cabral (PAIGC). A Igreja contribuía, assim, decisivamente, para o desmoronar do império colonial português. Remeto para o texto notável de Frei José Nunes, O.P., sobre Submissão e resistência ao Colonialismo durante o Estado Novo[3].

Acerca da imoralidade da guerra, o Papa Francisco, na sua autobiografia, diz que é imoral a posse das armas atómicas. Seremos julgados por isso. As novas gerações erguer-se-ão como juízes da nossa derrota se a paz for apenas um som de palavras e não a tivermos realizado com as nossas acções entre os povos da Terra[4].

Nós temos uma arte de fazer, cada vez mais, inimigos entre pessoas, povos e culturas. O Evangelho deste Domingo propõe, pelo contrário: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, rezai por aqueles que vos injuriam[5]. Isto não é uma proposta de fazer inimigos. Diz que é preciso mudar a lógica do ódio, a lógica da vingança, a lógica da imoralidade da guerra. Para tornar o mundo outro é necessário o caminho oposto ao que andamos a percorrer. Temos de superar o mundo de amigos e inimigos.

 

 

 



[1] Cf. Marciano Vidal, Selecciones de Teologia, Vol 63 (2024), nº 252, pp.243-256

[2] Cf. Discurso de Paulo VI na ONU, 1665

[3] Cf. José Nunes, O.P., in 7Margens, 05.05.2024

[4] Francisco, Esperança, A Autobiografia, Nascente, 2024, p.196

[5] Lc 6, 27-38

sábado, 22 de fevereiro de 2025

A ditadura da imagem e a pobreza do símbolo Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia Sábado, 22 de Fevereiro de 2025

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Crónicas PÁRA E PENSA

A ditadura da imagem

e a pobreza do símbolo

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Sábado, 22 de Fevereiro de 2025

No século VIII, no contexto da ameaça

militar e religiosa do islão a Bizâncio, a

tradição cristã viu-se confrontada com a

pureza radical do monoteísmo islâmico e a

sua proibição das imagens. Os imperadores

bizantinos mandaram destruir as imagens e

os seus defensores foram perseguidos como

idólatras. Embora esta luta dos iconoclastas

tenha acabado com a vitória dos iconódulos

(veneradores das imagens), pois Jesus

2

Cristo é a imagem visível de Deus, nunca

deveria esquecer-se que Deus é

infinitamente transcendente e, se o Homem

foi criado à imagem e semelhança de Deus,

Deus não é à imagem do Homem.

Diz-se perante certas imagens: vale mais

uma imagem que milhares de palavras.

Pense-se, por exemplo, naquelas imagens

televisivas das crianças esfomeadas no

mundo — pequenos andaimes de ossos a

soçobrar, num olhar suplicante e quase

morto —, e o soco que nos dão no estômago

e na alma.

Aqui, porém, do que se trata é da

civilização da imagem, daquela civilização

que quer a visualização de tudo. Trata-se

daquilo para que uma aluna uma vez me

chamou a atenção. Ela tinha feito um

trabalho sobre A Sociedade do espectáculo, de

Guy Debord, um dos breviários da geração

de 68, e disse-me: “Viu a transmissão

3

televisiva do funeral do Papa João Paulo II?

Aquilo era espectáculo, donde o mistério da

morte foi arredado. Logo a seguir, em

sequências vertiginosas, lá estavam imagens

publicitárias e futebol: tudo o mesmo.” Ah!

A alienação com o futebol: “pensar com os

pés” (Carlos Fiolhais)!

Há perigos na civilização da imagem?

Nela, por paradoxal que pareça, julga-se

que se está perante a hiper-realidade, mas o

que se vai impondo é o virtual, com a

consequente perda da realidade real.

Depois, é isso: a vertigem de imagens e

de informações, em voragem. Mas, então,

onde está o tempo da possibilidade de

distanciamento e de crítica? Ah!, e a própria

crítica, se existe, tem de ser dada em

espectáculo, dissolvendo-se então com ele e

nele, pois, como escreveu José María

Mardones, mais do que permitir a reflexão e

4

a crítica, do que se trata é de vender e

“seduzir”.

Na civilização da imagem, importante

não é ser, mas parecer e aparecer. Quem

não aparece existe? Por isso, lá dizem os

políticos, e não só eles, que decisivo é

aparecer, mesmo se se diz mal deles.

De novo José Maria Mardones: o

predomínio da imagem, com a pretensão de

mostrar tudo, até a interioridade do sujeito,

tem outra consequência perversa: “o

esvaziamento da intimidade”. Por causa

disso, eu fui uma vez à televisão para

prevenir e chamar a atenção para a

necessidade da distinção não apenas do

público e do privado, mas do público, do

privado e do íntimo. De facto, não anda

para aí tudo desavergonhadamente

escancarado, sem réstia de pudor?...

O símbolo, esse, abre para a

profundidade do real e para o mistério e

5

vincula à transcendência. Na civilização da

imagem, onde a realidade é o que se mostra,

vive-se na imediatidade do que há, do

mercado das sensações, do empírico-

funcional, e, portanto, na in-transcendência.

E uma conclusão, que pode parecer

abrupta. Por vezes, há quem se espante

com a indiferença e a distância dos jovens

em relação à política. Seja-me permitido

espantar-me com esse espanto. Razão de

fundo – não a única, evidentemente, – para

esse distanciamento está em que o

espectáculo da política e dos políticos é

muitas vezes deprimente e pouco

recomendável. Não está a própria

Assembleia da República, por exemplo, a

sucumbir por vezes à falta de vergonha, à

má-criação?...

Com o fim do trabalho simbólico e o

império da imagem e da técnica, o mundo

humano vai definhando. Sem o símbolo,

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também não há lugar para a religião na sua

autenticidade e verdade. E corre-se o perigo

da idolatria.

Escancarar as portas do coração - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 Escancarar as portas do coração

Ano C – Tempo Comum – 7º Domingo
Lucas 6,27-38: “Eu digo-vos: amai os vossos inimigos”

O evangelho deste domingo dá continuidade ao das bem-aventuranças no “sermão da planície” de São Lucas (Lc 6,17-49). Jesus indica qual deve ser a conduta dos seus discípulos. O resumo da mensagem de Jesus é: “Amai os vossos inimigos”. Se a mensagem das bem-aventuranças do domingo passado já nos parecia exigente, esta é ainda mais. Trata-se de um dos textos mais desconcertantes do evangelho, que exige uma inversão radical das nossas reações instintivas e dos nossos comportamentos sociais.

No texto, Jesus utiliza nada menos do que dezasseis imperativos. As Suas palavras, no entanto, não constituem uma nova legislação, mas devem ser relidas à luz das bem-aventuranças. São palavras de sabedoria divina que nos conduzem ao próprio coração de Deus. Jesus – por mais paradoxal que possa parecer – entrega-nos a chave de acesso às bem-aventuranças.

A história da salvação e a existência cristã são um caminho, um processo de passagem da ordem da justiça (“olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”: Êxodo 21,24) para a ordem da graça (“Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso”: Lc 6,36). Trata-se de uma passagem da lógica retributiva para a lógica da gratuidade, uma mudança radical que Jesus propõe aos Seus discípulos. São Paulo, na segunda leitura (1 Coríntios 15,45-49), apresenta este processo como a passagem do “primeiro Adão” para o “último Adão”, do homem terreno para o homem celeste.

As ondas do Amor divino

O discurso de Jesus avança em quatro ondas sucessivas, cada uma marcada por quatro imperativos. Trata-se do Amor de Deus, que deseja cobrir toda a terra, um tsunami divino que nos envolve nesta aventura.

A primeira onda de partida é formada por quatro imperativos dirigidos aos discípulos:
“A vós que me ouvis, eu digo: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos maltratam.”
O verbo grego usado para “amar” aqui não é philein (ser amigo, ou seja, um amor de amizade, de reciprocidade), mas agapan (amar com um amor totalmente gratuito). Este amor traduz-se em fazer o bem, abençoar e rezar pela pessoa que nos é inimiga.

Segue-se uma segunda onda com quatro exemplos concretos, na segunda pessoa do singular, para tornar o discurso mais direto e envolvente: oferecer a outra face ao violento, não recusar a túnica ao ladrão, dar a quem quer que peça, não reclamar o que nos foi tirado.
Não se trata de comportamentos a serem seguidos ao pé da letra, nem de renunciar aos próprios direitos, mas sim de não responder ao mal com o mal e de renunciar à violência. Isso exige discernimento para saber como agir em cada situação particular de injustiça que sofremos. Trata-se de vencer o mal com o bem: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Romanos 12,14-21).

No centro do discurso de Jesus encontramos a chamada “regra de ouro”: “Como quiserdes que os homens vos façam, assim fazei vós a eles.”
Jesus apresenta quatro motivações: três negativas e uma positiva.
Três negativas: que graça, que beleza, que bondade, que gratuidade há... se amais aqueles que vos amam? Se fazeis o bem àqueles que vos fazem bem? Se emprestais àqueles de quem esperais receber? Isso todos são capazes de fazer!
Jesus acrescenta uma quarta motivação positiva: “Amai, pelo contrário, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar nada em troca, e a vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo.”

O texto conclui-se com o convite a “ser misericordioso, como o Pai é misericordioso”, e oferece-nos outras quatro recomendações para nos tornarmos semelhantes a Deus. Duas negativas e duas positivas: não julgueis e não condeneis! Perdoai e dai!

Que lei governa a nossa vida?

“Olho por olho, dente por dente”? Esta máxima parece-nos bárbara e cruel, e hoje ninguém se atreveria a aplicá-la, diríamos nós. Mas será mesmo assim?! Sim, talvez não estrangulássemos o outro com as mãos, mas com as palavras... poderíamos atirá-lo para a lama! Ou, no pensamento, cultivar o desejo de lhe fazer pagar! Ou ainda, torná-lo desprezível com a nossa indiferença! Ou até alimentar o ódio no coração e apagar essa pessoa da nossa vida!

Na verdade, o coração humano não mudou: apenas se tornou mais subtil e refinado! A lei de talião continua a ser aquela que muitas vezes regula as nossas relações, correndo até o risco de nos levar a instrumentalizar Deus para justificar a nossa violência. Um exemplo flagrante é o que está a acontecer mesmo ao nosso lado, na guerra entre a Rússia e a Ucrânia. É bem verdade aquilo que afirmava o filósofo e crente judeu Martin Buber: “O nome de Deus é o nome mais ensanguentado de toda a terra!”

Amar o inimigo?

“Bem, eu não tenho inimigos!”, ouve-se dizer com frequência. Mas, na realidade, fabricamos inimigos todos os dias. Uma verdadeira linha de montagem. Os ouvidos captam uma notícia (má) ou os olhos veem uma imagem (desagradável), o pensamento processa-a, a imaginação fantasia sobre ela, o juízo dita a sua sentença e o coração reage em conformidade... Tornamo-nos juízes implacáveis. E quão difícil é desmontar este mecanismo! É necessária uma vigilância contínua. Santo Agostinho diz: “A ira é uma palha, o ódio é uma trave. Mas alimenta a palha, e ela tornar-se-á uma trave!”

Libertar os prisioneiros!

No seu discurso programático, Jesus afirma ter sido enviado “para proclamar a libertação aos prisioneiros, para pôr em liberdade os oprimidos, para proclamar o ano da graça do Senhor” (Lucas 4,18-19). As prisões que mantêm grande parte da humanidade na escravidão são muitas, mas não terá também o nosso coração se tornado uma prisão? Quantas vezes, nos recantos mais escuros da nossa alma, encerrámos muitas pessoas, condenando-as segundo a lei “olho por olho, dente por dente”. A ocasião do Jubileu é um kairos de graça, o momento propício para escancarar as portas do coração!

P. Manuel João Pereira Correia, mccj



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sábado, 15 de fevereiro de 2025

A Igreja católica e o protocolo de Estado Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA e PENSA

A Igreja católica

e o protocolo de Estado

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Sábado, 15 de Fevereiro de 2025

Nos Estados, há cerimónias oficiais, sendo

natural que se estabeleça um protocolo de

Estado. Em Portugal, já houve um debate à volta

disso, e a Igreja católica e as outras confissões

religiosas deixaram de ter lugar no protocolo.

É assim que deve ser. De facto, a que título é

que as autoridades religiosas haveriam de surgir

na lista de precedências no protocolo,

concretamente num Estado regido pelo princípio

2

da não confessionalidade, portanto, da separação

da(s) Igreja(s) e do Estado?

“Dai a César o que é de César e a Deus o que

é de Deus”, foi programaticamente declarado

por Jesus Cristo. Esta separação do político e do

religioso não tinha sentido na Grécia, que não

separava o cívico e o cultual, nem para o

judaísmo, que unificava nação e religião. Como

escreveu Régis Debray, em Jerusalém, Atenas e

Roma, “o ritual cívico é religioso, e o ritual

religioso é cívico”. Para as três culturas que estão

na base da nossa, alguém que estivesse fora da

religião estava fora da Cidade.

Contra o preceito de Cristo que delimitou

campos de poder, Constantino, apesar da sua

“conversão” ao cristianismo, não esqueceu a

divinização imperial e intrometeu-se nas

questões da Igreja, convocando concílios,

condicionando ou mesmo determinando as suas

decisões. O Papa Bonifácio VIII formulou a teoria

das duas espadas, segundo a qual o Papa detém

o poder espiritual e o temporal, mas, se exerce o

primeiro directamente, delega o segundo nos

príncipes, que o exercem em representação do

3

Papa. Para se defenderem dos Papas, os

monarcas reivindicaram o direito divino dos reis.

Mesmo Lutero afirmou o carácter divino de toda

a autoridade estabelecida.

A modernidade impôs a secularização,

pondo fim a equívocos próprios da Cristandade

e de césaro-papismos. Mesmo que se não esteja

completamente de acordo com autores que

sustentam que a secularização é um fenómeno

produzido pela fé cristã, é necessário afirmar

que, ainda que, de facto, tenha tido de impor-se

contra a Igreja oficial, a secularização, no sentido

da autonomia das realidades terrestres e

concretamente da separação da Igreja e do

Estado, tem raízes bíblicas.

O monoteísmo desdivinizou a política e os

detentores do poder político. O profeta Ezequiel

advertiu o rei de Tiro: “Tu és um homem e não

um deus”. Jesus deixou aquela palavra decisiva

sobre Deus e César. Por isso, os cristãos

opuseram-se frontalmente à divinização do

imperador, proclamando que “só Deus é o

Senhor” e recebendo em troca a acusação de

ateísmo.

4

Em ordem à dessacralização da política e à

consequente separação da Igreja e do Estado,

foram decisivas as guerras de religião na Europa.

De facto, só mediante essa separação, que

significava a neutralidade religiosa do Estado,

era possível a garantia da liberdade religiosa de

todos os cidadãos sem discriminação. Com a

desconfessionalização do Estado, os cidadãos

tornaram-se livres de terem esta ou aquela

religião ou nenhuma.

É, porém, importante perceber que essa

exigência não deriva apenas da necessidade do

estabelecimento da paz política e civil, mas da

natureza do cristianismo. A própria fé impõe

essa separação. De facto, sem ela, espreita

constantemente o perigo de idolatria, isto é, de

confusão ou até de identificação entre Deus e a

política.

Um Estado confessional põe em causa a

transcendência divina. Por outro lado, acaba por

impor politicamente o que só pode ser objecto de

opção livre. Ninguém nasce cristão, mas as

pessoas podem livremente escolher o

cristianismo. Só homens e mulheres

5

verdadeiramente livres podem aderir à fé

religiosa e a Deus.

Jesus recusou a tentação de ser um Messias

político, embora tenha sido condenado à morte

como blasfemo e subversivo social e político,

pois a sua mensagem, que não se confunde com

a política, tem consequências sócio-políticas. E é

aqui que reside o núcleo da questão. A Igreja não

pode fazer política partidária. Mas isso não

significa que deva ou possa remeter-se para a

tranquilidade beata das sacristias. O seu

interesse e caminho é o Homem, e isso exige uma

intervenção pública na denúncia das injustiças e

na defesa e promoção da dignidade humana

toda.

A Igreja não precisa nem quer privilégios,

pois apenas pede para si o que exige para todos:

liberdade. Antes de mais, liberdade para

defender os mais desfavorecidos, os velhos, os

reformados pobres... Aliás, de um modo ou

outro, a factura das precedências no protocolo do

Estado e dos privilégios em geral acabaria

sempre por chegar, tolhendo-lhe a

independência crítica. Isto não significa que não

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possa e até deva haver uma colaboração sadia

entre a Igreja e o Estado para o bem comum,

concretamente no referente a questões sociais.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Onde afundam as nossas raízes? - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 Onde afundam as nossas raízes?

Ano C – Tempo Comum – 6º domingo
Lucas 6,17.20-26: "Bem-aventurados vós, pobres... Mas ai de vós, ricos!"

O Evangelho de hoje apresenta-nos as Bem-aventuranças na versão de São Lucas. O texto se estrutura em quatro bem-aventuranças e quatro advertências, marcadas por quatro "bem-aventurados" e quatro "ai de vós". Jesus declara bem-aventurados os pobres, os famintos, os aflitos e os perseguidos; e adverte os ricos, os saciados, os que riem e os que são aclamados pelo povo.

Se por um lado essas palavras de Jesus nos fascinam, por outro, nos causam certo desconforto, pois apresentam parâmetros que chocam profundamente com a mentalidade corrente. Quem pode realmente dizer-se pobre e faminto? Talvez aflito e perseguido, às vezes. São Mateus de certa maneira as "espiritualiza": "Bem-aventurados os pobres em espírito", "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça"… Já São Lucas as "materializa" sem concessões.

O nosso espírito intui a verdade e a beleza dessa nova visão de vida, encarnada na própria pessoa de Jesus, mas a mente logo começa a relativizá-la, considerando-a irrealista, enquanto o inconsciente tenta suprimi-la o mais rápido possível. De fato, é uma graça deixar-se interpelar por esta palavra. Pois é grande a tentação de dizer, como em outra passagem: "Essa palavra é dura! Quem pode escutá-la?" (João 6,60).

Nesta palavra, como em tantas outras do Evangelho, acontece o que disse o profeta Jeremias: "Minha palavra não é, talvez, como o fogo – oráculo do Senhor – e como um martelo que despedaça a rocha?" (23,29). Noutro trecho, ele afirma que a palavra, dentro das entranhas, causa uma grande dor de estômago (4,29). Qual melhor desejo, então, senão o de sair da celebração dominical com "uma grande dor de barriga"? Seria um sinal de que estamos no caminho certo. A alternativa, afinal, é ir embora tristes, como o jovem rico! Ouvir esta palavra cura-nos e salva-nos do perigo de levar uma vida sem sentido.

O contexto deste Evangelho

São Lucas diz-nos que Jesus se retirou para o monte, sozinho, e passou a noite inteira em oração. Jesus é o Mestre da oração porque ensina a partir da sua própria experiência. O evangelista destaca que Jesus sempre rezava antes das grandes decisões. O relato continua dizendo que, pela manhã, Jesus chamou a si todos os seus discípulos e escolheu doze, a quem chamou apóstolos (Lc 6,12-13).

Depois, Jesus desce com seus discípulos e para num lugar plano. Enquanto em São Mateus Jesus faz o seu discurso no monte, símbolo da proximidade com Deus, São Lucas situa-o na planície, símbolo da proximidade com as pessoas, onde pode ser facilmente alcançado por todos. De fato, "havia uma grande multidão de seus discípulos e uma imensa multidão de gente", vinda de todas as partes "para ouvi-lo e serem curados de suas doenças". Toda a multidão tentava tocá-lo, "porque dele saía uma força que curava a todos" (Lc 6,17-19).

Nesta vasta cena humana, Jesus, levantando os olhos para os discípulos, proclama as bem-aventuranças. O Senhor ergue o olhar porque fala de baixo. Deus é humilde e não se posiciona acima de nós.

Algumas observações

Bem-aventurados vós, pobres, porque vosso é o Reino de Deus.
Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados.
Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque rireis.
Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem... por causa do Filho do Homem.

Notamos que:

  • Na Sagrada Escritura, já encontramos esta forma literária de bem-aventuranças e de maldições (veja-se a primeira leitura de Jeremias e o Salmo 1). Os rabinos, no tempo de Jesus, também a utilizavam. 
  • Enquanto São Mateus apresenta as bem-aventuranças numa forma sapiencial, enunciando-as na terceira pessoa do plural: "Bem-aventurados os pobres", São Lucas adota um estilo profético, mais direto, dirigindo-se aos discípulos na segunda pessoa do plural: "Bem-aventurados vós, pobres".
  • Cada bem-aventurança é acompanhada de um "porque", mas qual é a razão fundamental dessas afirmações tão paradoxais? Jesus não consagra nem idealiza a pobreza. A pobreza, a fome, a aflição e a perseguição são realidades negativas a serem combatidas. A boa notícia é que Deus não tolera essas injustiças, tão difundidas neste nosso mundo, e assume a causa dos pobres. Jeremias, na primeira leitura, afirma que a verdadeira bem-aventurança nasce da confiança no Senhor: "Bendito o homem que confia no Senhor, e o Senhor é sua confiança". 
  • Na primeira bem-aventurança, Jesus usa o verbo no presente: "Bem-aventurados vós, pobres, porque vosso é o Reino de Deus", enquanto nas outras emprega o futuro. Como explicar isto? As bem-aventuranças possuem uma dimensão já presente, mas também uma projeção futura rumo à sua plena realização. Paradoxalmente, portanto, na própria experiência do sofrimento é possível encontrar alegria. Um exemplo eloquente é o dos apóstolos Pedro e João, que, depois de serem açoitados, "saíram do Sinédrio felizes por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus" (Atos 5,41). 

De forma simétrica, Jesus apresenta quatro advertências, os quatro "ai de vós":

Mas ai de vós, ricos, porque já recebestes a vossa consolação.
Ai de vós, que agora estais saciados, porque tereis fome.
Ai de vós, que agora rides, porque vos lamentareis e chorareis.
Ai de vós, quando todos os homens falarem bem de vós...

Notamos que:

  • Enquanto na versão de São Mateus Jesus se limita a proclamar as oito bem-aventuranças (mais uma voltada diretamente aos discípulos), na versão lucana encontramos apenas quatro, mas com a adição de quatro "ai de vós", em contraposição aos "bem-aventurados vós". 
  • O termo "ai de vós" era usado em contexto profético para anunciar desgraças. No entanto, esses "ais" de Jesus não são maldições, mas expressões de dor e compaixão. Poderiam ser traduzidos como "que pena por vós". Enquanto as bem-aventuranças são como uma felicitação aos "bem-aventurados", os "ai de vós" têm o tom de uma mensagem de pêsames. 
  • Porque é que Jesus adverte os ricos? Não se trata de uma visão classista. É verdade que a riqueza muitas vezes está associada à injustiça, que gera pobreza e sofrimento. No entanto, a parábola do rico e do pobre Lázaro não se concentra na origem da riqueza, nem afirma que o rico tenha cometido algum crime, mas mostra a sua condenação por ter ignorado o pobre à sua porta (Lucas 16,19-31). 
  • O profeta Jeremias é categórico: "Maldito o homem que confia no homem e põe na carne seu sustento, afastando seu coração do Senhor". Confiar nos bens não só fecha o coração aos irmãos, mas também conduz à idolatria. 

Para reflexão pessoal

As bem-aventuranças são o caminho proposto por Jesus para a felicidade, para ter uma existência bela, fecunda e significativa. O profeta Jeremias compara a felicidade a uma árvore sempre verde e frutífera, cujas raízes se estendem em direção ao rio. Em contraste, uma vida não enraizada em Deus é como o tamarisco do deserto que "não verá o bem chegar, habitará em lugares áridos no deserto, numa terra salgada, onde ninguém pode viver". Tudo depende, portanto, de onde afundamos nossas raízes. Onde afundam as minhas?

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Monos e humanos origem e originalidades Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

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PÁRA E PENSA
Monos e humanos

origem e originalidades

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

O que é o Homem?

Ao longo dos séculos, foram-se sucedendo, numa
lista quase interminável, as tentativas de resposta:
animal que fala, animal político (Aristóteles); animal
racional (os estóicos e a Escolástica); realidade
sagrada (Séneca); um ser que pensa (Descartes); uma
cana pensante (Pascal); um ser que trabalha (Marx);
um animal capaz de prometer (Nietzsche); um ser que
cria (Bergson); um animal que ri, um animal que
chora, um animal que sepulta os mortos... Saído da
gigantesca aventura cósmica com uns 13.700 milhões
de anos, o Homem tem, segundo Edgar Morin, “a
singularidade de ser cerebralmente sapiens-demens
(sapiente-demente), ter, portanto, com ele “ao mesmo
tempo a racionalidade, o delírio, a hybris (a
desmesura), a destrutividade”.
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O filósofo André Comte-Sponville apresentou a
sua “definição”, que julga suficiente: “É um ser
humano qualquer ser nascido de dois seres
humanos.” Sim, é verdade. Mas será mesmo
suficiente? O que dizer em relação aos primeiros
homens, que, na história da evolução, não nasceram
de outros humanos? De qualquer modo a pergunta
continua aí, gigantesca, a pergunta das perguntas...

Os grandes espíritos -- Diderot, por exemplo
deram-se conta de que o que somos não pode ser
encerrado numa definição. O Homem é o ser que leva
consigo a questão do ser e do seu ser e que originária
e constitutivamente pergunta: o que é o Homem? O
que, antes de mais, une a Humanidade inteira é
precisamente esta pergunta: o que é ser Homem?

Se o chimpanzé, por exemplo, também sente,
recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende e
inventa, o que é que nos distingue?

Afinal, muito de idêntico em nós e no
chimpanzé, “no mono e no Papa”, disse ironicamente
o filósofo confessadamente ateu Michel Onfray. O
professor de filosofia e o chimpanzé têm necessidades
naturais comuns: comer, beber, dormir. A etologia
mostra que há comportamentos naturais comuns aos
animais e aos humanos. Veja-se, por exemplo, as
relações de violência e de agressão e compare-se
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inclusivamente os rituais de cortejamento sexual. Mas
é interessante constatar que na resposta às
necessidades naturais há uma diferença: os homens
inventaram a cozinha e a gastronomia e também o
erotismo.

No entanto, escreve M. Onfray, “o Homem e o
animal separam-se radicalmente quando se trata de
necessidades espirituais, as únicas que são próprias
dos homens e das quais não se encontra nenhum
vestígio mínimo que seja nos animais.” Há nos
humanos uma série de actividades especificamente
intelectuais, que os distinguem radicalmente dos
monos: nestes, não encontramos filosofia nem religião
nem técnica nem arte.

A tentativa de compreendê-lo no quadro de um
materialismo mecanicista ou do biologismo não dá
conta do Homem. De facto, o animal é conduzido
pelo instinto. Por isso, esfomeado, não se conterá
perante a comida apropriada que lhe apareça. Face à
fêmea no período do cio, não resistirá. O Homem,
pelo contrário, é capaz de transcender a dinâmica
biológica. Por motivos de ascese ou religiosos ou até
pura e simplesmente para mostrar a si próprio que se
não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se,
resistir, dizer não. Foi neste sentido que Max Scheler,
um dos fundadores da Antropologia Filosófica
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escreveu que o Homem é “o asceta da vida”, o único
animal capaz de dizer não aos impulsos instintivos.

Cá está: esta é a base biológica da conduta moral,
uma característica essencialmente específica humana.
Uma vez que o Homem é capaz de ponderar,
renunciar, abster-se, optar, dizer sim, dizer não aos
impulsos, é livre e, por conseguinte, animal moral.

O Homem é corpo, mas um corpo que fala e que
diz “eu”. Porque fala, é capaz de debater questões, de
defender pontos de vista, distinguir o bem e o mal,
tomar posições sobre valores morais, políticos,
religiosos, estéticos, filosóficos...

Então, o enigma é este: provimos da natureza, mas
contrapomo-nos a ela, somos simultaneamente da
natureza, na natureza e fora dela. Monos e humanos
têm a mesma origem, mas os humanos têm
originalidades únicas e irredutíveis.