A
IMORALIDADE DA GUERRA
Frei
Bento Domingues, O.P.
23
Fevereiro 2025
1. Com diferentes matizes, segundo
Marciano Vidal, foi longa, na Igreja Católica, a história da teoria da guerra
justa, desde Santo Agostinho até à Pacem in Terris de João XXIII, dirigida
a todas as pessoas de boa vontade[1]. Neste tempo, que parece
ter esquecido as loucuras do passado, importa relembrar os traços essenciais
deste documento incomparável e inspirador.
Foi publicado no dia 11 de Abril de 1963, dois meses antes
da morte de João XXIII, dois anos depois da construção do Muro de Berlim e
alguns meses depois da crise dos mísseis em Cuba, numa época marcada pela
proliferação nuclear e pela disputa ente os EUA e a URSS.
Nessa conjuntura, este Papa defendeu que «os conflitos
entre as nações devem ser resolvidos com negociações e não com armas e na
confiança mútua». Ele formulou a síntese mais exacta e mais bela do que deve
ser a paz entre os povos: «a verdade como fundamento, a justiça como norma, o
amor como motor, a liberdade como clima».
Temos de explicitar o seu conteúdo. Através desta
encíclica, a Igreja foi convidada a uma profunda conversão, recusando a teoria da
guerra justa para se reflectir e agir sobre a dignidade, os deveres e os
direitos humanos, enquanto fundamentos da paz mundial. Insistiu na importância
da colaboração entre todos. Pela primeira vez, um documento da Igreja era
dirigido a todas as pessoas de boa vontade, chamadas à imensa tarefa de
recompor as relações da convivência entre os povos.
João XXIII defendeu o desarmamento, uma distribuição
equitativa de recursos, um maior controlo das políticas das empresas
multinacionais e várias políticas estatais que favoreçam o acolhimento dos
refugiados; reconheceu que todas as nações têm igual dignidade e igual direito
ao seu próprio desenvolvimento; propôs a construção de uma sociedade baseada na
subsidiariedade; e incentivou os católicos à acção e à transformação do
presente e do futuro. Esta encíclica exortou também os poderes públicos da
comunidade mundial a promover o bem comum universal, através de uma resolução
eficaz dos vários problemas que assolam o mundo.
2. O Papa Paulo VI não traiu a Pacem
in Terris. Em 1965, discursou na Assembleia Geral da ONU.
Reafirmou o primado do direito nas relações entre os Estados e apelou ao
instrumento da negociação na resolução de conflitos. Guerra nunca mais.
É a paz que deve guiar o destino dos povos e de toda a humanidade.
Continuando, o Papa afirmou: esta Organização representa o
caminho obrigatório da civilização moderna e da paz mundial. Ao dizer isto,
temos consciência de fazer nossa quer a voz dos mortos quer a voz dos vivos:
dos mortos caídos nas terríveis guerras do passado, sonhando com a concórdia e
a paz do mundo; dos vivos que lhes sobreviveram e que antecipadamente condenam,
nos seus corações, os que tentassem renová-las. De outros vivos ainda: as
jovens gerações de hoje, que avançam confiantes, esperando com razão uma
humanidade melhor.
Fazemos também nossa a voz dos pobres, dos deserdados, dos
infelizes, dos que aspiram à justiça, à dignidade de viver, à liberdade, ao
bem-estar e ao progresso. Os povos voltam-se para as Nações Unidas como para a
última esperança da concórdia e da paz.
Escutai as palavras lúcidas de um grande desaparecido,
John Kennedy, que proclamou: A humanidade deverá pôr fim à guerra, ou é a
guerra que porá fim à humanidade. Não são necessários longos discursos para
proclamar a finalidade suprema desta Instituição. Basta recordar que o sangue
de milhões de homens, os sofrimentos espantosos e inumeráveis, os inúteis
massacres e as aterradoras ruínas sancionam o pacto que vos une, num juramento
que deve mudar a história futura do mundo: nunca
mais a guerra, nunca mais a guerra. É a paz, a paz que deve guiar o destino dos
povos e de toda a humanidade[2].
Uma paz sem vencedor e sem vencidos, como escreveu Sophia de Mello Breyner.
Foi também Paulo VI que instituiu
o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro 1967) que todos os anos obriga a Igreja a
não esquecer os desafios que a Paz exige. No mesmo ano, publicou a Populorum Progresso, inspirada na obra do Padre Lebret, O.P.
(1897-1966).
O texto critica tanto o liberalismo sem freio que
conduziu ao imperialismo internacional do dinheiro, como a colectivização
integral. «A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos. Quer dizer que
a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional
e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é
supérfluo, quando a outros falta o necessário. Numa palavra, o direito de
propriedade nunca deve exercer-se em detrimento do bem comum, segundo a
doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos. Surgindo
algum conflito entre os direitos privados e adquiridos e as exigências
comunitárias primordiais, é ao poder público que pertence resolvê-lo, com
a participação activa das pessoas e dos grupos sociais».
O Papa Bento XVI, na sua encíclica Caritas in Veritate (2009),
reiterou a importância da mensagem contida na Populorum Progressio.
Segundo ele, da mesma forma que a encíclica Rerum Novarum (1891) foi
importante para a época, a encíclica de Paulo VI é importante para os desafios
da contemporaneidade.
3. Em Portugal, não se pode
abordar a questão da imoralidade da guerra sem referir as três frentes da
guerra colonial com os seus mortos e incontáveis vítimas (1961-1974): em
Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. O próprio Paulo VI teve a corajosa
iniciativa de receber, no Vaticano (01.07.1970), os líderes políticos das lutas
de libertação das colónias sob o domínio de Portugal em África: Marcelino dos
Santos (FRELIMO), Agostinho Neto (MPLA) e Amílcar Cabral (PAIGC). A Igreja
contribuía, assim, decisivamente, para o desmoronar do império colonial
português. Remeto para o texto notável de Frei José Nunes, O.P., sobre Submissão
e resistência ao Colonialismo durante o Estado Novo[3].
Acerca da imoralidade da guerra, o Papa Francisco, na sua
autobiografia, diz que é imoral a posse das armas atómicas. Seremos julgados
por isso. As novas gerações erguer-se-ão como juízes da nossa derrota se a paz
for apenas um som de palavras e não a tivermos realizado com as nossas acções
entre os povos da Terra[4].
Nós temos uma arte de fazer, cada vez mais, inimigos entre
pessoas, povos e culturas. O Evangelho deste Domingo propõe, pelo contrário: amai
os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam,
rezai por aqueles que vos injuriam[5].
Isto não é uma proposta de fazer inimigos. Diz que é preciso mudar a lógica do
ódio, a lógica da vingança, a lógica da imoralidade da guerra. Para tornar o
mundo outro é necessário o caminho oposto ao que andamos a percorrer. Temos de superar
o mundo de amigos e inimigos.
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