segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

A IMORALIDADE DA GUERRA Frei Bento Domingues, O.P. 23 Fevereiro 2025

 

A IMORALIDADE DA GUERRA

Frei Bento Domingues, O.P.

23 Fevereiro 2025

 

1. Com diferentes matizes, segundo Marciano Vidal, foi longa, na Igreja Católica, a história da teoria da guerra justa, desde Santo Agostinho até à Pacem in Terris de João XXIII, dirigida a todas as pessoas de boa vontade[1]. Neste tempo, que parece ter esquecido as loucuras do passado, importa relembrar os traços essenciais deste documento incomparável e inspirador.

Foi publicado no dia 11 de Abril de 1963, dois meses antes da morte de João XXIII, dois anos depois da construção do Muro de Berlim e alguns meses depois da crise dos mísseis em Cuba, numa época marcada pela proliferação nuclear e pela disputa ente os EUA e a URSS.

Nessa conjuntura, este Papa defendeu que «os conflitos entre as nações devem ser resolvidos com negociações e não com armas e na confiança mútua». Ele formulou a síntese mais exacta e mais bela do que deve ser a paz entre os povos: «a verdade como fundamento, a justiça como norma, o amor como motor, a liberdade como clima».

Temos de explicitar o seu conteúdo. Através desta encíclica, a Igreja foi convidada a uma profunda conversão, recusando a teoria da guerra justa para se reflectir e agir sobre a dignidade, os deveres e os direitos humanos, enquanto fundamentos da paz mundial. Insistiu na importância da colaboração entre todos. Pela primeira vez, um documento da Igreja era dirigido a todas as pessoas de boa vontade, chamadas à imensa tarefa de recompor as relações da convivência entre os povos.

João XXIII defendeu o desarmamento, uma distribuição equitativa de recursos, um maior controlo das políticas das empresas multinacionais e várias políticas estatais que favoreçam o acolhimento dos refugiados; reconheceu que todas as nações têm igual dignidade e igual direito ao seu próprio desenvolvimento; propôs a construção de uma sociedade baseada na subsidiariedade; e incentivou os católicos à acção e à transformação do presente e do futuro. Esta encíclica exortou também os poderes públicos da comunidade mundial a promover o bem comum universal, através de uma resolução eficaz dos vários problemas que assolam o mundo.

2. O Papa Paulo VI não traiu a Pacem in Terris. Em 1965, discursou na Assembleia Geral da ONU. Reafirmou o primado do direito nas relações entre os Estados e apelou ao instrumento da negociação na resolução de conflitos. Guerra nunca mais. É a paz que deve guiar o destino dos povos e de toda a humanidade.

Continuando, o Papa afirmou: esta Organização representa o caminho obrigatório da civilização moderna e da paz mundial. Ao dizer isto, temos consciência de fazer nossa quer a voz dos mortos quer a voz dos vivos: dos mortos caídos nas terríveis guerras do passado, sonhando com a concórdia e a paz do mundo; dos vivos que lhes sobreviveram e que antecipadamente condenam, nos seus corações, os que tentassem renová-las. De outros vivos ainda: as jovens gerações de hoje, que avançam confiantes, esperando com razão uma humanidade melhor.

Fazemos também nossa a voz dos pobres, dos deserdados, dos infelizes, dos que aspiram à justiça, à dignidade de viver, à liberdade, ao bem-estar e ao progresso. Os povos voltam-se para as Nações Unidas como para a última esperança da concórdia e da paz.

Escutai as palavras lúcidas de um grande desaparecido, John Kennedy, que proclamou: A humanidade deverá pôr fim à guerra, ou é a guerra que porá fim à humanidade. Não são necessários longos discursos para proclamar a finalidade suprema desta Instituição. Basta recordar que o sangue de milhões de homens, os sofrimentos espantosos e inumeráveis, os inúteis massacres e as aterradoras ruínas sancionam o pacto que vos une, num juramento que deve mudar a história futura do mundo: nunca mais a guerra, nunca mais a guerra. É a paz, a paz que deve guiar o destino dos povos e de toda a humanidade[2]. Uma paz sem vencedor e sem vencidos, como escreveu Sophia de Mello Breyner.

Foi também Paulo VI que instituiu o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro 1967) que todos os anos obriga a Igreja a não esquecer os desafios que a Paz exige. No mesmo ano, publicou a Populorum Progresso, inspirada na obra do Padre Lebret, O.P. (1897-1966).

O texto critica tanto o liberalismo sem freio que conduziu ao imperialismo internacional do dinheiro, como a colectivização integral. «A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos. Quer dizer que a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário. Numa palavra, o direito de propriedade nunca deve exercer-se em detrimento do bem comum, segundo a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos. Surgindo algum conflito entre os direitos privados e adquiridos e as exigências comunitárias primordiais, é ao poder público que pertence resolvê-lo, com a participação activa das pessoas e dos grupos sociais».

O Papa Bento XVI, na sua encíclica Caritas in Veritate (2009), reiterou a importância da mensagem contida na Populorum Progressio. Segundo ele, da mesma forma que a encíclica Rerum Novarum (1891) foi importante para a época, a encíclica de Paulo VI é importante para os desafios da contemporaneidade.

3. Em Portugal, não se pode abordar a questão da imoralidade da guerra sem referir as três frentes da guerra colonial com os seus mortos e incontáveis vítimas (1961-1974): em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. O próprio Paulo VI teve a corajosa iniciativa de receber, no Vaticano (01.07.1970), os líderes políticos das lutas de libertação das colónias sob o domínio de Portugal em África: Marcelino dos Santos (FRELIMO), Agostinho Neto (MPLA) e Amílcar Cabral (PAIGC). A Igreja contribuía, assim, decisivamente, para o desmoronar do império colonial português. Remeto para o texto notável de Frei José Nunes, O.P., sobre Submissão e resistência ao Colonialismo durante o Estado Novo[3].

Acerca da imoralidade da guerra, o Papa Francisco, na sua autobiografia, diz que é imoral a posse das armas atómicas. Seremos julgados por isso. As novas gerações erguer-se-ão como juízes da nossa derrota se a paz for apenas um som de palavras e não a tivermos realizado com as nossas acções entre os povos da Terra[4].

Nós temos uma arte de fazer, cada vez mais, inimigos entre pessoas, povos e culturas. O Evangelho deste Domingo propõe, pelo contrário: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, rezai por aqueles que vos injuriam[5]. Isto não é uma proposta de fazer inimigos. Diz que é preciso mudar a lógica do ódio, a lógica da vingança, a lógica da imoralidade da guerra. Para tornar o mundo outro é necessário o caminho oposto ao que andamos a percorrer. Temos de superar o mundo de amigos e inimigos.

 

 

 



[1] Cf. Marciano Vidal, Selecciones de Teologia, Vol 63 (2024), nº 252, pp.243-256

[2] Cf. Discurso de Paulo VI na ONU, 1665

[3] Cf. José Nunes, O.P., in 7Margens, 05.05.2024

[4] Francisco, Esperança, A Autobiografia, Nascente, 2024, p.196

[5] Lc 6, 27-38

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