sábado, 1 de março de 2025

O fundamentalismo religioso Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

O fundamentalismo religioso

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Na presente situação do mundo, impõe-se

cada vez mais a urgência do diálogo inter-

religioso. Dou hoje início a uma breve reflexão

sobre a questão, mostrando a necessidade de

acabar com o fundamentalismo.

De modo geral, quando se fala em

fundamentalismo, é no fundamentalismo

religioso que se pensa. Há, porém, outras formas

de fundamentalismo: o fundamentalismo

político, o fundamentalismo cultural, o

fundamentalismo económico, por exemplo.

Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia,

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referindo-se à política económica seguida pelo

FMI no quadro da globalização, fala de

“fundamentalismo neoliberal”.

Quando se refere o fundamentalismo

religioso, pensa-se essencialmente no islamismo.

Mas, de facto, as palavras “fundamentalismo” e

“fundamentalista” nasceram nos Estados

Unidos, nos princípios do século XX e no

contexto do protestantismo. Com o objectivo de

preservar e defender os pontos considerados

fundamentais da fé cristã, protestantes

evangélicos norte-americanos de várias

denominações escreveram artigos teológicos que

foram reunidos e publicados entre 1910 e 1915,

em doze fascículos com o título The

Fundamentals: a Testimony to Truth, numa edição

de três milhões de exemplares. Em 1919, foi

criada a World’s Christian Fundamentals

Association, na convicção de que a regeneração

do protestantismo implicava o combate ao

liberalismo teológico. Foi em 1920 que o termo

passou à opinião pública através de um artigo

de Curtis Lee Laws, no qual se lia: “Sugerimos

que aqueles que ainda continuam firmemente

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apegados aos grandes fundamentos

(Fundamentals) e que estão decididos a combater

a sério por esses fundamentos sejam chamados

Fundamentalists”, devendo, portanto, o termo ser

considerado “um elogio e não um insulto”.

Um dos fundamentos inquestionáveis era o

da inspiração verbal da Bíblia, seguindo-se daí a

sua infalibilidade e inerrância. O texto bíblico

devia ser assumido à letra e a sua autoridade

estendia-se não só ao domínio religioso mas a

todos os campos do saber: científico, histórico,

filosófico... Foi neste contexto que em 1925 teve

lugar em Dayton o famoso “caso Scopes”: um

jovem professor de biologia, John T. Scopes, foi

julgado e condenado por ensinar aos alunos a

teoria da evolução das espécies de Darwin. Esse

debate à volta do ensino do evolucionismo e da

narração bíblica da criação nas escolas continua

ainda hoje nos Estados Unidos.

Seja qual for o juízo que se faça sobre a

modernidade e a sua crise, é necessário

reconhecer conquistas suas irrenunciáveis:

precisamente a leitura não literal, mas histórico-

crítica dos textos sagrados, a separação das

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Igrejas e do Estado, da religião e da política, os

direitos humanos, a ciência e a razão crítica, a

autonomia das realidades terrestres. Apesar das

constantes tentações restauracionistas e até pró-

fundamentalistas, são valores que também a

Igreja Católica reconheceu no Concílio Vaticano

II (1962-1965), superando, no essencial, os

conflitos que durante mais de trezentos anos

manteve com os tempos modernos.

Neste contexto e não desconhecendo que

Maomé foi ao mesmo tempo um profeta

religioso, um chefe de Estado e um guerreiro à

frente de um exército, impõe-se

imprescindivelmente a necessidade de

perguntar se também nos Estados muçulmanos

são possíveis a separação da religião e do

Estado, a interpretação crítica do Alcorão, a

autonomia das realidades temporais em relação

à tutela religiosa, o respeito pela liberdade de

consciência, de pensamento, de expressão, de

reunião, de associação, o direito à crítica da

religião, à mudança de religião e à não crença, a

igualdade dos sexos e dos seus direitos, a

distinção entre ética civil e ética religiosa.

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Há várias explicações para o

fundamentalismo, que cultiva o pensamento

único e a intolerância. Sublinham-se três.

Quando se não suporta viver na

perplexidade e na interrogação, surge a

tentação de absolutizar as próprias crenças,

excluindo e perseguindo quem as não partilha.

Em toda a História foi permanente a

utilização da religião para fins que não são os

seus: alcançar o poder, servir os próprios

interesses económicos, políticos, culturais, impor

hegemonicamente o próprio domínio.

Em última análise, na base está uma

determinada concepção de verdade, que se

confunde com a posse do Fundamento. Mas,

precisamente aqui, é preciso perguntar: quem é

o Homem, um ser finito, para considerar-se

senhor do Fundamento? Ele não possui o

Fundamento ou o Absoluto, é o Fundamento

que o possui a ele. Isto não é relativismo, mas

perspectivismo: vamos ao encontro da realidade

sempre numa determinada perspectiva. Por isso,

no domínio religioso, há que reconhecer que há

mais verdade nas religiões todas do que numa

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só, e dessa verdade faz também parte a pergunta

pelo ateísmo.

De qualquer modo, condições

imprescindíveis para a paz são um Estado laico,

não confessional, e a leitura não literal, mas

histórico-crítica dos livros sagrados,

nomeadamente a Bíblia e o Alcorão.

Sábado, 1 de Março de 2025

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