Crónicas PÁRA E PENSA
O fundamentalismo religioso
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Na presente situação do mundo, impõe-se
cada vez mais a urgência do diálogo inter-
religioso. Dou hoje início a uma breve reflexão
sobre a questão, mostrando a necessidade de
acabar com o fundamentalismo.
De modo geral, quando se fala em
fundamentalismo, é no fundamentalismo
religioso que se pensa. Há, porém, outras formas
de fundamentalismo: o fundamentalismo
político, o fundamentalismo cultural, o
fundamentalismo económico, por exemplo.
Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia,
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referindo-se à política económica seguida pelo
FMI no quadro da globalização, fala de
“fundamentalismo neoliberal”.
Quando se refere o fundamentalismo
religioso, pensa-se essencialmente no islamismo.
Mas, de facto, as palavras “fundamentalismo” e
“fundamentalista” nasceram nos Estados
Unidos, nos princípios do século XX e no
contexto do protestantismo. Com o objectivo de
preservar e defender os pontos considerados
fundamentais da fé cristã, protestantes
evangélicos norte-americanos de várias
denominações escreveram artigos teológicos que
foram reunidos e publicados entre 1910 e 1915,
em doze fascículos com o título The
Fundamentals: a Testimony to Truth, numa edição
de três milhões de exemplares. Em 1919, foi
criada a World’s Christian Fundamentals
Association, na convicção de que a regeneração
do protestantismo implicava o combate ao
liberalismo teológico. Foi em 1920 que o termo
passou à opinião pública através de um artigo
de Curtis Lee Laws, no qual se lia: “Sugerimos
que aqueles que ainda continuam firmemente
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apegados aos grandes fundamentos
(Fundamentals) e que estão decididos a combater
a sério por esses fundamentos sejam chamados
Fundamentalists”, devendo, portanto, o termo ser
considerado “um elogio e não um insulto”.
Um dos fundamentos inquestionáveis era o
da inspiração verbal da Bíblia, seguindo-se daí a
sua infalibilidade e inerrância. O texto bíblico
devia ser assumido à letra e a sua autoridade
estendia-se não só ao domínio religioso mas a
todos os campos do saber: científico, histórico,
filosófico... Foi neste contexto que em 1925 teve
lugar em Dayton o famoso “caso Scopes”: um
jovem professor de biologia, John T. Scopes, foi
julgado e condenado por ensinar aos alunos a
teoria da evolução das espécies de Darwin. Esse
debate à volta do ensino do evolucionismo e da
narração bíblica da criação nas escolas continua
ainda hoje nos Estados Unidos.
Seja qual for o juízo que se faça sobre a
modernidade e a sua crise, é necessário
reconhecer conquistas suas irrenunciáveis:
precisamente a leitura não literal, mas histórico-
crítica dos textos sagrados, a separação das
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Igrejas e do Estado, da religião e da política, os
direitos humanos, a ciência e a razão crítica, a
autonomia das realidades terrestres. Apesar das
constantes tentações restauracionistas e até pró-
fundamentalistas, são valores que também a
Igreja Católica reconheceu no Concílio Vaticano
II (1962-1965), superando, no essencial, os
conflitos que durante mais de trezentos anos
manteve com os tempos modernos.
Neste contexto e não desconhecendo que
Maomé foi ao mesmo tempo um profeta
religioso, um chefe de Estado e um guerreiro à
frente de um exército, impõe-se
imprescindivelmente a necessidade de
perguntar se também nos Estados muçulmanos
são possíveis a separação da religião e do
Estado, a interpretação crítica do Alcorão, a
autonomia das realidades temporais em relação
à tutela religiosa, o respeito pela liberdade de
consciência, de pensamento, de expressão, de
reunião, de associação, o direito à crítica da
religião, à mudança de religião e à não crença, a
igualdade dos sexos e dos seus direitos, a
distinção entre ética civil e ética religiosa.
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Há várias explicações para o
fundamentalismo, que cultiva o pensamento
único e a intolerância. Sublinham-se três.
Quando se não suporta viver na
perplexidade e na interrogação, surge a
tentação de absolutizar as próprias crenças,
excluindo e perseguindo quem as não partilha.
Em toda a História foi permanente a
utilização da religião para fins que não são os
seus: alcançar o poder, servir os próprios
interesses económicos, políticos, culturais, impor
hegemonicamente o próprio domínio.
Em última análise, na base está uma
determinada concepção de verdade, que se
confunde com a posse do Fundamento. Mas,
precisamente aqui, é preciso perguntar: quem é
o Homem, um ser finito, para considerar-se
senhor do Fundamento? Ele não possui o
Fundamento ou o Absoluto, é o Fundamento
que o possui a ele. Isto não é relativismo, mas
perspectivismo: vamos ao encontro da realidade
sempre numa determinada perspectiva. Por isso,
no domínio religioso, há que reconhecer que há
mais verdade nas religiões todas do que numa
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só, e dessa verdade faz também parte a pergunta
pelo ateísmo.
De qualquer modo, condições
imprescindíveis para a paz são um Estado laico,
não confessional, e a leitura não literal, mas
histórico-crítica dos livros sagrados,
nomeadamente a Bíblia e o Alcorão.
Sábado, 1 de Março de 2025
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