sábado, 22 de fevereiro de 2025

Escancarar as portas do coração - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 Escancarar as portas do coração

Ano C – Tempo Comum – 7º Domingo
Lucas 6,27-38: “Eu digo-vos: amai os vossos inimigos”

O evangelho deste domingo dá continuidade ao das bem-aventuranças no “sermão da planície” de São Lucas (Lc 6,17-49). Jesus indica qual deve ser a conduta dos seus discípulos. O resumo da mensagem de Jesus é: “Amai os vossos inimigos”. Se a mensagem das bem-aventuranças do domingo passado já nos parecia exigente, esta é ainda mais. Trata-se de um dos textos mais desconcertantes do evangelho, que exige uma inversão radical das nossas reações instintivas e dos nossos comportamentos sociais.

No texto, Jesus utiliza nada menos do que dezasseis imperativos. As Suas palavras, no entanto, não constituem uma nova legislação, mas devem ser relidas à luz das bem-aventuranças. São palavras de sabedoria divina que nos conduzem ao próprio coração de Deus. Jesus – por mais paradoxal que possa parecer – entrega-nos a chave de acesso às bem-aventuranças.

A história da salvação e a existência cristã são um caminho, um processo de passagem da ordem da justiça (“olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”: Êxodo 21,24) para a ordem da graça (“Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso”: Lc 6,36). Trata-se de uma passagem da lógica retributiva para a lógica da gratuidade, uma mudança radical que Jesus propõe aos Seus discípulos. São Paulo, na segunda leitura (1 Coríntios 15,45-49), apresenta este processo como a passagem do “primeiro Adão” para o “último Adão”, do homem terreno para o homem celeste.

As ondas do Amor divino

O discurso de Jesus avança em quatro ondas sucessivas, cada uma marcada por quatro imperativos. Trata-se do Amor de Deus, que deseja cobrir toda a terra, um tsunami divino que nos envolve nesta aventura.

A primeira onda de partida é formada por quatro imperativos dirigidos aos discípulos:
“A vós que me ouvis, eu digo: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos maltratam.”
O verbo grego usado para “amar” aqui não é philein (ser amigo, ou seja, um amor de amizade, de reciprocidade), mas agapan (amar com um amor totalmente gratuito). Este amor traduz-se em fazer o bem, abençoar e rezar pela pessoa que nos é inimiga.

Segue-se uma segunda onda com quatro exemplos concretos, na segunda pessoa do singular, para tornar o discurso mais direto e envolvente: oferecer a outra face ao violento, não recusar a túnica ao ladrão, dar a quem quer que peça, não reclamar o que nos foi tirado.
Não se trata de comportamentos a serem seguidos ao pé da letra, nem de renunciar aos próprios direitos, mas sim de não responder ao mal com o mal e de renunciar à violência. Isso exige discernimento para saber como agir em cada situação particular de injustiça que sofremos. Trata-se de vencer o mal com o bem: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Romanos 12,14-21).

No centro do discurso de Jesus encontramos a chamada “regra de ouro”: “Como quiserdes que os homens vos façam, assim fazei vós a eles.”
Jesus apresenta quatro motivações: três negativas e uma positiva.
Três negativas: que graça, que beleza, que bondade, que gratuidade há... se amais aqueles que vos amam? Se fazeis o bem àqueles que vos fazem bem? Se emprestais àqueles de quem esperais receber? Isso todos são capazes de fazer!
Jesus acrescenta uma quarta motivação positiva: “Amai, pelo contrário, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar nada em troca, e a vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo.”

O texto conclui-se com o convite a “ser misericordioso, como o Pai é misericordioso”, e oferece-nos outras quatro recomendações para nos tornarmos semelhantes a Deus. Duas negativas e duas positivas: não julgueis e não condeneis! Perdoai e dai!

Que lei governa a nossa vida?

“Olho por olho, dente por dente”? Esta máxima parece-nos bárbara e cruel, e hoje ninguém se atreveria a aplicá-la, diríamos nós. Mas será mesmo assim?! Sim, talvez não estrangulássemos o outro com as mãos, mas com as palavras... poderíamos atirá-lo para a lama! Ou, no pensamento, cultivar o desejo de lhe fazer pagar! Ou ainda, torná-lo desprezível com a nossa indiferença! Ou até alimentar o ódio no coração e apagar essa pessoa da nossa vida!

Na verdade, o coração humano não mudou: apenas se tornou mais subtil e refinado! A lei de talião continua a ser aquela que muitas vezes regula as nossas relações, correndo até o risco de nos levar a instrumentalizar Deus para justificar a nossa violência. Um exemplo flagrante é o que está a acontecer mesmo ao nosso lado, na guerra entre a Rússia e a Ucrânia. É bem verdade aquilo que afirmava o filósofo e crente judeu Martin Buber: “O nome de Deus é o nome mais ensanguentado de toda a terra!”

Amar o inimigo?

“Bem, eu não tenho inimigos!”, ouve-se dizer com frequência. Mas, na realidade, fabricamos inimigos todos os dias. Uma verdadeira linha de montagem. Os ouvidos captam uma notícia (má) ou os olhos veem uma imagem (desagradável), o pensamento processa-a, a imaginação fantasia sobre ela, o juízo dita a sua sentença e o coração reage em conformidade... Tornamo-nos juízes implacáveis. E quão difícil é desmontar este mecanismo! É necessária uma vigilância contínua. Santo Agostinho diz: “A ira é uma palha, o ódio é uma trave. Mas alimenta a palha, e ela tornar-se-á uma trave!”

Libertar os prisioneiros!

No seu discurso programático, Jesus afirma ter sido enviado “para proclamar a libertação aos prisioneiros, para pôr em liberdade os oprimidos, para proclamar o ano da graça do Senhor” (Lucas 4,18-19). As prisões que mantêm grande parte da humanidade na escravidão são muitas, mas não terá também o nosso coração se tornado uma prisão? Quantas vezes, nos recantos mais escuros da nossa alma, encerrámos muitas pessoas, condenando-as segundo a lei “olho por olho, dente por dente”. A ocasião do Jubileu é um kairos de graça, o momento propício para escancarar as portas do coração!

P. Manuel João Pereira Correia, mccj



P. Manuel João Pereira Correia mccj
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