Escancarar as portas do coração
Ano C – Tempo Comum – 7º Domingo
Lucas 6,27-38: “Eu digo-vos: amai os vossos inimigos”
O
evangelho deste domingo dá continuidade ao das bem-aventuranças no
“sermão da planície” de São Lucas (Lc 6,17-49). Jesus indica qual deve
ser a conduta dos seus discípulos. O resumo da mensagem de Jesus é: “Amai os vossos inimigos”. Se
a mensagem das bem-aventuranças do domingo passado já nos parecia
exigente, esta é ainda mais. Trata-se de um dos textos mais
desconcertantes do evangelho, que exige uma inversão radical das nossas
reações instintivas e dos nossos comportamentos sociais.
No texto, Jesus utiliza nada menos do que dezasseis imperativos. As
Suas palavras, no entanto, não constituem uma nova legislação, mas
devem ser relidas à luz das bem-aventuranças. São palavras de sabedoria
divina que nos conduzem ao próprio coração de Deus. Jesus – por mais
paradoxal que possa parecer – entrega-nos a chave de acesso às
bem-aventuranças.
A
história da salvação e a existência cristã são um caminho, um processo
de passagem da ordem da justiça (“olho por olho, dente por dente, mão
por mão, pé por pé”: Êxodo 21,24) para a ordem da graça (“Sede
misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso”: Lc 6,36). Trata-se
de uma passagem da lógica retributiva para a lógica da gratuidade, uma
mudança radical que Jesus propõe aos Seus discípulos. São Paulo, na
segunda leitura (1 Coríntios 15,45-49), apresenta este processo como a
passagem do “primeiro Adão” para o “último Adão”, do homem terreno para o
homem celeste.
As ondas do Amor divino
O
discurso de Jesus avança em quatro ondas sucessivas, cada uma marcada
por quatro imperativos. Trata-se do Amor de Deus, que deseja cobrir toda
a terra, um tsunami divino que nos envolve nesta aventura.
A primeira onda de partida é formada por quatro imperativos dirigidos aos discípulos:
“A
vós que me ouvis, eu digo: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que
vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos
maltratam.”
O verbo grego usado para “amar” aqui não é philein (ser amigo, ou seja, um amor de amizade, de reciprocidade), mas agapan (amar com um amor totalmente gratuito). Este amor traduz-se em fazer o bem, abençoar e rezar pela pessoa que nos é inimiga.
Segue-se uma segunda onda com
quatro exemplos concretos, na segunda pessoa do singular, para tornar o
discurso mais direto e envolvente: oferecer a outra face ao violento,
não recusar a túnica ao ladrão, dar a quem quer que peça, não reclamar o
que nos foi tirado.
Não se trata de comportamentos a serem seguidos
ao pé da letra, nem de renunciar aos próprios direitos, mas sim de não
responder ao mal com o mal e de renunciar à violência. Isso exige
discernimento para saber como agir em cada situação particular de
injustiça que sofremos. Trata-se de vencer o mal com o bem: “Não te
deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Romanos 12,14-21).
No centro do discurso de Jesus encontramos a chamada “regra de ouro”: “Como quiserdes que os homens vos façam, assim fazei vós a eles.”
Jesus apresenta quatro motivações: três negativas e uma positiva.
Três
negativas: que graça, que beleza, que bondade, que gratuidade há... se
amais aqueles que vos amam? Se fazeis o bem àqueles que vos fazem bem?
Se emprestais àqueles de quem esperais receber? Isso todos são capazes
de fazer!
Jesus acrescenta uma quarta motivação positiva: “Amai, pelo
contrário, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar nada
em troca, e a vossa recompensa será grande e sereis filhos do
Altíssimo.”
O texto conclui-se com o convite a
“ser misericordioso, como o Pai é misericordioso”, e oferece-nos outras
quatro recomendações para nos tornarmos semelhantes a Deus. Duas
negativas e duas positivas: não julgueis e não condeneis! Perdoai e dai!
Que lei governa a nossa vida?
“Olho
por olho, dente por dente”? Esta máxima parece-nos bárbara e cruel, e
hoje ninguém se atreveria a aplicá-la, diríamos nós. Mas será mesmo
assim?! Sim, talvez não estrangulássemos o outro com as mãos, mas com as
palavras... poderíamos atirá-lo para a lama! Ou, no pensamento,
cultivar o desejo de lhe fazer pagar! Ou ainda, torná-lo desprezível com
a nossa indiferença! Ou até alimentar o ódio no coração e apagar essa
pessoa da nossa vida!
Na
verdade, o coração humano não mudou: apenas se tornou mais subtil e
refinado! A lei de talião continua a ser aquela que muitas vezes regula
as nossas relações, correndo até o risco de nos levar a instrumentalizar
Deus para justificar a nossa violência. Um exemplo flagrante é o que
está a acontecer mesmo ao nosso lado, na guerra entre a Rússia e a
Ucrânia. É bem verdade aquilo que afirmava o filósofo e crente judeu
Martin Buber: “O nome de Deus é o nome mais ensanguentado de toda a
terra!”
Amar o inimigo?
“Bem,
eu não tenho inimigos!”, ouve-se dizer com frequência. Mas, na
realidade, fabricamos inimigos todos os dias. Uma verdadeira linha de
montagem. Os ouvidos captam uma notícia (má) ou os olhos veem uma imagem
(desagradável), o pensamento processa-a, a imaginação fantasia sobre
ela, o juízo dita a sua sentença e o coração reage em conformidade...
Tornamo-nos juízes implacáveis. E quão difícil é desmontar este
mecanismo! É necessária uma vigilância contínua. Santo Agostinho diz: “A
ira é uma palha, o ódio é uma trave. Mas alimenta a palha, e ela
tornar-se-á uma trave!”
Libertar os prisioneiros!
No
seu discurso programático, Jesus afirma ter sido enviado “para
proclamar a libertação aos prisioneiros, para pôr em liberdade os
oprimidos, para proclamar o ano da graça do Senhor” (Lucas 4,18-19). As
prisões que mantêm grande parte da humanidade na escravidão são muitas,
mas não terá também o nosso coração se tornado uma prisão? Quantas
vezes, nos recantos mais escuros da nossa alma, encerrámos muitas
pessoas, condenando-as segundo a lei “olho por olho, dente por dente”. A
ocasião do Jubileu é um kairos de graça, o momento propício para escancarar as portas do coração!
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org
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