Cordeiros no meio de lobos
Ano C – XIV Domingo do Tempo Comum
Lucas 10,1-12.17-20: “Envio-vos como cordeiros para o meio de lobos”
O
Evangelho de hoje relata-nos a experiência missionária dos setenta e
dois discípulos enviados por Jesus “dois a dois, à sua frente, a todas
as cidades e lugares aonde Ele próprio havia de ir”. Depois de já ter
enviado os Doze (cf. Lc 9,1-6), agora Jesus envia mais setenta e dois.
São Lucas é o único evangelista a relatar este episódio. Detenhamo-nos
em cinco aspetos do relato.
1. Já não só os Doze, mas os setenta e dois
“O Senhor designou outros setenta e dois.”
O
número 72 tem um significado simbólico: alude à universalidade da
missão. Segundo a chamada “tabela das nações” (Génesis 10, na versão
grega dos LXX), havia 72 povos na Terra. Alguns manuscritos e a tradição
judaica referem o número 70. Os rabinos afirmavam que Israel era como
um cordeiro rodeado por setenta lobos, e todos os anos, no Templo,
sacrificavam-se setenta bois pela conversão desses povos.
Os
Doze representam o novo Israel, as doze tribos; os Setenta (ou setenta e
dois), representam a nova humanidade. Além disso, 72 é múltiplo de 12:
representa, assim, a totalidade dos discípulos. A missão não é
responsabilidade exclusiva dos apóstolos, mas de todo o povo de Deus.
A
Igreja não cessa de sublinhar a urgência do anúncio missionário. Mas,
infelizmente, muitas vezes com poucos resultados. Numa época de rápida e
dramática descristianização do Ocidente, parecemos preocupados apenas
em conservar a única ovelha que ficou no redil, dando as outras noventa e
nove por perdidas.
2. Precursores
“Enviou-os dois a dois, à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele próprio havia de ir.”
Jesus envia-os dois a dois: a missão é uma tarefa comunitária. Mas porque os envia à sua frente?
Não deveria ser Ele a ir primeiro? Sim, o Senhor precedeu-nos, mas
agora, terminada a sua missão, começa a nossa: preparar o seu regresso.
Tal
como João Batista preparou a sua primeira vinda, hoje somos chamados a
preparar a sua segunda. Não por acaso, São Lucas utiliza aqui o título
“o Senhor”, de conotação pascal, e não simplesmente “Jesus”.
“O
seu nome será João”, disse Zacarias. Hoje, simbolicamente, o Senhor diz
a cada um de nós: “O teu nome será João/Joana”. O nome indica a missão.
Esta missão assenta em duas tarefas essenciais:
– Anunciar uma mensagem breve e concisa: “Está próximo de vós o Reino de Deus”;
–
“Baptizar”, não com água como João, mas mergulhar as pessoas no amor de
Deus, através de relações fraternas e do cuidado pelos mais frágeis:
“Curai os doentes”.
Talvez
hoje seja necessário inverter a ordem: primeiro “baptizar” a realidade
quotidiana – família, trabalho, escola, sociedade – com o amor de Deus;
depois, no tempo oportuno, anunciar o Reino. Como sugere São Pedro:
“Estai sempre prontos a responder a todo aquele que vos pedir a razão da
esperança que há em vós” (1Pd 3,15).
3. Lobos e cordeiros
“Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos.”
As
instruções de Jesus sobre a missão são desconcertantes. Compreendemos o
apelo à oração – alma de toda a missão –, mas porque tanta insistência
no despojamento do missionário?
As
imagens fortes usadas por Jesus mostram que a missão se realiza na
fraqueza e na pobreza, à imagem do Mestre que “a si mesmo se esvaziou,
assumindo a condição de servo” (Fil 2,7). A missão exige renunciar a
qualquer forma de poder humano, para que fique claro que é Deus quem
age. Talvez seja precisamente a tentação do poder a origem dos mais
graves escândalos e pecados da Igreja.
Jesus
envia-nos pobres – ricos apenas na confiança em Deus – como cordeiros
no meio de lobos. É forte, porém, a tentação de nos tornarmos também
lobos, usando as mesmas armas do inimigo quando temos oportunidade.
As
leituras de hoje mostram-nos o contexto muitas vezes dramático da
missão. Isaías fala de luto antes da consolação; Paulo fala da cruz e
dos estigmas do Senhor; o Evangelho fala de lobos, serpentes,
escorpiões, do poder do inimigo, e da possível rejeição da mensagem e
dos mensageiros.
No
entanto, Jesus não nos envia para o massacre. Ele confere-nos o seu
poder: “Dei-vos poder para pisar serpentes e escorpiões e sobre toda a
força do inimigo: nada vos poderá causar dano.” Assim o apóstolo
antecipa os tempos escatológicos em que “o lobo habitará com o cordeiro”
(Is 11,6).
4. A paz
“Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa!’”
No difícil contexto da missão, Jesus convida-nos a oferecer paz. É um tema central em todas as leituras deste domingo.
Deus,
através de Isaías, promete: “Eis que farei correr para Jerusalém, como
um rio, a paz.” Infelizmente, hoje este rio parece seco. A paz é dom e
responsabilidade. Hoje mais do que nunca, precisamos urgentemente de
“filhos da paz”, como diz Jesus. Mas nós, seus discípulos, somos
realmente isso nos nossos sentimentos, palavras e ações?
5. A alegria
“Os setenta e dois voltaram cheios de alegria.”
A
alegria é o outro grande tema que une as leituras de hoje. É fruto da
paz. A alegria cristã não é aquela efémera e enganosa do mundo, nem uma
leviandade superficial que ignora a dor e a injustiça.
A
alegria do cristão convive frequentemente com o sofrimento e a
perseguição. Essa alegria das bem-aventuranças é um dom que exige,
contudo, “a coragem da alegria” (Bento XVI). Manifesta-se na paz
profunda do coração, semelhante à calma do mar em profundidade, mesmo
quando à superfície a tempestade ruge.
É
esta a “alegria plena” que Jesus nos deixou em herança durante a ceia
da sua despedida. Uma alegria garantida: “Ninguém vos poderá tirar a
vossa alegria” (Jo 16,22).
P. Manuel João Pereira Correia, mccj
P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
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