Crónicas PÁRA E PENSA
O Cristo Pensador
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Karl Rahner, talvez o maior teólogo
católico do século XX — tenho a honra de
ter sido seu aluno —, deixou escapar um
dia, numa aula, uma daquelas observações
que nunca mais se esquecem: na Igreja
católica é obrigatório confessar os pecados
graves e mortais, mas não estava a ver que
algum bispo ou padre ou superior religioso,
ministro ou professor católico se tenha
confessado do pecado grave e,
frequentemente, mortal, da ignorância
culpada, da incompetência fatal, da
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inteligência irresponsavelmente
menorizada.
Em geral, nas igrejas, faz-se muito
pouco apelo à razão, à reflexão crítica, à
pergunta. Como se a fé não tivesse de
conviver com a inteligência, com a dúvida e
com a pergunta. Os cristãos — mas isso
acontece em todas as religiões — parece que
ficam tolhidos na sua capacidade de
perguntar. No entanto, Jesus morreu a rezar
esta pergunta infinita que atravessa os
séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque me
abandonaste?” e, perto de nós, Martin
Heidegger, um dos filósofos mais influentes
do século XX, escreveu que “a pergunta é a
piedade do pensamento”.
Na Igreja, valoriza-se a obediência,
referindo constantemente aquele passo de
São Paulo: “Cristo obedeceu até à morte e
morte de cruz”. Mas quase nunca se explica
o que é essa obediência de Cristo, ocultando
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que, para obedecer a Deus e ao que Deus
quer — dignidade, futuro, fraternidade,
liberdade —, teve de desobedecer aos
opressores, nomeadamente a uma religião
que, em vez de libertar, oprimia.
Tanto entre os crentes como entre os
ateus e os sem religião, não faltam os que
sabem, com saber certo, sem qualquer
dúvida nem hesitação, o que Deus é, em
que consiste a vontade divina para cada
pessoa, qual é o sentido da história e do
mundo. Entronizados no poder, definem
dogmas, estabelecem normas e mandam
com soberania inquestionável.
Perguntar vem do latim percontari, que,
por sua vez, terá na sua base contus, vara
comprida. Então, perguntar,
etimologicamente, quer dizer examinar o
fundo de um rio ou de um tanque com um
bastão e, por extensão, sondar o interior do
homem e da realidade.
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Só o Homem pergunta e pensa. Um
animal com a mão encostada à face ou a
face entre as mãos, a cabeça inclinada e
absorto, é um ser humano que pensa: tenta
ver o seu interior e o mais fundo de tudo.
Nenhum outro animal pensa nem se
examina nem examina as consequências dos
seus actos nem pergunta. O Homem
pergunta, e a sua pergunta não tem limites.
E é assim que, nesse seu perguntar, pode
surgir a questão da transcendência e de
Deus. Como escreveu Theodor Adorno, da
Escola Crítica de Frankfurt, “o pensamento
que se não decapita desemboca na
transcendência”.
Por tudo isto, é uma surpresa boa
encontrar em Vilnius algo típico da
Lituânia, talvez porque é um povo que
sofreu demasiado: umas pequenas estátuas
de Cristo a pensar — o Cristo Pensador.
Trouxe uma que me acompanha.
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Pensar vem do latim pensare, com o
significado de ponderar, examinar, pesar
argumentos e razões. Pensar pode ter
também o significado de aplicar o curativo,
os remédios necessários — aí está o penso
para curativo. E é assim que, em português,
pesar também quer dizer solidariedade com
a tristeza de alguém que sofre.
Neste quadro, os incontáveis horrores
que nos rodeiam obrigam a pensar. Mas,
por outro lado, também por influência dos
smartphones, o QI está a cair. E, no que à
Teologia se refere, torna-se cada vez mais
acentuada a constatação de Hans Küng, um
dos últimos maiores teólogos, tão
maltratado pela Igreja oficial — partiu a 6
de Abril de 2021: “O estudo da teologia
católica é hoje escassamente atractivo para
mentes livres e criativas.”
Sábado, 19 de Julho de 2025
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