sábado, 2 de agosto de 2025

humor, o riso e Deus - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

O humor, o riso e Deus

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Porque nos tribunais portugueses decorre

um processo por causa de um vídeo

humorístico, ouso voltar ao tema em

epígrafe, mesmo correndo o risco de aqui e

ali me repetir.

Sobre Deus que sabemos nós? Ele é

infinito e está para lá de tudo o que possamos

pensar ou dizer. O que sabemos dEle

sabemo-lo sobretudo através de Jesus, a sua

imagem no mundo.

Através de Jesus, sabemos que Deus é,

como se lê na Primeira Carta de São João,

Agapê: Amor incondicional. Mas o Evangelho

segundo São João também diz que Deus é

Logos: Razão, Inteligência e que tudo foi

criado pelo Logos. Por isso, Deus tem sentido

2

de humor, pois o humor é sinal de

inteligência. Não é o humor fino revelador de

uma inteligência fina? Mas o que estamos a

dizer, quando dizemos isto acerca de Deus?

Logo no primeiro livro da Bíblia, o Génesis,

há uma passo belíssimo em conexão com o

riso. “O Senhor apareceu a Abraão quando

ele estava sentado à porta da sua tenda”, sob

a figura de três homens. ‘Onde está Sara, tua

mulher?’ Ele respondeu: ‘Está aqui na tenda.

Um deles disse: Passarei novamente pela tua

casa dentro de um ano, nesta mesma época,

e Sara, tua mulher, terá já um filho’. Ora,

Sara estava a escutar à entrada da tenda.

Abraão e Sara eram já velhos, e Sara já não

estava em idade de ter filhos. Sara riu-se

consigo mesma e pensou: ‘Velha como estou,

poderei ainda ter esta alegria, sendo também

velho o meu senhor?’.” O que é facto é que “o

Senhor visitou Sara, como lhe tinha dito, e

realizou nela o que lhe prometera. Sara

concebeu e, na data marcada por Deus, deu

um filho a Abraão, quando este era já velho.

Ao filho que lhe nasceu de Sara deu Abraão o

nome de Isaac. Abraão tinha cem anos

quando nasceu Isaac, seu filho. Sara disse:

Deus concedeu-me uma alegria, e todos

quantos o souberem alegrar-se-ão comigo.”

3

Há aqui dois tipos de riso: Sara ri-se para

dentro: como é possível, velha, ter um filho?

Mas ao filho é dado o nome de Isaac, que, em

hebraico, quer dizer “riso”, sendo aqui o riso

um riso intenso de alegria: Isaac também

quer dizer “aquele que traz alegria”.

De Jesus diz-nos o Evangelho que chorou:

chorou pela morte do seu amigo Lázaro,

também sobre Jerusalém. Não se diz que riu.

Mas já Santo Tomás de Aquino observou que

é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é

homem e rir é característica essencial do ser

humano. Jesus participou em festas de

casamento e alguém imagina uma festa de

casamento sem risos, sem piadas festivas? O

Evangelho testemunha que Jesus

experienciou o melhor sentimento face à vida

e ao seu milagre: o do maravilhamento e do

contentamento.

O humor e o riso, repito, são um sinal

evidente de inteligência, desdramatizam a

vida, permitem viver de modo sadio consigo

próprio, fazem bem à saúde, abrem

transcendências. A Igreja está, ou deveria

estar, atravessada pelo bom humor, porque

“um santo triste é um triste santo”. E há

piadas fatais. Lá está o dito famoso: “ridendo

castigat mores”: a rir castiga-se e corrige-se

4

os costumes. Gil Vicente foi exemplar nisso.

Digo: ai da Igreja e dos crentes sem a crítica

mordaz, ácida, pela palavra e pela caricatura!

O que não se pode é cair na boçalidade, pois

esta apenas significa falta de inteligência. O

riso também cura a vaidade oca: “Mesmo no

mais alto trono do mundo, está-se sentado

sobre o cu”, escreveu Montaigne. Umberto

Eco, o inesquecível autor de O nome da rosa,

esse desabafou: “Aprendi que o riso é a única

forma de lidar com a absurdidade da

existência”.

Na Idade Média, realizava-se a chamada

Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder

eclesiástico. Pegava-se num subdiácono, o

grau mais baixo da hierarquia, era vestido de

bispo, colocado em cima de um burro,

entrava na igreja com a face voltada para a

cauda, de costas para o altar. Em momentos

fundamentais da liturgia, o celebrante e o

povo zurravam. Na transmissão simbólica do

báculo episcopal, rezava-se o Magnificat

naquele passo: “e Deus derrubou os

poderosos e exaltou os humildes.” Chamada a

pronunciar-se, a Faculdade de Teologia de

Paris, justificou-a com a necessidade de dar

expansão à crítica, voltando depois a ordem.

5

A propósito da força crítica da piada e da

caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e

todo aquele luxo, que blasfema do Evangelho

de Jesus, no fausto de uma procissão com

cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores...

Veio São Pedro à janela do Céu e viu aquilo e,

estarrecido, chamou Jesus, que olhou e

apenas comentou: “E pensarmos nós, Pedro,

que começámos aquilo, entrando eu de burro

em Jerusalém onde fui crucificado... Lembras-

te?” Por isso, respondi uma vez a uma

jornalista: “Não. Jesus não entraria no

Vaticano, porque não o deixariam entrar.”

Francisco socorria-se também do bom

humor, e todos os dias rezava a Oração do

bom humor, oração atribuída a São Tomás

Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que

não se esqueceu de levar a gorjeta para o

carrasco que ia decapitá-lo. Francisco

recomendou-a também aos membros da

Cúria Romana, onde tinha tantos adversários

e até inimigos, a quem falta o bom humor

divino: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e

também algo para digerir./ Dá-me um corpo

saudável e o bom humor necessário para

mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe

valorizar tudo o que é bom/ e que não se

amedronta facilmente diante do mal, /mas,

6

pelo contrário, encontra os meios para voltar

a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-

me, Senhor, uma alma/ que não conhece o

tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as

lamentações,/ nem os excessos de stress por

causa desse estorvo chamado ‘Eu’./ Dá-me,

Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-

me a graça de ser capaz de uma boa piada,

uma boa piada para descobrir na vida um

pouco de alegria/ e poder partilhá-la com os

outros./ Ámen.”

Em Junho de 2024, Francisco fez questão

de encontrar-se com mais de 100 humoristas

de todo o mundo, incluindo os portugueses

Ricardo Araújo Pereira, Joana Marques e

Maria Rueff, afirmando que é “importante

fazer rir os outros, pois isso pode ajudar as

pessoas...” “É possível rir também de Deus? É

claro que sim, isto não é blasfémia, assim

como brincamos e fazemos piadas com as

pessoas que amamos. A tradição sapiencial e

literária hebraica é mestra nisso. Pode ser

feito, mas sem ofender os sentimentos

religiosos dos fiéis, especialmente dos

pobres.” Pessoalmente, acrescento: afinal,

não é de Deus que rimos, mas das nossas

imagens de Deus, tantas vezes ridículas (a

7

palavra ridículo vem do latim ridere (rir) e

quer dizer precisamente o que provoca riso).

Fiquei encantado, quando li Francisco a

dizer que, no caso de alguém se sentir numa

situação de algum abatimento, fizesse como

ele: caretas frente ao espelho... Estou

convicto de que isso lhe aconteceu várias

vezes, para poder superar tantos dissabores

por causa dos seus adversários e até inimigos

no Vaticano e não só, como ficou dito...

Sábado, 26 de Julho de 2025

Sem comentários:

Enviar um comentário