SERÁ
A POBREZA UMA FATALIDADE?
Frei
Bento Domingues, O.P.
16
Novembro 2025
1. Não falta quem diga que foi o próprio Jesus que
fez da pobreza uma fatalidade: pobres sempre tereis entre vós[1]. Dizer isso é ler fora do
contexto. Na sua terra, em dia de sábado na Sinagoga, Jesus apresentou como
programa da sua intervenção no mundo, usando palavras mais antigas, palavras do
profeta Isaías 61, 1: O Espírito do Senhor está sobre mim / porque me ungiu
/ para anunciar a Boa-Nova aos pobres / enviou-me a proclamar a libertação aos
cativos / e, aos cegos, a recuperação da vista / a mandar em liberdade os
oprimidos / a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.
Ele suprimiu intencionalmente, na sua leitura de Isaías, a parte
do texto que incluía o dia da vingança do nosso Deus. Esta não fazia
parte do seu programa. Ele veio, precisamente, para suprimir a vingança, para
anunciar o contrário: amai os vossos inimigos, fazei bem a que vos
faz mal… O que não vai fazer parte do seu programa é a violência, a
inimizade entre pessoas e povos.
Além disso, o Nazareno teria dito, segundo o testemunho do
Novo Testamento (NT), esta passagem assustadora: não venho trazer a paz, mas
a espada. Convém ver o que Tomás de Aquino diz acerca da paz: há uma paz,
fundada na injustiça, que é preciso destruir. É uma falsa paz. A verdadeira paz,
fundada no amor e na justiça, é aquela que deve ser promovida (pax delenda
et pax instauranda). Sem esta distinção, atribuímos a Jesus de Nazaré uma
verdadeira barbaridade incompatível com todo o NT.
2. Para o conhecido teólogo, Juan José Tamayo,
Gustavo Gutiérrez, OP (1928-2024) é justamente reconhecido como o pai do novo
paradigma teológico, que representou uma verdadeira revolução epistemológica,
metodológica, espiritual e social no discurso religioso e na prática
libertadora de cristãos e grupos com especial sensibilidade ao sofrimento da
maioria popular.
Segundo este teólogo, estamos diante de uma nova maneira de
fazer teologia que teve repercussões sociais e políticas, desestabilizadoras
para o sistema neocolonial latino-americano e continua a tê-las, hoje, para o
sistema de globalização neoliberal que o Papa Francisco define como a
globalização da indiferença que nos torna indiferentes aos gritos dos
outros e descreve como fundamentalmente injusto.
Não deixa de ser curioso que seja o Papa Francisco a escrever
o prefácio do último livro de Gustavo Gutiérrez, Viver e pensar o Deus dos
pobres.
Neste prefácio, Francisco, que tinha denunciado a economia
que mata, testemunha que esta voz latino-americana, durante a sua longa
vida, foi um servo fiel de Deus e um amigo dos pobres. A sua teologia marcou a
vida da Igreja e ainda é actual, com um frescor que abre caminhos ao seguimento
de Jesus.
Neste último livro, ofereceu-nos, mais uma vez, o
fruto do seu empenho, da sua oração e da sua reflexão. Quero destacar nessas
páginas a profunda e permanente fidelidade à Igreja no seu caminho. Uma
fidelidade vivida com humildade, às vezes com dor e, fundamentalmente, com
liberdade.
Muitos grupos cristãos estavam a viver desafios,
questionamentos e esperanças que derivavam do forte clamor dos pobres e do
crescente compromisso com este mundo. A irrupção dos pobres, como
Gustavo a chama, exigia justiça e uma outra maneira de viver a fé, de pensar a
fé, de dizer a fé, em suma, de ser Igreja. Gustavo frequentemente lembrava,
oralmente e por escrito, a frase de João XXIII de 11 de Setembro de 1962, um
mês antes da inauguração do Concílio: a Igreja apresenta-se como é e quer
ser, como a Igreja de todos e, particularmente, a Igreja dos pobres.
A sua pergunta constante, Como podemos falar de
Deus a partir do sofrimento do inocente? continua a ser premente para os
crentes diante do poder da injustiça e da mentira. Os pontos centrais da sua
teologia querem estar presentes onde a marca de Deus parece ter sido apagada na
atmosfera cultural. Enraizada na libertação que Cristo nos oferece, a sua
teologia afirma a gratuidade do amor de Deus que nos envolve na história. A
teologia de Gustavo permanece na Igreja não como um belo tesouro do passado,
mas como aquele segundo acto, uma tarefa sempre aberta, para pensar a
nossa experiência vivida de Deus; uma experiência já iniciada e experimentada
justamente ali, onde nos tornamos próximos dos feridos, abandonados à beira da
estrada e de onde tentamos dizer com humildade, com terna convicção, aos mais
pobres e a todos: Deus ama-te. Gustavo deu-nos as ferramentas teológicas
indispensáveis para que nunca nos esquecêssemos dos pobres.
Neste último livro, deixa muito claro que lembrar-se
dos pobres significa muito mais do que um peditório; não é um acréscimo
piedoso. Como ensina S. Paulo, é o coração da mensagem cristã (2 Cor 8 – 9).
Em consonância com este texto, convém evocar as
palavras de uma pessoa muito querida a Gustavo, Bartolomé de Las Casas, OP
(1484-1566): De cada um dos pequenos e mais esquecidos, Deus guarda uma
recordação muito próxima e viva.
A partir daqui, o Reino que Jesus anuncia abraça toda
a criação, cada ser humano e realidade humana, em todos os tempos e lugares. É
este o Deus de Jesus de Nazaré[2].
Em Portugal, no âmbito da Teologia da Libertação, Bruto da
Costa, Manuela Silva e Gonçalo Pereira Diniz, OP, podem ser incorporados nesse
vasto movimento internacional[3]. Quando se pensa nos
pobres, é preciso nunca esquecer o Padre Américo e todas as suas iniciativas.
Não fez teologia. Praticou-a.
3. George Bernanos afirmava que
há cristãos capazes de se instalar comodamente mesmo debaixo da cruz de Cristo.
Gustavo Gutiérrez pretende corrigir essa tendência conformista, activando
as energias utópico-libertadoras do cristianismo. A sua referência intelectual é
Bartolomé de Las Casas, OP, defensor dos índios e africanos escravizados pelos
conquistadores e pioneiro do reconhecimento e respeito pela pluralidade
cultural. Parafraseando-o (os índios morrem antes de tempo) o teólogo
peruano afirma que os pobres na América Latina morrem antes de tempo.
As questões existenciais, ou melhor, vitais que queimam os lábios
de Gustavo e lhe atormentam a consciência têm a ver com a linguagem sobre Deus: como
falar de Deus a partir do sofrimento dos inocentes? Com a fraternidade: como
falar de Deus Pai num mundo onde os seres humanos não são irmãos? E com a vida e
a morte: como falar da ressurreição num mundo onde os excluídos são carne para
canhão?
A pobreza não será uma fatalidade se tiver pessoas como
Gutiérrez e o Papa Francisco que criem movimentos que atingem a economia que
mata.
[1]
Jo 12, 8
[2] O livro, traduzido do espanhol para italiano por
Marta Pescatori, foi publicado postumamente pela Editora Queriniana (Brescia
2025), segundo a notícia de L'Osservatore Romano
[3]
Cf. Gonçalo Pereira Diniz, OP, O clamor do “não homem”. A obra de Gustavo
Gutiérrez como proposta atual de ética política e social, Universidade
Católica Editora, 2020
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