quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Perante o horror, inevitável a pergunta: Onde está Deus? - Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

Perante o horror,

inevitável a pergunta: Onde está Deus?

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Actualmente, porque, com a televisão e outros

meios, temos acesso às imagens, talvez seja

sobretudo perante os horrores das guerras que se

pode ficar estarrecido perante o silêncio de Deus.

São bombardeamentos que não deixam pedra

sobre pedra, que matam indiscriminadamente

homens, mulheres, crianças, e ficamos esmagados

sobretudo pela dor, o clamor, as lágrimas, a

desorientação das crianças inocentes. Onde está

Deus?

Joseph Ratzinger, chamado aos 17 anos

para o serviço militar do Reich, foi desertor e

prisioneiro dos americanos. Já Papa Bento

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XVI, como já aqui escrevi, esteve em

Auschwitz e fez um discurso dramático e

deveras emocionante: "Tomar a palavra

neste lugar de horror, de crimes contra Deus

e contra o ser humano sem precedentes na

História, é quase impossível, e é

particularmente difícil e deprimente para

um cristão, para um Papa que procede da

Alemanha. Num lugar como este faltam as

palavras; no fundo, só há espaço para um

atónito silêncio, um silêncio que é um grito

interior para Deus: Porque te calaste?

Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde

estava Deus nesses dias? Porque se calou?”

Perante o horror do mundo e todos os

mortos e todas as vítimas — ah!, as vítimas

inocentes — e o aparente silêncio de Deus,

percebemos a tentação do ateísmo. E até

poderá tratar-se de um ateísmo moral, um

ateísmo ad majorem Dei gloriam, para a

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maior glória de Deus, como se, perante o

horror, a justificação de Deus fosse não

existir. É-se ateu por causa de Deus, que é

preciso recusar por causa da moral: um

mundo com tanta dor, tantas injustiças,

tanto sofrimento de inocentes, tanto

cinismo brutal do poder, como pode ser

criação de um Deus bom? Mas a quem recusa

Deus assalta-o outra pergunta: se Deus não

existe, donde vem o bem e a nossa revolta,

desde a raiz de nós, contra o mal e a morte,

clamando por justiça e salvação para as

vítimas inocentes? Porque, sem Deus,

afundamo-nos no nada e anula-se, em

última análise, a própria diferença entre

bem e mal. Por isso, segundo Jürgen

Habermas, para mim o maior filósofo vivo,

agnóstico, o que mais nos inquieta é “a

irreversibilidade dos sofrimentos do

passado — a injustiça contra as pessoas

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inocentes vítimas de maus tratos,

aviltamento e assassinato — sem que o

poder humano possa repará-los”,

acrescentando: “A esperança perdida da

ressurreição” sente-se como um grande

vazio.”

Há uma pergunta decisiva (para Max

Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt,

a que Habermas também está ligado, é

mesmo “a pergunta fundamental da

Filosofia”): o que podem esperar as

incontáveis vítimas inocentes da História?

Quem lhes fará justiça? As vítimas inocentes

clamam, e um grito sem fim, ensurdecedor,

percorre a História. Há uma dívida

incontável para com essas vítimas. Quem a

pagará?

Max Horkheimer e Theodor Adorno,

principais representantes da Escola Crítica,

com quem Bento XVI entrou em diálogo na

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sua encíclica sobre a esperança, “Salvos em

Esperança”, viveram filosoficamente a

inconsolável “tristeza metafísica” da

impossibilidade de fazer justiça às vítimas

da História. De facto, mesmo supondo, no

quadro do marxismo e da ideia do progresso

moderno, que algum dia fosse possível a

edificação de uma sociedade finalmente

justa, transparente e reconciliada, ela não

poderia ser feliz. A razão é simples: ou essa

sociedade se lembrava de todas as vítimas

do passado, que não participam dela, e então

seria atravessada pela infelicidade, ou não se

interessava por essas vítimas, e então não

era humana, porque não solidária.

Adorno e Horkheimer exprimiram uma

filosofia em tenaz: por um lado, não podiam

acreditar num Deus justo e bom; por outro,

há uma verdade da religião, apesar de todas

as suas traições no conluio com o poder e os

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vencedores: a religião “no bom sentido” é,

segundo Horkheimer “o anelo inesgotável,

sustentado contra a realidade fáctica, de que

esta mude, que acabe o desterro e chegue a

justiça”. Não se trata de um desejo egoísta,

mas da esperança contrafáctica de que a

realidade dominante da injustiça não tenha

a última palavra. Daí, “o anelo do

totalmente Outro”, o “anelo da justiça

universal cumprida”, “a esperança de que a

injustiça que atravessa a História não

permaneça, não tenha a última palavra.”

Esta esperança tem de traduzir-se numa

práxis solidária tal que, como disse de modo

incisivo Kant, “a práxis tem de ser tal que

não se possa pensar que não existe um

Além.” Nesta práxis, está implicado o

pensamento do Absoluto, como exigência

moral e como anelo de que o finito e o

mundo da injustiça não sejam a ultimidade e

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o definitivo. Também neste sentido, Adorno

escreveu que “o pensamento que não se

decapita desemboca na Transcendência”.

Neste domínio, a única filosofia legítima

seria “o intento de contemplar todas as

coisas como aparecem à luz da redenção”. A

pergunta pela esperança truncada das

vítimas, que acusam o mundo da história

dos vencedores, obriga a pensar para lá dos

limites da imanência, colocando a pergunta

pelo Absoluto enquanto pergunta pela

justiça universal.

No seu diálogo com a Escola Crítica de

Frankfurt, Bento XVI reconheceu que a

necessidade individual da realização plena e

da imortalidade do amor já é “um motivo

importante para crer que o ser humano está

feito para a eternidade”, “mas só o

reconhecimento de que a injustiça da

História não pode de modo nenhum ter a

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última palavras” convence da necessidade

da ressurreição dor mortos e da vida eterna.

Sábado, 22 de Novembro de 2025

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