Crónicas PÁRA E PENSA
Perante o horror,
inevitável a pergunta: Onde está Deus?
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Actualmente, porque, com a televisão e outros
meios, temos acesso às imagens, talvez seja
sobretudo perante os horrores das guerras que se
pode ficar estarrecido perante o silêncio de Deus.
São bombardeamentos que não deixam pedra
sobre pedra, que matam indiscriminadamente
homens, mulheres, crianças, e ficamos esmagados
sobretudo pela dor, o clamor, as lágrimas, a
desorientação das crianças inocentes. Onde está
Deus?
Joseph Ratzinger, chamado aos 17 anos
para o serviço militar do Reich, foi desertor e
prisioneiro dos americanos. Já Papa Bento
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XVI, como já aqui escrevi, esteve em
Auschwitz e fez um discurso dramático e
deveras emocionante: "Tomar a palavra
neste lugar de horror, de crimes contra Deus
e contra o ser humano sem precedentes na
História, é quase impossível, e é
particularmente difícil e deprimente para
um cristão, para um Papa que procede da
Alemanha. Num lugar como este faltam as
palavras; no fundo, só há espaço para um
atónito silêncio, um silêncio que é um grito
interior para Deus: Porque te calaste?
Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde
estava Deus nesses dias? Porque se calou?”
Perante o horror do mundo e todos os
mortos e todas as vítimas — ah!, as vítimas
inocentes — e o aparente silêncio de Deus,
percebemos a tentação do ateísmo. E até
poderá tratar-se de um ateísmo moral, um
ateísmo ad majorem Dei gloriam, para a
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maior glória de Deus, como se, perante o
horror, a justificação de Deus fosse não
existir. É-se ateu por causa de Deus, que é
preciso recusar por causa da moral: um
mundo com tanta dor, tantas injustiças,
tanto sofrimento de inocentes, tanto
cinismo brutal do poder, como pode ser
criação de um Deus bom? Mas a quem recusa
Deus assalta-o outra pergunta: se Deus não
existe, donde vem o bem e a nossa revolta,
desde a raiz de nós, contra o mal e a morte,
clamando por justiça e salvação para as
vítimas inocentes? Porque, sem Deus,
afundamo-nos no nada e anula-se, em
última análise, a própria diferença entre
bem e mal. Por isso, segundo Jürgen
Habermas, para mim o maior filósofo vivo,
agnóstico, o que mais nos inquieta é “a
irreversibilidade dos sofrimentos do
passado — a injustiça contra as pessoas
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inocentes vítimas de maus tratos,
aviltamento e assassinato — sem que o
poder humano possa repará-los”,
acrescentando: “A esperança perdida da
ressurreição” sente-se como um grande
vazio.”
Há uma pergunta decisiva (para Max
Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt,
a que Habermas também está ligado, é
mesmo “a pergunta fundamental da
Filosofia”): o que podem esperar as
incontáveis vítimas inocentes da História?
Quem lhes fará justiça? As vítimas inocentes
clamam, e um grito sem fim, ensurdecedor,
percorre a História. Há uma dívida
incontável para com essas vítimas. Quem a
pagará?
Max Horkheimer e Theodor Adorno,
principais representantes da Escola Crítica,
com quem Bento XVI entrou em diálogo na
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sua encíclica sobre a esperança, “Salvos em
Esperança”, viveram filosoficamente a
inconsolável “tristeza metafísica” da
impossibilidade de fazer justiça às vítimas
da História. De facto, mesmo supondo, no
quadro do marxismo e da ideia do progresso
moderno, que algum dia fosse possível a
edificação de uma sociedade finalmente
justa, transparente e reconciliada, ela não
poderia ser feliz. A razão é simples: ou essa
sociedade se lembrava de todas as vítimas
do passado, que não participam dela, e então
seria atravessada pela infelicidade, ou não se
interessava por essas vítimas, e então não
era humana, porque não solidária.
Adorno e Horkheimer exprimiram uma
filosofia em tenaz: por um lado, não podiam
acreditar num Deus justo e bom; por outro,
há uma verdade da religião, apesar de todas
as suas traições no conluio com o poder e os
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vencedores: a religião “no bom sentido” é,
segundo Horkheimer “o anelo inesgotável,
sustentado contra a realidade fáctica, de que
esta mude, que acabe o desterro e chegue a
justiça”. Não se trata de um desejo egoísta,
mas da esperança contrafáctica de que a
realidade dominante da injustiça não tenha
a última palavra. Daí, “o anelo do
totalmente Outro”, o “anelo da justiça
universal cumprida”, “a esperança de que a
injustiça que atravessa a História não
permaneça, não tenha a última palavra.”
Esta esperança tem de traduzir-se numa
práxis solidária tal que, como disse de modo
incisivo Kant, “a práxis tem de ser tal que
não se possa pensar que não existe um
Além.” Nesta práxis, está implicado o
pensamento do Absoluto, como exigência
moral e como anelo de que o finito e o
mundo da injustiça não sejam a ultimidade e
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o definitivo. Também neste sentido, Adorno
escreveu que “o pensamento que não se
decapita desemboca na Transcendência”.
Neste domínio, a única filosofia legítima
seria “o intento de contemplar todas as
coisas como aparecem à luz da redenção”. A
pergunta pela esperança truncada das
vítimas, que acusam o mundo da história
dos vencedores, obriga a pensar para lá dos
limites da imanência, colocando a pergunta
pelo Absoluto enquanto pergunta pela
justiça universal.
No seu diálogo com a Escola Crítica de
Frankfurt, Bento XVI reconheceu que a
necessidade individual da realização plena e
da imortalidade do amor já é “um motivo
importante para crer que o ser humano está
feito para a eternidade”, “mas só o
reconhecimento de que a injustiça da
História não pode de modo nenhum ter a
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última palavras” convence da necessidade
da ressurreição dor mortos e da vida eterna.
Sábado, 22 de Novembro de 2025
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